domingo, 24 de agosto de 2008

Impressões e Gemidos

IMPRESSÕES E GEMIDOS

Poesias Completas

de

José Coriolano de Souza Lima


Organizadas por
Ivens Roberto de Araújo Mourão(trineto)



Foto de José Coriolano de Souza Lima, publicada na edição de
Impressões e Gemidos de 1870. Em destaque a assinatura
do poeta.(Nota do Coordenador).

Apresentação


Muitas vezes a vida nos oferece desafios difíceis de transpor. E, sem que percebamos, o que nos parecia tão distante é o fio da meada que encontramos, no emaranhado dos caminhos da vida. Desde criança desejava ser engenheiro civil. Construir casas, como dizia para o meu pai (Alexandre Sauly Mourão), quando ele me embalava para dormir. Perguntava e ele me explicava a função de cada madeira do telhado: caibro, ripa, linha. E logo passava a cantar lindas melodias ou declamar poemas, dizendo serem do meu trisavô poeta, José Coriolano.

A primeira materialização desse desejo foi quando ele comprou, a meu pedido, um “chapéu de engenheiro” igual ao do meu tio, Genésio Martins de Araújo, formado por Ouro Preto/MG. Hoje sou engenheiro civil e construí inúmeras casas, prédios, armazéns, açudes etc. E, paradoxalmente, estou precisando ser poeta. Relembro aqueles tempos em que adormecia nos braços do meu pai, ao som de melodias e poemas. Estou precisando despojar-me um pouco do lado técnico, para deixar aflorar os sentimentos da criança que se deliciava e adormecia com os poemas declamados pelo meu pai. Esta mudança não pode ser feita num passe de mágica. Porém tentarei avançar um pouco na estrada de sonho, como meu pai sonhava. E ele sonhou muito. Um destes sonhos era ver reconhecido o valor literário do seu bisavô, José Coriolano de Souza Lima.

Eu e o meu chapéu de Engenheiro.
Mas quem foi ele? Foi um grande poeta, autor de mais de 250 poesias. Nasceu em Crateús, em 29/10/1829, onde habitaram os índios Carateús, outrora chamada Povoação de Piranhas e, posteriormente, Vila do Príncipe Imperial. Sétimo e último filho de Gonçalves Correia Lima e Anna Rosa Bezerra. Descende, como eu, do primeiro Mourão cearense: Alexandre da Silva Mourão (I). A sua avó paterna, Joana Batista Correia Lima, era neta desse primeiro Mourão, filha que era de sua única filha do primeiro casamento, Maria Coelho Franca.

Em 1870 os amigos fizeram publicar parte de suas poesias, com o título: “Impressões e Gemidos”, escolhido por José Coriolano atendendo a sugestão do seu pai. O plano era publicar seus originais, escritos de próprio punho pelo poeta, em dois volumes. O primeiro veio a lume com a ajuda do Governo do Piauí. O segundo nunca chegou a ser publicado, por não contar mais com o apoio oficial. Como houve uma mudança na direção da Provínicia, o novo Governo decidiu não patrociná-lo (segundo volume), por não concordar com as idéias republicanas do poeta e de seus amigos. Foi, portanto, vítima da ignorância de uma censura política que, nos anos seguintes, tanto se repetiu na história brasileira. A viúva, com cinco filhos menores, não tinha recursos para arcar com a publicação.

Em 1973 o Governo do Piauí, na gestão de Alberto Silva, promoveu uma nova edição de Impressões e Gemidos, com o título: Deus e a Natureza em José de Coriolano. O Piauí o considera “o Príncipe dos Poetas Piauienses”, pois na época em que viveu (1829 a 1869), Crateús, sua cidade natal, pertencia àquele Estado. A passagem para o Ceará deu-se em 1880.

As duas publicações das poesias de José Coriolano. A de 1870 e a de 1973
Para não ser repetitivo, deixo para um seu grande amigo, David Moreira Caldas, a função de falar um pouco mais sobre a sua biografia. Transcrevo, assim, a introdução contida no livro Impressões e Gemidos, da edição original, que o meu pai guardou, com o maior zelo, desde que o recebeu de presente de um amigo, em 1942, quando ainda residia no Crato.

Os originais, manuscritos, ficaram com a família e ignorados por longo tempo. Na década de vinte, do século vinte, o meu pai, ainda adolescente, ao fazer uma visita à casa de sua avó materna (Maria Gerson de Souza Lima – Mãe Cotinha), filha do poeta, encontrou uma garota recortando umas figuras de um manuscrito. Ao verificar do que se tratava, tomou um grande susto. Eram, simplesmente, os originais de Impressões e Gemidos. José Coriolano fazia uns desenhos com pirógrafo ou colava alguns decalques coloridos em cada poesia. A garota estava recortando as figuras para brincar e já tinha feito um grande estrago. Incontinente, meu pai guardou-os, preservando-os, como uma relíquia, até o final da sua vida. Poucos dias antes de sua morte passou-me a responsabilidade de conservá-los.

Originais da poesia Grandeza de Deus, de próprio punho do poeta. Percebemos um decalque colorido que a garota estava recortando, quando o meu pai percebeu.


Meu pai, em foto da época de noivo da minha mãe e iniciando os seus primeiros versos, inspirados no bisavô poeta.
Nos dois últimos anos da vida do meu pai (faleceu em 12/10/2001), como uma forma de manter sua mente ativa, passei a conversar com ele sobre dois assuntos que o interessavam sobremaneira: a poesia de José Coriolano e genealogia. Comecei a compulsar os originais salvos por meu pai, percebendo, então, terem restado 49 poesias inéditas. Tentei sensibilizar o prefeito de Crateús, sua terra natal, para criar um memorial no qual a obra do poeta pudesse ser estudada. Ao ler para o meu pai o “e.mail” enviado, notei que os seus olhos brilharam de alegria, enquanto balbuciava um “muito bom”, diante da perspectiva da obra do seu bisavô ser finalmente reconhecida (após quase 150 anos). Isto me emocionou profundamente! Motivado por este seu desejo, resolvi levar adiante a idéia da publicação de todas as poesias de José Coriolano, no intuito de prestar uma homenagem póstuma ao meu pai e também ao poeta José Coriolano, meu trisavô. Meu irmão Raimundo Nonato Mourão, residente em Teresina, passou a me dar apoio e incentivo. Inclusive, buscou sensibilizar a intelectualidade local, na busca do apoio necessário para esta publicação. Agora, publico na Internet, ficando acessível ao mundo todo. Por coincidência, no dia 24 de agosto de 2008, aniversário do falecimento do poeta, exatos 139 anos.

Por seguidas semanas me dediquei e me deleitei com este trabalho. Para tanto, contei com a inestimável colaboração da minha esposa, Edméia Teixeira Mourão, profunda conhecedora da técnica e da sensibilidade poética.

O que a princípio consistia em deslindar a grafia, a ortografia, o vocabulário do poeta e do período em que viveu, foi se transformando em uma grande admiração. À medida em que me aprofundava na leitura de suas poesias, comecei a perscrutar os mistérios daquela alma sensível. A sua filosofia de vida, o temperamento apaixonado, a grandeza interior, a imensa cultura humanística, as idéias, a capacidade de amar deste antepassado que até então era simplesmente o trisavô poeta, me impressionaram! E, o debruçar-me sobre os originais num trabalho de resgate cultural e, vezes outras, de restauração, juntando fragmentos de papéis desgastados pelo tempo, fez-me sentir remontando a minha própria história. Muitas vezes, ao transcrever uma poesia inédita há 150 anos, tinha a sensação de que o poeta estava renascendo, reescrevendo-a agora, em um computador. Posteriormente, ao ouvir fitas gravadas por meu pai, descobri duas poesias do Coriolano, as quais ele musicara. Papai aprendera essas músicas com sua mãe (Maria Coriolano de Souza Mourão), e com elas embalava seus filhos. Com uma forma de perpetuar as músicas o meu pai, ainda jovem, solicitou ao maestro da Banda de Música de Crateús para transcrever em pauta musical, que reproduzimos nesta edição.

José Coriolano, como disse, era um apaixonado. Um apaixonado pela vida, pela realidade que o cercava. Preocupado com os problemas políticos e sociais de sua época que, guardadas as devidas proporções, são de certa forma atuais. Era um abolicionista e republicano. Entusiasta pela natureza, hoje seria um ecologista atuante. Com sua lira, pintou-a com cores tais, que quase podemos ver as campinas, os prados verdejantes, as fontes, as flores. E, se apurarmos o ouvido, nos deleitamos com os maravilhosos trinados dos pintassilgos, rolinhas e sabiás!

Apaixonado, sobretudo, por Maria. Maria de tanta dor. Maria de tanto amor. E o amor era tão intenso, tão abrangente, como declara, em um de seus poemas:
“Sim, Maria, meu anjo, terno encanto!
Quanto te amo, dizer não sei, não posso.
É amor que não pode ser descrito
Porém nele o rigor d’ausência adoço!”“.

Homem dotado de uma profunda fé e sentimento cristão escreveu belíssimos poemas dedicados a Deus. Porém, mesmo nas poesias comuns, a sua fé e os seus sólidos princípios morais perpassam nitidamente.

Em uma carta do poeta a um amigo, ele conta que o marco inicial da cidade de Crateús foi a construção de uma casa para abrigar os frades franciscanos, que foram ao local para a missão de evangelização. Posteriormente, segundo ele, neste mesmo local foi erigida a igreja que hoje é a Matriz da Diocese. E neste mesmo sítio santo, onde nasceu a sua Crateús, os seus contemporâneos, como uma subida honra, decidiram depositar os seus restos mortais. Faleceu em 24 de agosto de 1869.

Ivens Roberto de Araújo Mourão
Trineto do poeta


Introdução

Como introdução, utilizo dois depoimentos feitos nas duas publicações anteriores das poesias de José Coriolano. O primeiro, de 1870, escrito por David Moreira Caldas que se auto denomina: “um dos mais obscuros amigos do poeta”, transcrevo na sua totalidade.

Na edição de 1973, foi acrescentado um texto de autoria de Celso Pinheiro Filho, grande pesquisador da história e literatura piauienses. Deste, apresento um resumo, restrito a informações complementares da biografia do poeta.

· Depoimento de 1870, de David Moreira Caldas (*)
(*) David Moreira Caldas foi o grande jornalista republicano do Piauí, denominado o profeta da República. Nasceu em 1836 e faleceu em 1878. Foi vítima, quando do seu falecimento, da intolerância política devido às suas idéias. Foi-lhe negado o direito de enterro no cemitério e de receber os sacramentos da igreja, apesar de ser católico praticante... (Nota do Coordenador)

Em falta de pena mais competente, depois da nímia bondade de quem melhor poderia fazê-lo, achamo-nos encarregado de esboçar alguns traços de vida e do estilo de Dr. José Coriolano de Souza Lima, cujas obras acabam de ser colecionadas por um ilustre e sincero amigo do poeta, empenhado em dar-lhes a publicidade póstuma (*), de que são dignas.
(*) Nem todos os escritos do falecido Dr. José Coriolano se achavam inéditos quando teve lugar a morte: ele fizera imprimir alguns deles em jornais e revistas literárias, tais como o Ateneu Pernambucano, Ensaio Filosófico, Revista Acadêmica, Arena, Íris etc.

Este nosso humilde escrito servirá, pois de introdução a este belo volume, cuja impressão, assim como a do seguinte, fora contratada com um dos mais hábeis editores do país, o Sr. Berlamino de Matos, cuja morte prematura, ultimamente, a arte tipográfica deplora.

Procuraremos ser conciso, quanto nos for possível, para que não aconteça roubarmos grande espaço a quem tanto precisa dele; visto como, o fecundo autor dos cantos à “Aurora” à “Tarde(*)” à “Tempestade” e a “Grandeza de Deus” – chegou a produzir cerca de duzentas e cinqüenta poesias, que talvez não possam ser contidas em menos de três tomos do formato deste – com o qual o nosso escrito tem tanta conexão como a viçosa parasita com a árvore copada, donde extrai a seiva de que se alimenta.
(*) Hino à Tarde, é o título correto. (Nota do Coordenador)
Entre os territórios do Ceará e do Piauí existe encravado um belo vale, onde outrora habitavam os índios Carateús, e onde mais tarde assentou-se a povoação de Piranhas, depois Vila do Príncipe Imperial.

A orografia parecia destiná-lo a fazer parte da primeira daquelas províncias, porém a hidrografia, por um capricho da natureza, resolveu a questão – a favor da segunda. (*)¨
(*) Dez anos após a publicação da primeira edição de Impressões e Gemidos (1880), Crateús passou a pertencer ao Ceará em troca de Luís Correia, possibilitando acesso ao mar para o Piauí. (Nota do Coordenador).

O Rio Poti, como uma árvore frondosa, ramificada por todo o vale, entronca-se na Serra Grande; forceja-lhe sobre um lado, rasga-lhe as duras entranhas – até que abre funda passagem através dela: corre então para o poente, onde vai, com os últimos raios do sol, confundir suas águas com as do majestoso Parnaíba...

Foi ali, naquele formoso sertão, que viu a luz primeira o Dr. José Coriolano de Souza Lima, na mesma fazenda em que

“.... num massapé torrado e brusco
Nasceu o valoroso touro fusco.”

por ele cantado num poemeto(*), que consideramos de muito merecimento.
(*) Touro Fusco é o nome do poemeto (Nota do Coordenador).

De sua saudosa infância, recorda-se o poeta – com uma reminiscência tão feliz que ele, cantando o seu pátrio ninho, assim se exprime, com muita naturalidade (*):
(*) Trecho do poema Crateús. (Nota do Coordenador)

“..... terra, onde a alvorada
Primeira pra mim raiou!
Onde a primeira morada
Meu pai querido assentou!

Onde o galo, à madrugada
Cantando me despertou!
Onde à primeira alvorada
Ouvi-lhe o có-corô-cô!


Como são onomatópicos estes versos, como são duradouras as impressões recebidas no berço!

É que as primeiras sensações da vida quando o entendimento desabrocha, deixam traços indeléveis na idéia tenra e n’alma ainda virgem: podem vir depois os gemidos na idade dos desenganos! Podem vir; que não conseguirão fazer esquecer os sons queridos que pela primeira vez ouvimos, dali, do regaço materno que é todo – conchego e carícias.

Foi José Coriolano o sétimo e último filho que tiveram de seu consórcio – Gonçalo Correia Lima e D. Anna Rosa Bezerra.

Aos dez anos de idade, como ele próprio descreve nuns versos inéditos, e num esboço de cena íntima, falava-se que o Benjamim de D. Anna Bezerra seria o noivo de uma graciosa menina que tinha apenas dois anos de idade, sua sobrinha “Maria”, a quem mais tarde celebrou em seus versos: nestes, por exemplo, (*):
(*) Poema extraviado. (Nota do Coordenador)

“ eu contava dous lustros, tu dous anos,
Quando nosso himineu foi resolvido;”

Este casamento foi com efeito realizado em 24 de janeiro de 1859, quando o poeta passava em Crateús as férias de seu último ano de curso acadêmico. Tinha então perto de trinta anos de idade, como se vê do seguinte trecho de uma carta sua, escrita, seis a sete meses depois, a seu muito estimado e digno amigo o Dr. José Manuel de Freitas: “...... Lembro-me ainda que no Príncipe Imperial residi até a idade de 16 anos, há quase 14 que minha moradia se acha distribuída por São Raimundo Nonato, pelo Maranhão, por Pernambuco.”

Como ainda se vê do referido trecho, muito moço deixou José Coriolano a sua herdade natalícia, situada:


“Num terreno coberto de mimoso”,
“........... a fazenda Boa Vista,”


para transportar-se àquela longínqua povoação do alto Piauí, que ainda em 1843, se não falha a memória do poeta, é que nela se construía a primeira casa, onde hoje é a Matriz (*), com o fim de receber dois missionários capuchinhos que ali estabeleceram um dos pontos de suas prédicas para o povo circunvizinho.

(*) Matriz onde estão depositados os restos mortais do poeta (Nota do Coordenador).

O poeta e sua esposa, Maria Cisalpina, sobrinha
(filha de seu irmão Gonçalo) e sua
grande musa inspiradora. (Nota do Coordenador)

Para São Raimundo Nonato, elevado à vila em 1850, transportou-se, com efeito, o adolescente, em companhia de um seu respeitável irmão, o Revd. Cônego Sebastião Ribeiro Lima, vigário, ainda hoje(*), daquela freguesia..
(*) Era 1870. O cônego faleceu em 27/3/1883. (Nota do Coordenador).

É assim que o poeta descreve a sua partida (*) para a povoação que noutro tempo “Genipapo” se dizia:
(*) Poema completo extraviado. Restam as estrofes aqui transcritas. (Nota do Coordenador).

Dos pátrios lares saudoso,
Chorando me despedia;
Saudosos meus pais deixava,
À longe sertão partia.

De meus irmãos me apartava,
Deles que eu tanto queria,
Por seguir a um somente
Que triste também partia.

A vila de S. Raimundo Nonato é descrita principalmente nas seguintes quadras, singelas, mas expressivas:

Depois de longa viagem
Eis que uma várzea se via,
Um povoado no fundo
Grosseiramente se erguia

Eram as casas pequenas
Sem ordem, sem simetria:
A telha cobria algumas,
A casca outras cobria.
...................................
A coisa mais pitoresca
Que no povoado havia
Era um grande juazeiro
Que entre dous oitões jazia.

Em 1851, o poeta, que então o era bem novel, achava-se na cidade de São Luís do Maranhão, onde compôs a sua endecha, intitulada “Mudanças” na qual nos parece uma das melhores poesias deste volume.

A imensa saudade que se sente quando ausente de uns belos olhos que a primeira vez nos fascinaram, produziu sempre dessas mudanças, para exprimir as quais não basta sentir as contrações das fibras mais delicadas dum coração virgem: é preciso, sobretudo, o fino tato do poeta, único intérprete verdadeiro duma alma apaixonada!

Quando ao mancebo pesa a soledade, como a Adão no paraíso, suspirando por uma terna companheira, então é chegado o momento de sentirem-se aquelas “mudanças” que José Coriolano sentiu aos vinte e um anos de idade.

No ano seguinte, ainda no Maranhão, onde estudava preparatórios, exercitava ele o seu estro, cantando as matas de S. Raimundo, que “têm o frondente umbuzeiro.”
Foi esse mesmo tempo que o poeta, ávido de emoções eróticas, como soe o homem ser na juventude ardente, desfez-se em suaves melodias, dirigindo-se assim ao anjo de seus dourados sonhos (*):
(*) Careço de Teu Amor, é o nome da poesia. (Nota do Coordenador)

Eu careço de ti, ó minha amada,
Como da rotação carece a terra,
Como d’alma carece o corpo imbele.
Como o mundo – de tudo quanto encerra.

Eu careço da luz desses teus olhos
Como as plantas da luz do sol carecem,
E da gota do orvalho a flor no prado.
E da mansão celeste os que falecem.


Além desta mimosa poesia, de que ainda nos ocuparemos, o poeta escreveu outras, menos importantes, na mesma cidade e no mesmo ano já citados, - notando-se, porém a que tem por título “A donzela e a sensitiva”, que é um esboço ligeiro, mas correto e gracioso, do caráter de nossas jovens e recatadas sertanejas.



Cerca de um ano mais tarde, em 1853, J. Coriolano compôs uma pequena e engraçada fábula, em algumas oitavas líricas, a qual denominou “A Rosa Defendendo-se”. A moralidade dela é nada menos que um conselho salutar a toda moça prazenteira, parecida com uma rosa, a quem o poeta previne para que, com os seus espinhos, se ponha em defensiva contra qualquer audacioso que a queira colher, por mero passatempo, para logo depois abandoná-la, desfolhada,... apenas sorvido o mais puro aroma!

Em 1854, J.Coriolano achava-se em Olinda, onde ia concluir os seus estudos de Humanidades, - para no ano seguinte matricular-se na faculdade de direito, o que de fato realizou-se.

O poeta, quando estudante no Recife. Esta foto está impressa em vidro,
num pequeno estojo, com cobertura de veludo.
Provavelmente presenteou à sua amada. (Nota do Coordenador)

Na formosa Marim dos Caetés, o nosso poeta compôs então as suas mais belas poesias, tais como – a Grandeza de Deus, o Hino à Tarde e A Tempestade, que oportunamente analisaremos.

Ainda na mesma cidade e no citado ano, o poeta, que começava a tornar-se fecundo, compôs outras obras, entre as quais nota-se O Correr da Vida, bem como a Virgem e a Roseira, que os leitores verão neste volume.

Ao tempo da transferência da faculdade de direito, de Olinda para Recife, e quando o nosso poeta ia cursar ali o seu primeiro ano, teve ele de desferir no alaúde as notas mais repassadas de sentimento, ao deplorar a morte do afamado cantor de Camões, e, meses depois, a de dois moços seus colegas d’academia, Manuel Alexandrino da Silva Girão e Manuel Rodrigues Machado(*).
(*) Foram cinco denominadas Nênia. Apenas duas publicadas: para Girão e o Pai (Nota do Coordenador).

Nessa ocasião, seu nobre estilo mostrou-se pomposo e severo, jamais contrastando com a gravidade do lutuoso assunto; seus pensamentos revelaram-se tão expressivos – quanto a mais sincera e profunda dor, aquela que se estampa no demudado semblante, dando testemunho fiel do coração pungido, ou que se denuncia ingenuamente – na voz angustiada, que provoca as lágrimas e convida aos soluços!
Como é tocante, por exemplo, o desparzir de perpétuas sobre a sepultura do jovem Girão, - seu amigo e companheiro de estudos!

Como são sublimes as três quadras finais!

E na ode ao grande Garret (*), onde o poeta deixa-se rápido transportar pela mais viva fé na imortalidade; como é ele arrojado quando repele o fantasma da dúvida, que de súbito se lhe apresenta ao espírito, qual um dragão aéreo, para cortar-lhe em meio o altanado vôo!
(*) À Morte de Visconde de Almeida Garret, é o título. (Nota do Coordenador)

Mas, ele vence como o arcanjo; servindo-se apenas de um raio de inspiração:

Quando a morte consegue extinguir a vida do sábio, fica-lhe renome eterno: assim, pois:

No mesmo ano de 1855, J. Coriolano compôs a sua mais enérgica poesia; marselhesa que convém a todos os povos, sátira brilhante, e manifesto republicano de subido valor, que tem por título “O Rei”.

De sáficos e alexandrinos soberbos, fez o poeta uma vergasta magnífica com que se propôs fustigar aos tiranos, de todos os tempos, tão dignos de condenação na memória dos homens como no divino areópago.

O poeta identificado com o direito, com a justiça, e com a razão mais depurada, evoca os terríveis espectros de Alexandre, Tibério, Calígula, Messalina, Nero e Bonaparte – para deles se constituir o julgador inflexível, bem como dos seus iguais.

Vê-lo-emos resumir a justa sentença neste verso memorável:
“História dos monstros – dos reis é a história”

É verdade que ele, apenas, menciona os nomes de cinco grandes homens e de uma célebre heroína, aquela que fez “lupanar do império” – mas isto é quanto basta: fora longo chamar a todos para lançar-lhes em rosto os horrorosos crimes...

Tamerlão negaria que tivesse ele mandado enterrar vivos a dez mil dos habitantes da cidade de Sebsvar!... Contestaria que em Deli houvesse mandado degolar a cem mil prisioneiros; ou que em Bagdad tivesse erigido um obelisco de noventa mil cabeças cortadas!

Sapor I, rei da Pérsia, talvez que ainda hoje se ufanasse de haver feito do imperador Valeriano o seu estrado ou degrau de montar a cavalo; até que um dia, após anos de torturas, lembrando-se que faria um belo efeito a vista da pele de seu rival suspensa num templo, - para esse fim mandou que o esfolassem vivo!...

Não sendo culpa nossa que o poeta tivesse a sem razão de professar idéias políticas, e, sobretudo das mais perigosas: convém que façamos a tempo a seguinte declaração, para que não pareça que abusamos da atenção dos leitores para pregar-lhes assim o nosso evangelho, fora da competente tribuna.

Por nossa vez fizemos menção d’alguns atos cruelíssimos de dois reis bárbaros, como não os haverá mais, talvez, se consultaremos os espíritos propensos a crer na perfectibilidade humana; entretanto, o fizemos pela necessidade de prevenir a suspeita, que porventura pudesse ter algum leitor, menos versado em história, a respeito do nosso inspirado poeta, supondo-o capaz de caluniar aos augustos soberanos do mundo, no verso supramencionado.

É verdade que o próprio poeta não se descuidou de declarar logo, sem demora, que da totalidade dos reis tirava-se:

“Um bom dentre centos...”

Mas, é preciso lembrar, com o almanaque de Gotha nas mãos, que a terra povoa-se na razão de duas ou três gerações para cada série de cem reis de toda a sorte, - e que para uma só nação chegar a contar de oito a nove dúzias de “mui altos e mui poderosos” Senhores, - torna-se necessário que uma ampulheta se resigne a vazar areia por espaço de quatorze a quinze séculos!...

Passando as férias do 1º ano de direito, na cidade de Olinda, J. Coriolano teve a feliz lembrança de cantar um touro valente, que ele, na sua infância havia conhecido e admirado.

Apreciemos a mor parte da pitoresca descrição que ele próprio faz da origem da singular inspiração que produziu esse poemeto, no qual se vêm graciosamente casados os gêneros épico e bucólico.

Eis o que disse o poeta, dois anos mais tarde, quando tratou de publicar o “Touro Fusco”.

“... Em outra qualquer parte poderão escassear as inspirações, poderá gelar-se o estro; porém nessa encantadora cidade, tão bela e deliciosa como o seu mesmo nome, (Ó linda) tão pitoresca e poética, como o panorama que ela desenrola aos olhos do poeta e do pensador. – Sempre as inspirações serão freqüentes e o estro vigoroso, sempre o filho saudoso, o irmão terno, o amigo ausente, o amante apaixonado, encontrarão objetos, receberão impressões que lhes façam recordar os mimos, as delícias, os sonhos, os amores de uma idade que já não é do presente.

Aí eu estava, um dia, embriagado na saudosa contemplação dos meus primeiros anos.

Lembrei-me da Boa Vista antiga fazenda de meus queridos pais, onde eu dera o primeiro grito da infância, onde eu vira pela primeira vez a luz.

Nela havia eu aprendido a sorrir com minha doce mãe, - a fazer-me esperto com o meu querido pai e a brincar com os meus irmãos e com meus amigos.

Nela havia eu visto pela primeira vez nascer o sol e a lua, por cima da pitombeira que havia em frente da nossa casa.

Nela havia eu visto pela primeira vez cantarem os passarinhos, saltando alegres pelos ramos das laranjeiras que nos davam os seus amarelos frutos.

Lembrei-me que nela tiveram meu pai um “touro fusco”, que fora enjeitado, feio, barrigudo e cabeludo quando pequeno; - bonito, delgado e cachaçudo quando grande.

Lembrei-me que esse touro havia conseguido muitas vitórias, por mim testemunhadas; que nesses momentos sublimes de triunfos – meu coração pulava e se expandia de gosto.

Lembrei-me finalmente que aquele touro tinha um urro tão saudoso e retumbante, que eu ao ouvi-lo estremecia como a terra e tremia como os matos.

Cantei esse touro em algumas oitavas rimadas. Com isto fiz mais do que arquivar uma simples inspiração: levantei, à memória desse valente e brioso animal, um monumentosinho grotesco cujos hieróglifos, talvez pelo autor somente entendidos, serão para mim uma fonte inexaurível e deleitável de belas tradições, de queridas reminiscências, de infinitas associações de idéias.”

Depois do “Touro Fusco” o nosso poeta escreveu, em 1856, entre outras, as seguintes interessantes poesias: “Coragem”(*), por ocasião do cólera morbus, do qual, por sua vez, foi também acometido.
(*) Existem duas outras poesias inéditas, com o título Coragem. Uma delas incompleta. (Nota do Coordenador).

“A Vítima do Poder” uma das mais sentimentais, e aquela que, ao cabo de quatorze anos, nada tem desmerecido de suas vivas cores, antes – dir-se-ia ser a mais recente de suas obras. (*)
(*) Passados mais de cem anos ainda mantém o mesmo valor. (Nota do Coordenador)

A Virgem do Crateús, a Noite de S. João, Beijos Mudos e Gratidão (*).
(*) Extraviou-se esta poesia. (Nota do Coordenador)

Esta última foi oferecida ao seu colega J. M. de Freitas, que antes lhe havia dedicado uma outra que termina assim:
“.........................................

Não mandas os teus gemidos
Ao régio passo do rei;
Só cantas a nossa pátria,
Nossa gente, nossa grei;
Só vives pra essa santa,

Que tua lira decanta;
Essa virgem do sertão,
Que rica de poesia,
Se embala com harmonia
Nas asas da viração.

Só cantas a nossa pátria,
O nosso belo – Brasil -,
E esse teu berço querido,
Que vestes de cores mil!

Só cantas a liberdade,
Por amor da humanidade,
Só vives de inspirações,
Por amor dessa donzela,
Sim! Dessa moça tão bela,
A quem rendes ovações.¨

Minha província... coitada!
Como ainda vive, não sei!
Mas contente ei-la dizendo:
- Já tenho um poeta rei! -
Ergue-te, sim prasenteiro,
E separa o nevoeiro,
Que te faz escurecer, -
- Piauí! – prossegue ovante!
Tens uma lira gigante,
Que te faz engrandecer!

A força da inteligência
Tudo e tudo faz curvar,
E ninguém mais do que o talento
Pode o teu nome exaltar.
Não vês lá esse colosso,
Que jamais voltou o dorso,
Esse outrora – Portugal?
Pois sua fama lá foi-se,
Já sua glória acabou-se,
Camões é seu pedestal.

Assim, ó berço querido,
Ó meu terno e pátrio lar,
Se não tens altos tesouros,
Tens um poeta a cantar;
Um poeta que ao teu nome
Há de dar alto renome;
Um poeta que nasceu
À sombra dos teus coqueiros,
Das murtas e pequizeiros,
Que cobre o teu belo céu.

Ó gênio da minha pátria,
Poeta do meu sertão,
Prossegue avante, não temas
Da sorte o duro farpão.
Se Dante e Camões morreram,
Por misérias que sofreram,
Que te importa? – Privações
Não aterram brasileiros,
Patriotas verdadeiros,
Nascidos lá nos sertões.

Eia! Canta essa província,
Seus costumes, tudo seu:
- As caças, os caçadores,
O pintassilgo e o sofreu;
Canta o rio sonoroso,
Teu amigo prestimoso,
- O belíssimo – Poti -
Teu Crateús também canta,
- A terra da tua santa,
Canta todo o – Piauí!-”

Ao Dr. J. Manuel de Freitas, cabe, pois a glória de ter sido o primeiro que apreciou devidamente o talentoso poeta piauiense, - seu conterrâneo, amigo e companheiro d’academia: é ainda a esforços deste distinto cavalheiro que vão ser publicadas as obras daquele a quem sempre dedicou a mais cordial afeição e a mais sincera admiração.

Em 1857, J. Coriolano escreveu várias poesias, das quais a mais bela tem por título “Aurora”.

Depois desta, as mais importantes têm por título: Primeiras Águas, e Breve Notícia do Século XIX (*).

(*) Poesia extraviada. (Nota do Coordenador).

De 1858 datam duas poesias suas, muito notáveis: Hino ao Criador, e a Filha do Deserto(*): a primeira sobretudo, deve-se considerar como das melhores, devidas ao seu estro.
(*) Poesia extraviada. (Nota do Coordenador).

J. Coriolano tendo-se casado no sertão, em principio de 1859, com sua sobrinha D. Maria Cisalpina Correia Lima, - como já o dissemos noutra parte desse nosso humilde escrito, e havendo levado a Exma. Esposa para Pernambuco, onde tinha de cursar o seu último ano de direito: aí chegando, continuou a cultivar as musas; mas estas, ao que parece, mostraram-se então um tanto despeitadas com o poeta, não inspirando-o mais quanto era de costume...

Também havia razão para Erato e Calíope arrufarem-se: diz-nos a mitologia que as deusas não deixam de ser zelosas e vingativas.

A 6 de dezembro o poeta faz ato de seu 5º ano de direito, sendo-lhe, dez dias depois conferido o grau de bacharel em ciências sociais e jurídicas.

Sabemos que da consideração que em geral os lentes prestavam a ele, que, por seus constantes e dolorosos sofrimentos físicos, desde o começo de seus estudos, nem sempre comparecia à aula em estado de poder ser chamado à lição; mas, era tal o conceito em que era tido que, nem um de seus mestres lhe queria receber atestados médicos quando, por muito incomodado, deixasse de comparecer ao menos no edifício da faculdade.
O muito digno Sr. Dr. Bandeira de Melo tinha sempre o cuidado de indagar pela saúde de J. Coriolano, e o ilustrado Sr. Dr. Aprígio Guimarães, que o argüiu em direito administrativo, teve ocasião de chamá-lo talentoso e progressista.

Nesse ano de 1859 formaram-se na faculdade de direito do Recife – três moços poetas que muito se haviam distinguido entre os seus colegas: José Coriolano de Souza Lima, natural do Piauí; Pedro de Calazans, filho de Sergipe, - e Franklin A de Menezes Dória, que viu a luz do dia na Primogênita de Cabral.

Não daremos a primazia a nenhum deles; mas é certo que todos os três merecem figurar no Parnaso brasileiro, ao lado de Gonçalves Dias, de Domingos Borges de Barros etc.

Com a formatura de José Coriolano findou-se a segunda fase da vida artística ou literária do poeta, considerando que fosse a primeira começada com os seus ensaios mais antigos e terminada pela poesia que tem por título “A Rosa Defendendo-se”. Compreende, pois a segunda fase, a mais plena e brilhante, todo o tempo que ele passou na província de Pernambuco, que foram seis anos, salvo a interrupção de algumas férias passadas fora, na Paraíba, no Ceará, e província natal (*).
(*) À época Províncias, hoje Estados. (Nota do Coordenador)

De 1860 em diante, data o terceiro e último período, durante o qual o poeta compôs poucas poesias, - passando-se alguns anos em que nada produziu de notável. Durante esses dez anos, decorridos desde sua saída de Pernambuco até seu falecimento em Príncipe Imperial, vê-lo-emos apenas compor, - em 1861, estando em Teresina, Quadras à Meia Noite; em 1867, em Pastos Bons, uma interessante narrativa metrificada, que tem por título “Eugênia Belém e Narciso Cordo”, episódio romântico da Guerra do Paraguai, no qual se conserva a memória dum distinto patriota piauiense, morto na campanha de 1866, “O Bravo Francisco Luís(*)”, que partira da vila das Barras em 26 de abril de 1865, capitaneando quarenta voluntários da pátria – alistados naquela localidade, onde deixava mulher e muitos filhos menores, para nunca mais os tornar a ver!...
(*) Poesia extraviada. (Nota do Coordenador)

De 1868 datam duas suavíssimas poesias de J. Coriolano, uma tendo por título “Como Te Amei, Como Te Amo” – e a outra “Gozemos”.

Lendo-as, a modo que se lhes sente um odor de mirto, de rosas e de jasmins, que enleva os sentidos e nos transporta vaporosamente a uma nova Citera, onde se respira um ambiente mais puro do que na do paganismo.

Em 1869, ano que tão fatal deveria ser ao ilustre cantor, compôs ele três poesias recomendáveis; sobretudo por serem as últimas de seu estro admirável, que estava tão prestes a extinguir-se com a preciosa existência. Os últimos cantos do cisne de Crateús foram estes:


“Colóquio Amoroso”(*)
“Nênia ao Dr. J. Vilela”
“Só Eu Não Morro!...”

Para completar a nomenclatura de todas as suas poesias que mais nos agradam, citaremos ainda mais uma dúzia, sem declaração das épocas a que pertencem: - A Noite, - As Aves da Minha Terra, - A Lua, - O Avarento, - Só Um Anjo Será, - O Canto do Recruta (*), - A Escrava, - Como a Flor do Bulebule, - O Inverno (*), - O Enfermeiro, - O Canto do Soldado, - Com Pouco Me Contento.
(*) Poesias extraviadas. (Nota do Coordenador).

Além das poesias, há também de J. Coriolano, vários escritos em prosa, publicados em jornais literários e políticos. Os principais são estes:

“O Casamento e a mortalha no céu se talha”, romancesinho de enredo simples, mas que prende bastante a atenção, e no qual se encontram belezas tais como cena do desmaio de Sílvio, no colo de Angélica, posição em que, ao tornar a si “podia ver o seio da virgem arfando, como duas pequenas galeras em mar tempestuoso”.

“Frei José de Santa Rita Durão” ensaio crítico sobre o ilustre autor de “Caramuru” – onde se notam os seguintes trechos que nos apraz reproduzir aqui:
“Não foi somente por esta tendência bem característica do nosso insigne épico contra as divindades do paganismo, que ele se tornou credor dessa superioridade relativa que nele enxergamos; não: o distinto cantor de Diogo e da interessante Paraguassu (a quem descreve tão bela, tão simples, tão sensível, tão caroável aos preceitos de seu modesto e pudico amante) sobressai ainda a muitos dos seus coetâneos quando a regularidade de suas estrofes, não introduzindo nelas senão geralmente palavras graves, que são por certo as que mais se casam com os assuntos grandiosos, com as epopéias.”

É admirável que um poema de oitocentas trinta e quatro estâncias não tenha uma só que seja aguda!

É admirável que todo ele seja grave!

O sábio e respeitável senhor Castilho, em seu precioso opúsculo – Tratado de Metrificação Portuguesa – obra que tanto tem de pequena quanto de profusa em conhecimentos elevados e incansáveis vigílias, nos diz que a Tomás Antônio Gonzaga, na sua Marília de Dirceu à imitação do popularíssimo poeta italiano – Metastasio, - devem os portugueses a introdução da regularidade das estrofes. Entretanto, sem que tenhamos em vistas negar a autenticidade de asserção, julgamos conveniente dever ponderar que Durão é anterior ao melodioso cantor da bela mineira, e essa perfeição poética, ou bom costume, como apropriadamente chama aquele autor, já anteriormente deviam admirar no imortal Caramuru.”

“O Sr. F. Muniz Barreto. – Como Poeta”,é outro ensaio crítico de J. Coriolano que merece ser lido. – É pena, entretanto, que a análise de Bocage – brasileiro não fosse além da poesia que tem por título – A Mulher -. É verdade que, no entender de nosso Aristarco, é ela, por si. só bastante para engrinaldar uma fronte de poeta.

“A Marília de Dirceu”,vigorosa defesa que o nosso compatriota fez à memória da célebre noiva do mavioso Gonzaga: é notável não só pela idéia, como por aquele que pretendeu ridicularizá-la, um talentoso crítico português, é aí combatido com muita vantagem, ao que parece, pelo escritor piauiense.

O suicídio; o homem é bom ou mau segundo a educação que recebe; o papa é infalível na canonização dos Santos; e a liberdade de imprensa - foram outros tantos assuntos por ele escolhidos para sua estréia na prosa; que aliás não cultivou em larga escala, se bem que tivesse uberdade de pensamentos, riqueza de estilo, e avultado conhecimento da língua vernácula, que fazia timbre de escrever expurgada desses ouropéis estranhos com que outros cuidam melhor ataviá-la.

Ousamos afirmar que nem um jovem escritor brasileiro, contemporâneo, escreveu com tanta pureza de dicção como J. Coriolano.

Agora, posto que ligeiramente, vamos ocupar-nos em descrever de que modo escoou-se o último decênio da existência desse homem, ou antes desse varão, a quem a fortuna não tendo prodigalizado mais do que o gênio, - aliás o maior dote que possuía para oferecer-lhe, bem podia dizer como Simonides “Mecum mea sunt cuncta”, para depois pedir, como Álvares de Azevedo, que piedosa mão lhe escrevesse este breve epitáfio, epílogo eloqüente de uma vida como a sua:

“Foi poeta, sonhou, e amou na vida”.

Em 1859 tiveram lugar vários fatos importantes da biografia de J. Coriolano: seu casamento; - o nascimento de sua primogênita, a 26 de outubro, em meio ao preparativo dos loucos festejos duma cidade que ia mostrar-se incoerente: - a recepção do grau de bacharel na faculdade de direito; - e a sua primeira eleição de deputado provincial, pelo terceiro círculo eleitoral, da província que se ufana de cantá-lo em o número de seus filhos mais dignos e mais ilustres.

Em julho e agosto de 1860 vemo-lo na capital da província, eleito vice-presidente da assembléia, e tomando parte nos trabalhos legislativos – até que se retirou para a comarca de Pìracuruca, da qual fora nomeado promotor público por aquele mesmo tempo.

Numa insignificante vila, situada ao sul da cabeça da supramencionada comarca, e a ela mesma pertencente, - na chã de uma pequena serra de ares lavados e salubres, - foi o poeta fixar a sua residência: aí felizmente, gozou de alguma saúde aquele corpo tão alquebrado pelas constantes moléstias e freqüentes lucubrações. Então, pode respirar mais livremente – o asmático, - como ele próprio se designava algumas vezes.

Foi nessa vileta, outrora chamada povoação de Matões (*), que, em 2 de janeiro de 1861, nasceu a segunda das seis filhas que o poeta teve de seu consórcio.
(*) Hoje Pedro II (Nota do Coordenador)

Em outubro de 1862, escrevendo a seu bom amigo, o Dr. Freitas, dizia ele assim, a propósito de sua nomeação de juiz municipal do termo do Codó, na província do Maranhão:

“Que remédio há senão aceitar esse lugar? Aqui estou quase sem pão...”


Entretanto, era ele verdadeiramente econômico, como soe ser um bom pai de família, ou, aliás, na acepção mais genuína daquele vocábulo: ninguém conhecia melhor do que ele, em tudo, o meio-termo, que faz a virtude; segundo o bem conhecido axioma latino que reza destarte:

“In medio consiste virtus”

Em fins de março de 1863 foi J. Coriolano tomar conta do juizado municipal de Codó, - onde sofreu ainda maiores privações do que na serra de Matões, ou vila de Pedro Segundo.

Se não fora muita indiscrição de nossa parte daríamos como prova de semelhante asserção – alguns excertos, na verdade amargos, de várias cartas dele, - dirigidas a esse Aquiles, que se encarregou de vingar-lhe a morte e de fazer-lhe magníficos funerais, por meio da publicação póstuma das “Impressões e Gemidos” – título que o seu querido Pátroclo havia escolhido em vida para esta coleção de poesias que vale, por sem dúvida, tanto quanto o precioso escudo dum herói da Ilíada...

De mais disso, que necessidade imperiosa haverá de fazer um quadro bem acabado, que represente fielmente os negócios domésticos ou “ménage” do poeta?

Qual tem sido a sorte da maior parte desses entes privilegiados que se chamam, - em Portugal, Camões ou Garção, na Itália, Torquato Tasso, em França, Gilbert, na Inglaterra, Chatterton?

Bem felizes ainda são aqueles que não chegam a morrer na dura enxerga de um péssimo hospital, ou que não se vêem reduzidos a lançar mão do suicídio como um recurso extremo e desesperado contra a desgraça.

Julgamos, entretanto, não haver inconveniente em dar a ler o seguinte trecho duma carta do poeta, datada de 4 de outubro de 1863, em que ele trata de seus incômodos e sugere a idéia de melhorarem a posição.

Diz ele assim ao seu já referido amigo:

“Apareceu-me ultimamente um tal entorpecimento no ouvido direito que estou perfeitamente mouco dele: sabe V. que assim começaram em Pernambuco meus males.

Sinto também dores por todo o corpo, fastio e até mesmo uma respiração mais difícil do que aquela que me trouxe o meu restabelecimento em Pedro Segundo. A palidez excessiva de meu rosto e um nervoso extraordinário, tudo me ordena que não permaneça em Codó.

A minha remoção para Caxias, quando ela se efetuasse, de que me serviria, se ali o calor é maior que aqui, e também doentio?

Quero obter minha remoção para o Príncipe Imperial.

O lugar está pacificado; lá tenho um irmão, que é o meu parente mais próximo; esse mesmo não é potência: é um pobre homem carregado de família; por que não poderei ser removido?

Depois acrescentava num post scriptum:

“No Príncipe Imperial tenho oito vacas para comer leite, e em último caso como-as – a elas mesmas.”

Três meses se passaram, até que, por Decreto de 14 de janeiro de 1864, realizou-se aquela suspirada remoção.

Em março achava-se na capital da província o novo juiz municipal de Príncipe Imperial, que seguia para o termo de sua jurisdição.

Por decreto de 1º de maio de 1865, José Coriolano foi nomeado juiz de direito da comarca de Pastos Bons, na província do Maranhão: era então presidente do conselho e ministro da justiça o nobre senador Francisco José Furtado que, nos consta, fazia do poeta o mais elevado conceito, apreciava-lhe as excelentes qualidades, e nutria a seu respeito os melhores desejos.

Feliz ou infelizmente para o poeta, o seu ilustre mecenas, depois daquele decreto não se conservou junto de Augusto mais do que oito dias.

J. Coriolano, que pela segunda vez havia sido eleito deputado provincial, durante a sessão legislativa de 1865, ocupou a cadeira de presidente entre os eleitos da província; merecida distinção com que o honraram seus dignos colegas.

Encerrada a assembléia, seguiu para sua comarca o novo juiz de direito de Pastos Bons, que ali chegou – cerca de cinco meses depois de nomeado.

Três a quatro anos viveu o Dr. José Coriolano naquela comarca, até que se aproximou o termo de seus preciosos dias.

Atacado de uma congestão cerebral, cujos efeitos foram pausados e prolongaram-se por três meses, pouco mais ou menos, até que afinal se resolveu pela morte, o Dr. J. Coriolano, logo em princípio da moléstia, transportou-se a Caxias, onde entrou em uso de remédios, aplicados pelos facultativos Drs. R. Mendes Viana e D. F. de Gouveia Pimentel Beleza.

Experimentando considerável melhora, e sendo-lhe aconselhado o ar livre de seu sertão, pôs-se em viagem para o seu Príncipe Imperial: passou então por Teresina, depois do meado de julho, e esteve ali alguns dias – hospedado em casa de seu compadre e amigo, o Dr. Freitas, bem conhecido dos nossos leitores.

A este - quase irmão – dirigiu ele a sua última carta em 9 de agosto de 1869, quinze dias antes de falecer. Nela referia que havia chegado ao lugar de seu destino no dia 1º daquele mês; que gozava de melhor saúde; que por aqueles onze, ou doze dias esperava que chegasse de Pastos Bons a querida esposa com as inocentes filhinhas: finalmente concluiu fazendo uma breve descrição do seu passadio, em que entrava, como elemento principal, a carne daquele “delicioso e engordador sertão, todo coberto de panasco pela seca, e mimoso durante o inverno”.A descrição terminava pelos banhos no açude do sítio denominado – Veremos -, duas vezes por dia. Depois disso, o poeta exclama, - todo cheio de animação: “Que vida, meu amigo!”

E, todavia, - seus dias estavam contados, até as últimas mealhas!... Aquela risonha esperança – era nada menos que o rosicler que precede o crepúsculo: já ele estava envolvido na penumbra das asas do anjo exterminador!

Com efeito, a sua hora tremenda chegou, no fatal dia de São Bartolomeu.

Achava-se então no Príncipe Imperial o Dr. Manuel Ildefonso de Souza Lima, digno primo e amigo de J. Coriolano; o qual, nestes termos, noticiou para a capital a morte do distinto poeta:

Amigo Dr. Freitas, - Príncipe Imperial, 26 de agosto de 1869 – dou-lhe a tristíssima notícia de ter falecido ontem pela manhã (*) o nosso amigo José Coriolano. Agravando-se os seus incômodos, em virtude de uma constipação que apanhou, sobrevieram-lhe males tais que dentro de dois dias deram cabo de sua existência! Chego neste momento de seu enterro, e sabendo que o correio está próximo a partir, faço-lhe esta apressadamente, sem tempo para dirigir-lhe a outros amigos. O nosso amigo faleceu como uma criança, sem fazer o menor movimento e sem ser visto pelas pessoas que estavam em seu quarto. Não estava presente o vigário Macedo; mandamos a Independência e Vertentes convidar os padres Ricardo e Galvão, e nem um deles veio: o primeiro por motivar incômodos e o segundo por estar doente, de sorte que o nosso amigo não teve encomendação alguma.
(*) Na verdade, faleceu no dia 24 de agosto, como consta na lápide, providenciada pela sua esposa, na Matriz de Crateús (Nota do Coordenador)

No dia anterior à sua morte, variou bastante; dizia constantemente que no dia seguinte partiria para o Rio de Janeiro, sem falta alguma: a viagem resolveu-se para a eternidade! A sua família ainda não é chegada; mas espera-se nesses dias. Veja que golpe fatal, especialmente para essa infeliz consorte, rodeada de tantas filhinhas. “Hoje sigo para o Veremos, e amanhã parto para nossa casa Boa Vista, donde vim às carreiras para assistir ao menos o enterro do nosso amigo.”

O Liberal Piauiense número trinta e cinco, de 4 de setembro do ano passado (*), tarjando a primeira de suas colunas, noticiou assim a morte do poeta:
(*) 1869 (Nota do Coordenador)

“O Dr. José Coriolano de Souza Lima, juiz de direito da comarca de Pastos Bons, na província do Maranhão, acaba de falecer na vila de Príncipe Imperial. Quis a providência que, depois de uma peregrinação de muitos anos, ele fosse deixar os ossos na terra do seu berço, ao lado de seus progenitores, lá onde pela primeira vez a esperança lhe sorriu, nos lábios puros da virgem que tanto amou, e depois foi sua esposa.
Havia já alguns meses que o anjo da morte adejava-lhe em torno, e segredava ao coração de seus amigos palavras d’além túmulo. Mas, por fim, parecia que a saúde voltara a garantir por mais tempo a existência do ilustre magistrado. De Príncipe Imperial escrevia o Dr. José Coriolano, pouco antes de morrer, a um seu amigo desta capital: passo os dias contente, bebo leite suculento das vacas destes sertões, banho-me nas águas cristalinas do açude, respiro o ar puro de minha terra – que vida, meu amigo!”

Sim, que vida! Vida nas fronteiras da morte!

Quarenta anos de exílio na terra – eis tudo: além um túmulo, e esposa e cinco (*) tenras parcelas de sua alma!
(*) Quatro filhas e um filho (nota do Coordenador)

Viveu pouco no tempo, viverá eternamente na memória de seus amigos. – Nós éramos um deles, e assaz conhecíamos as virtudes preclaras do ínclito varão. Ele era bom, probo, instruído, talentoso, amigo da pátria e da liberdade.

Ah! Quanto a vida é pérfida! Disse uma vez Pelletan. A cada passo que damos, ela nos força a semear um pedaço de nossa alma ao longo da estrada.

À família do morto, basta dizermos: fraternizamos com a vossa dor.”

A Imprensa número duzentos e quinze, de sete do dito mês e ano, a respeito do mesmo assunto exprimiu-se nestes termos:

“Acabamos de receber uma infausta notícia que nos veio comover em extremo!

Neste momento os olhos se arrasam de amargo pranto, e os nossos corações se enchem de infinitas saudades!

Com voz entercortada pela dor, temos a lamentar a morte prematura de um irmão de crenças, que era um atleta inspirado; um amigo leal, que era um tesouro de sinceras afeições, um pai de família sempre carinhoso e desvelado; um cidadão ilustre pelo seu saber e pelas suas virtudes!

Nossas frontes atribuladas – curvam-se hoje sob as ramas sombrias de um esguio cipreste plantado à beira de um túmulo venerável!...

Choramos sentidamente a morte de José Coriolano de Souza Lima, em quem a província perdeu, não só um dos seus mais dignos filhos, como, uma das suas mais viçosas esperanças.

Incansável cultor das ciências e das letras, desde os bancos de academia; jurisconsulto que se enriquecia em constantes lucubrações; prosador castiço e elegante; poeta quase sempre inspirado; - José Coriolano era certamente um dos piauienses que mais honra fazia à sua terra natal.

Hoje, apenas resta dele a memória de um nome puro; a lembrança de um belo talento que se pode dizer malogrado em vida, porque a maior parte de suas obras ainda não viram a luz da publicidade.

Oxalá que não se percam tão preciosos inéditos; muitos dos quais tivemos ocasião de apreciar, na intimidade que gozávamos junto ao distinto poeta (*)”
(*) Infelizmente perderam-se cerca de 130 poesias (Nota do Coordenador).


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Passemos a dar uma breve notícia dos seus últimos dias.

Atacado violentamente em sua saúde, que nunca foi vigorosa, o Dr. José Coriolano de Souza Lima – deixou em maio deste ano a comarca de Pastos Bons, donde era juiz de direito, e se dirigiu à cidade de Caxias, onde esteve por algum tempo em uso de remédios. Sendo-lhe aconselhado o ar livre do seu sertão, esse belo vale de Crateús, onde o poeta abrira os olhos à luz desta região intertropical, - para ali se dirigiu bastante melhorado, passando por esta capital em fins de julho último. Chegado ao termo de Príncipe Imperial, seu corpo ainda alquebrado, seu espírito ainda um pouco abalado, sentiu-se como que rejuvenecer-se, sorvendo a longos tragos as emanações agrestes, mas suaves, da serra e das colinas, - dos campos e do vale querido...

Os passeios pelas campinas, os banhos nos açudes, a alimentação suculenta do sertanejo, tudo isso, segundo suas próprias expressões, constituíam – não há muitos dias – o seu passatempo favorito.

Quando os seus dedicados e números parentes e amigos daquele termo – já concebiam a doce esperança de ver José Coriolano completamente restabelecido de seus graves incômodos; eis que, de repente, cobrem-se de luto!

A 24 de agosto pela manhã é ele encontrado morto em seu leito...

Seu corpo, frio cadáver, ia descer ao último jazigo, tendo concluído a sua peregrinação sobre a terra, seu espírito havia, entretanto, subido até a presença de Deus, daquele Ser Onipotente, cuja GRANDEZA o poeta sentira e cantara em vida!
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O que nos resta agora? Curvarmo-nos ante a cruz da redenção, e orarmos fervorosamente por alma daquele finado cujo peito generoso mais de uma vez apertamos sobre o nosso.

Enquanto uma lágrima treme sobre nossas pálpebras e cai-nos sobre as faces que o sofrimento descora, murmurem os lábios piedosamente:

Réquiem eterno dona ei, et lux perpetua luceat ei “
Poucos meses depois da morte de J. Coriolano, funcionando a assembléia legislativa provincial o deputado e Dr. Firmino de Souza Martins, que tanto se destingiu nessa memorável sessão, apresentou um projeto de lei no qual está consignada a verba de seiscentos mil reis para auxílio da impressão das obras do falecido poeta e literato piauiense; cujos inéditos, a esse tempo, já se achavam em poder do Dr. J. M. de Freitas.

O projeto foi convertido em resolução provincial e a final sancionado pelo benemérito e ilustrado Dr. L. A Vieira da Silva, que certamente, foi para o Piauí quase o mesmo que Alexandre Severo para Roma.

A referida resolução é a de nº 660, publicada a 14 de dezembro do ano passado (*).
(*) Ano de 1869. (Nota do Coordenador)

Entremos na última parte de nosso trabalho, - a análise de algumas das mais notáveis poesias do autor, cuja vida acabamos de esboçar, posto que imperfeitamente: comecemos por aquela que primeiro se encontra neste volume.
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A Grandeza de Deus de J. Coriolano pode-se afirmar que é um quadro onde o Universo se vê admiravelmente reproduzido, por meio de uma das mais belas poesias que porventura possa existir na língua de Camões.

Supomos não ser exagerado asseverando que nela se encontram os traços mais sublimes da obra divina da criação, - as cores mais vivas da rica palheta da natureza.

A Grandeza de Deus é pelo menos a cortina de Parrásio: Zeuxis pediria que a levantassem, a fim dele ver Jeová assentado no seu trono, em toda a sua majestade.
Na obra prima de J. Coriolano, composta de cento e vinte três belíssimos hendecassílabos, vê-se distintamente o manso ribeiro que corta o prado; depois o rio que rola apressado; por fim o mar que ronca em fúria aceso!... Sente-se ali mesmo o bafejar da leve brisa, e sem mais demora o açoite do tufão, que escarnece da pobre humanidade!... Nota-se ali o pequeno arbusto reverdecido, e logo a passo de distância observa-se a árvore que cúpula, cor de esperança, vive a mimar o céu, como que estática, - talvez embevecida!...


Ainda mais: no meio dessa imagem do paraíso, a cor e o perfume da rosa nos afagam amorosamente os sentidos; alegrando-nos a vista, e mimoseando-nos o olfato delicado!

Além da padibunda e fragante princesa dos jardins, namorada pelos zéfiros:

Ali mil outras flores se desfazem
Os campos matizando, em doce cheiro!

Sobre as altivas mangueiras ou sobre as altas palmeiras buliçosas ouve-se o melodioso trinada dos passarinhos; gorjeando.

Estão mil aves ternas à porfia,
Enquanto roxa luz difunde a aurora!

E o astro do dia não só mostra o disco no horizonte, como também:

Em pino cresta o orbe com seus raios!

E por fim – vai terminar sua lúcida carreira quando prestes a afogar seus derradeiros raios no ocidente:

O mar converte em fogo as águas suas,
As nuvens doiro e prata se agaloam,
Os favônios expiram nos palmares,
E o homem nesse instante ao céu se eleva!

Depois disso:

Não tarda os horizontes incendidos
Nova forma tomarem: uma estrela
Seus trêmulos fulgores já reflete
Sobre a rugosa face do oceano,
Em seguida mais outras e outras muitas!

E não é isto só, porquanto, ainda temos de contemplar, na cerúlea amplidão, se a sizígia o permite:

A lua que surgiu de sob as águas,
Ou que o rosto mostrou d’além dos montes,

Dominado pela idéia religiosa, que lhe despertaram as maravilhas da criação universal, o poeta não perde o ensejo de arremessar-se contra os “espíritos fortes” e então – vemo-lo manejar desta sorte a vigorosa vergasta da palavra:

O blasfemo que, os céus escarnecendo,
Soltou vozes, que aos céus injuriaram,

E com que sobranceiro aspecto este verdadeiro “ungido do Senhor”, que nem o levita inspirado, se dirige então ao ímpio para confundir a sua soberba irrisória! Ouçamo-lo respeitosamente:

Que pode um grão de areia movediça
Contra a rocha em que o mar se quebra iroso?
Que pode pobre argila sobre argila
Contra Deus que sustenta infindos mundos?
Que pode o homem frágil pequenino
Contra Deus, que o gerou do pó, do nada?

Depois disso, o autor da Grandeza de Deus parece-se com o poeta hebreu dedilhando na harda ebúrnea; quando, como o rel salmista – celebra assim os prodígios da Onipotência divina:

Senhor! o teu poder é grande, imenso!
Tudo quanto é sublime a ti se deve.
Óh minha doce Mãe! – quem no teu peito
Depositou afetos tão sagrados?

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Aves, que gorjeais na umbrosa selva,
A quem deveis o deleitoso canto?

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Foi Deus, que às flores também deu aroma,
Macio e fresco ciciar às brisas,
Sibilos ao tufão, sussurro às folhas,
Brandura à fonte, correnteza ao rio;
Foi Deus que fez os mares procelosos,
Que lhes deu ondas, escarcéus e vagas,
Que às campinas deu relvas e matizes,
Ao sol fulgores, às estrelas brilho,
E à lua doce luz que a mente aplaca;
Foi Deus que deu um pugilo informe, inerte,
Fez o homem moral à imagem sua!

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Senhor! – o teu poder é grande, imenso!
O mar no-lo revela em seus gemidos,
A terra nos seus verdes atavios,
A flor no seu perfume, o sol nas cores,
As aves no seu canto deleitável,
O céu no seu azul que se marcheta
De milhões de prodígios luminosos,

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Meu Deus! Senhor meu Deus! quanto és sublime!
Ao teu gesto potente a fronte curvam
O grande, o rico, o pobre, o sábio, o néscio!
O mar que enfurecido em flor rebenta,
O bravo furacão que os bosques prostra,
A fera que rugindo atroa os ares,
O raio que resvala pelo espaço,
O trovão que estrondeia retumbando,
A nuvem que desata em catadupas
E o corisco veloz que caracola,
Tudo, tudo a teus pés, ó Deus se humilha,
Tudo, tudo a teu nome um hino entoa!

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
A final o poeta conclui o seu canto inimitável – no tom elegíaco de Jeremias, rogando ao divino Criador que lhe ceda a glória:

Quando seus lábios trêmulos soltarem
O suspiro final, que o mundo exige;
Quando seus olhos turvos se cobrirem
Co’o vítreo manto, regelado, eterno;
Quando apagar-se do seu peito a flama;
Quando o frio eternal gelá-lo todo;

A “Grandeza de Deus” pode se dizer que tem a alegria do hino e melancolia da nênia, a graça da égloga e o ímpeto da ode. A sublimidade do salmo e a majestade da epopéia! Certamente não nos é dado conceber nada de mais harmônico, nem de mais esplêndido...

A “Grandeza de Deus” será um perdurável padrão de glória para seu ilustrado autor.

A “Tempestade” de J. Coriolano, uma das suas melhores composições líricas, rivaliza com a poesia de Gonçalves Dias que tem o mesmo título.

É a tempestade dos paises intertropicais, de que fala Lopes de Mendonça, nas suas “Memórias de Literatura Contemporânea”.

Eis como ela se forma:

De uma parte do horizonte
Pouco a pouco mostra a fronte
De nuvens um torreão
O sol no mar sepultou-se,
Da lua a face turvou-se,
Lampeja tíbio clarão.
Já o mar desperto geme,
Já no bosque o vento freme,
Retumba ao longe o trovão.

Quanta poesia nestes nove primeiros versos! Quanta verdade daguerreotipada, à luz do gênio...

Vejamos, no entretanto, como é que se desenvolve o fenômeno que o poeta descreve com tanta maestria.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
De todo a noite fechou-se,
O ar medonho nublou-se
Fuzila crebo clarão!

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Dos bosques se humilha a coma,
Estruge, sibila, assoma
Turvo, iroso o furacão!

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Rasgam-se a nuvens pejadas,

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Cresce a chuva em cataratas,

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Dos cumes mil seixos rolam,
As águas prostram, assolam,
Os bosques em borbotão!

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Vacila o teto e se abate
Ao duro, ríspido embate
Da chuva solta em cachão!

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Agora apreciemos de que modo acaba a tempestade nas regiões, como a nossa, onde se desconhece o gelo.

Após a sexta ou penúltima estância, que encerra uma pintura fidelíssima do estado da natureza, quando:

Inda a cheia corre plena,
Mas cessou o turbilhão;

Segue-se logo esta admirável peripécia, que tanto caracteriza o clima da zona tórrida:

Em fim a chuva extinguiu-se,
O puro céu descobriu-se,
Cessou de todo o trovão.
No bosque a brisa cecia,

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
No mar a lua de prata
Já sua face retrata
E esparge meio clarão.

Lendo-se a tempestade de J. Coriolano, sente-se deveras que se está no Brasil, onde se desconhecem as temíveis trombas polares, as horríveis borrascas de neve, ou algumas dessas tempestades do norte cuja epopéia sublime pode-se admirar num romance bem recente, onde se vê uma “urca no mar”.

Da Europa, quase que a “Tempestade” de J. Coriolano – só tem o rico idioma em que foi descrita, com tanta propriedade de termos, que o leitor sente-se realmente transportada para o meio do aguaceiro diluviano, azoinado pela ventania, deslumbrado pelos relâmpagos, aturdido pelos trovões!...

Contudo, há nela um verso evidentemente exagerado, aquele que diz:

“Soçobram-se mil fragatas”.

Entretanto, a hipérbole foi sempre permitida aos poetas.

É certo que aqui não há o temporal desfeito e porfioso do mar das Índias; o pampeiro do Rio da Prata, ou o furacão das Antilhas; todavia, é sabido que nestas regiões serenas que habitamos, muitas vezes os elementos se revoltam também, mais ou menos, e chegam a produzir alguns estragos... Mas, por via de regra, as iras da natureza – são assaz passageiras e de pequenas conseqüências, no meio deste povo tão amigo da paz, quanto digno do mais belo futuro.

Se como diz V. Hugo, a tempestade é um pulmão espantoso; devemos crer que o Éolo brasileiro foi atacado de dispnéia logo ao nascer, e que por isso não pode se afadigar muito, no seu galopar sobre a rosa dos ventos, na intenção de desarraigar florestas, meter frotas a pique e fazer tombar aldeias sobre a base das colinas...


“Careço de teu Amor” é talvez a mais mimosa das poesias eróticas de J. Coriolano.

Sente-se deveras que o poeta, irresistivelmente, necessita de sua amada; de tal sorte:

“Como da rotação carece a terra”

E a luz dos olhos dela: desses almos raios, que fazem brotar a esperança e a alegria nos próprios campos, o poeta carece tanto:

“Como as plantas – da luz do sol carecem!...”

Do riso fagueiro de sua amada, vê-se que o cantor tem tamanha precisão:

“Como o crepusc’lo – do fulgir da aurora!”

E do meigo falar, tão cheio de suaves harmonias – ele carece:

“Como os bosques das brisas sussurrantes,
Como os regatos – do arenoso leito,
Por onde se deslizam murmurantes!”

Do hálito de sua bela, o extremoso amante necessita tanto, - tanto:

“Como o vivente - do ar que respira
Como a rosa – do aroma que transpira!”

Finalmente, vê-se destarte fazer o poeta – veemente protestos àquela que, arrebatando-lhe o pensamento e roubando-lhe o coração, deixou inteiramente dominado pela paixão que ateou-se-lhe no peito vulcânico...

“Do teu amor careço, ó minha amada,
Como as ondas – da praia em que se quebram,
Como as aves – do canto mavioso,
Com que tão docemente se requebram!

Do teu amor careço, ó minha amada,
Como o nauta carece da bonança,
Como um peito que geme consternado
Carece de seus males a mudança.”

Por certo que Virgílio não é mais eloqüente nos seus soberbos hexâmetros, quando diz, por exemplo, como na égloga quinta:

“Dum juga montis aper, fluvios dum piscis amabit,
Dumque thymo pascentur apes, dum rore cicadae,
Semper honos, nomenque tuum, landesque manebunt.”

O enquanto do cisne mantuano não é, em nada, superior ao careço do vate piauiense, segundo pensamos: aos mestres compete confirmar ou condenar esta nossa obscura opinião.

Recordai-vos do Memnon egípcio, ao do Apolo da mitologia grega? Tal nos parece J. Coriolano, de lira em punho, no ato de cantar a “Aurora”, essa doce luz que precede o nascimento do Sol!

Ouvindo-o, logo reconhecereis o exímio cantor da “Grandeza de Deus” – porque, só ele fora capaz de entoar, entre nós, hinos tais, com a mesma suavidade com que lhe aprouve interrogar ali à virgem meiga e gentil:

“Quem te fez tão amável? Esse riso
Que nos prende e fascina, encanta, arrouba,
Quem t’o depositou nos róseos lábios?”

J. Coriolano é sempre magnífico pintando – cenas da natureza: vede-o como descreve a “Tempestade”!

Mas para assentarmos melhor o nosso juízo, - é preciso que nos transportemos à antiga Tebas, e que vejamos ali os primeiros raios do sol sobre os lábios da colossal estátua que prorrompia em sons harmoniosos, talvez inteiramente parecidos com que estes que vamos ouvir agora mesmo:

“Douram-se os prados ao romper da aurora,
Que surge à hora que prazer só diz,
Os horizontes de listões se arreiam,
Aves gorjeiam nos rasais gentis.

Na clara e doce sussurrante fonte
Que do alto monte se despenha e cai,
O roxo manto de ondeantes cores
Com seus lavores a atenção atrai.”

Quem, ao menos uma vez na vida, por uma deleitosa manhã de fins d’água, quando as nuvens são como o velo dos cordeirinhos, ou antes, como o algodão batido, - não terá notado, sobre a face do líquido cristal, a imagem da “Aurora”, que se espelha qual virgem meiga e gentil, que desvanecida revê os “róseos lábios?”

As duas primeiras coplas desta linda poesia – são realmente de um mérito incontestável!

E as que se seguem não lhes cedem facilmente a palma, sobretudo a terceira, que assim começa:

“Nas verdes folhas onde o orvalho oscila,
Brilha e rutila matinal rubim.”

Quanto primor na dicção; quanta justeza na frase; quanto esplendor nas imagens!

Como é belo – este orvalho que oscila!... Como lança – luz viva e cintilante! Como resplandece à maneira d’uma pedra preciosa, senão imitando o espinel e o balais!

É isto que o poeta chama, com muita propriedade “matinal rubim.”

Na quarta quadra, vê-se distintamente o cirros, atravessando a atmosfera, sob as formas mais delicadas, mais caprichosas, mais ricas e variadas: é mesmo diz o cantor:

“As brancas nuvens que através do espaço,
Do lume baço, pelo ar lá vão,
Cingem brocados de um lavor perfeito
Como se feito por virgínea mão.”

Na quinta copla, lêem-se estes dois versos louçãos:

“A flor donosa, que do calix pende,
Cheiro recende que se leva ao céu; ”

E na sexta notam-se estes, num dos quais – sobressai, com muita graça e onomatopéia:

“Chilra a andorinha na cornija santa,
E o galo canta co’a fulgente luz.”

Existem ainda dois quartetos de muito merecimento: o 11º e o 13º.

Vejamos aquele:

“E prado e aves, e perfumes e montes,
E orvalho e fontes, e listões no ar,
“Hosanas” tudo ao Criador entoa,
que a seus pés voa, que lh’os vai beijar.”

Esta bela poesia é igualmente recomendável pela forma: nota-se nela a abundância de metro, a opulência de sáficos, a profusão e bom gosto da rima, a simetria metastasiana das estrofes.

É pena que tenha um ou dois versos um pouco falseados, ou que pelo menos parece não condizerem inteiramente com o primor dos outros.

“Hino ao Criador”: eis uma poesia que faz, mui de perto, lembrar o misticismo de Lamartine, com seu culto ao lar doméstico. Parece-nos realmente que estamos sob o teto de Milly, todas as vezes que lemos estes versos, que quase trescalam com o incenso lançado sobre o turíbulo:

Senhor, tu és o Deus, o pai celeste,
Que minha mãe adora, ajoelhada;
Por mim, por meus irmãos, por meus parentes,
Por todos neste mundo, ela não cessa
De dirigir-te aos céus freqüentes súplicas.

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Mas logo, recordamo-nos da vivacidade do cisne Sadino; tão pronto na inspiração, tão arrebatado no vôo dirigido ao bipartido cume! É então que nos apraz repetir este final da primeira estrofe do Hino ao Criador:

“Tu foste de meu Pai o Deus propício,
Por ti acrisolou-se na virtude
Vivendo como vive o justo e o sábio,
Morrendo como morre o sábio e o justo.”

Após, acode-nos à mente o vulto grandioso do salmista brasileiro, com seus êxtases dulçorosos, sempre que escutamos religiosamente este harpar tão belo, e tão semelhante ao Padre Caldas:

“Senhor, o teu poder proclama:
O inseto humilde que se escapa aos olhos,
A enorme fera que no corpo avulta,
A dura pedra, o vegetal virente,
A terra, o espaço, o céu, a luz, as trevas
E o homem que fizeste a imagem tua.

Aquele lindo arroio que serpeia
Por entre flores, ervas e pedrinhas,
Mandaste-lhe correr sereno e puro,
E o arroio correu!
Aquele mar que sanhudo que de encontro
Vem quebrar-se nas duras penedias,
Mandaste-lhe gemer nos seus embates
E o mar, Senhor, gemeu!”

Esta poesia, de metrificação variada, recomenda-se por tantos títulos que, incontestavelmente, pode fazer, como a Grandeza de Deus – parte de um florilégio: assim, pois, crestomatia brasileira deve, sem perda de tempo, reclama-la.

Muitos poetas têm celebrado a “Tarde (*)” com mais ou menos felicidade. Quem não terá lido ou relido a de Gonçalves Dias?
(*) Hino à Tarde, é o título correto. (Nota do Coordenador)

Pois bem! Vamos ouvir atentos a mais um Orfeu, entoando hinos de entristecidos sons à essa gentil moribunda:

“Mais triste que a manhã, mais melancólica”.

Esta poesia consta de várias partes, enumeradas com caracteres romanos: a mais bela de todas é a segunda, onde o poeta começa por fazer, qual escritor clássico, a comparação exata, fidelíssima, da tarde com a manhã, de maneira tal, que nada mais deixa a desejar, sob tão interessante aspecto.

Vejamo-lo:

“Quanto é bela a manhã, surgindo alegre
das partes do oriente em que se arreia!
Que formosos listões de fogo e púrpura,
Que sua cor dourada comunicam
Às campinas, à fonte, às cumeadas!
O levantino mar é todo rosas
No seu leito de areia a espreguiçar-se
Oh! quanto a aurora despontando é bela!
Tarde, filha dos céus, os teus encantos
Não lhe ficam somenos: tu guarneces
Também as brancas nuvens de escarlate,
Quando além do poente o sol se esconde.
Um manto sobre o mar também estendes
De vermelhos listões também formados.
Vales, campinas, fonte e campanários,
Com teu meigo arrebol também matizas,
Se quando surge o sol as aves cantam,
Se a natureza ri-se com seus raios,
Se bafejam as auras docemente
Enchendo de fragrância os horizontes,
Também, tarde gentil, no teu regaço
Ao sepultar-se o sol, as aves trinam,
Suspira a natureza, as auras sopram,
Embalsamando os ares de fragrância.
Em ti se encontra amor, ledice, encanto!”

Depois disso, J. Coriolano descreve a “Tarde” com tal magia que faz-se sobressair, como ouro em azul, os ternos sentimentos que aquela parte do dia desperta, naturalmente, nos corações mais ricos de fibras delicadas, mas cheios de ternas palpitações...

Ouçamos ao poeta:

“O proscrito nas lágrimas que entorna,
No teu suave seio alivio encontra;
Encontra alívio aos duros sofrimentos
O desgraçado que de amor padece.
Chora à tarde o extremoso amigo a ausência
Do amigo que no peito traz gravado.
Choram os pais – pelos ausentes filhos
E os filhos pelos pais ausentes choram.
O amante pela amada em dor se fina,
E a amada pelo amante em dor consome-se.
Todos carpem à tarde, e acham consolo,
Se da ausência os rigores crus suportam:
Extático o poeta te contempla!
E que idéias tão ternas se associam
Por teu tristonho porte despertadas!”

Interrompendo a citação, façamos notar ao leitor a extrema beleza destes quatro versos, que encerram o maior elogio que se pode fazer à “Tarde:”

“Te assemelhas à virgem que suspira,
E como ela também – és triste e bela;
Mas, na tua tristeza o mel se bebe
Que tranqüiliza os corações que sofrem.”

O resto da segunda parte do “Hino à Tarde” é uma vintena de roxas ametistas, cada qual de maior valor, sobretudo as que reluzem deste modo:

“Onde soltava meus gemidos longos
Que “saudades e ausência” só diziam?
- Soltava-os nessas sombras que ministras
de copado arvoredo sussurrante.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Ó tarde! – quanto és grata aos que padecem!
Quanto mais tu das trevas te aproximas
Mais exultam d’alegres dois amantes.”

Deixando de analisar uma por uma todas as poesias mais importantes do Dr. J. Coriolano, para destarte evitar que tomemos demasiado espaço nesta introdução, alias já um pouco extensa, todavia, não concluiremos o nosso trabalho sem acrescentar a quanto dissemos noutra parte, alguma cousa mais – a respeito do “Touro Fusco”.

Este poemeto compõe-se de quatrocentos e oito versos, hendecassílabos simétricos e numerosos, distribuídos em três cantos iguais, cada qual com dezessete oitavas, no gosto das do – célebre “Caramuru” de Santa Rita Durão.

O objeto principal dos Carmes do poeta é aí – simplesmente – um bruto; mas, como vê no primeiro canto, estância sétima,

“Se o fusco fosse gente, ele seria
Mais herói que esse herói de Alexandria.”

Para os literatos de luvas de Jouvin, recendendo a bouquet dos Alpes e trajando a Metternich ou a Bismarck, a idéia de J. Coriolano não terá sido mais infeliz. O mesmo também pareça a algum fazendeiro magnata, que só achando bela a idéia de sua grandeza – é de crer que apenas tenha tempo para supor-se tão rico quanto o Marques Del Jaral, que, dizem, possuía três milhões de cabeças de gado, vendia anualmente trinta mil carneiros na cidade do México, e tinha mais terras do que há em toda a Província do Piauí.

No nosso humilde modo de entender, J. Coriolano não podia ser mais bem inspirado do que foi, escrevendo o referido poemeto.

Filho de uma província essencialmente criadora, cuja indústria pode se dizer que não vai além do rústico labor de sertanejo que trata de alheio gado ou do próprio: que outra idéia mais adequada podia ter aquele – que melhor que qualquer de nós bem sabia que à literatura incumbe, tanto quanto a etnografia, o trabalho de colher e guardar como preciosa relíquia tudo quanto diz respeito à feição característica dos povos, mostrando quais as suas tendências, mais pronunciadas, suas ocupações favoritas, sua índole, finalmente, num tempo dado, quando entre eles se presenciavam tais e tais cenas, cabendo esta ou aquela condição de existência?

É assim que nos parece que um dia terá de ser mais justamente apreciado o poemeto que tem por título “O Touro Fusco”, - o qual foi pela primeira vez impresso, no ano de 1859, em Pernambuco, na tipografia do Sr. José de Vasconcelos.

Há certos escritos que, como vinho, se tornam mais preciosos – envelhecendo. Os que assistiram à vindima não são os que hão de achar o sabor esquisito que o fará decuplar de valor...

Incontestavelmente, o “Touro Fusco” é digno de ser lido, - no campo como na cidade; - na choupana como na casa nobre. E oxalá que todos os nossos homens de letras não muito tarde o tenham na merecida estima, bem como que antes do fim de um século, em cada fazenda, ao menos por ocasião de vaquejadas, se possam fazer citações desta ordem, à vista de algum novilho indomável:

“E gemendo e a cabeça maneando
Contra os fortes mourões arremetia,
E os robustos mourões, estremecendo,
Às cornadas do touro iam cedendo.....”

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Feliz do Brasil, quando os pegureiros apascentarem os seus rebanhos, como na Suíça, tendo nas mãos um livro qualquer, com que se instruam ou passem o tempo mais agradavelmente.

Enquanto a nossa população se compuser de analfabetos, em sua quase totalidade, nem sequer teremos quem possa levar um voto à – urna, aliás, “o oráculo das nações livres”.


· Depoimento, de 1973, de Celso Pinheiro Filho

A família de Coriolano não era rica, mas somente arremediada, como se costuma dizer. Muitos irmãos para a pequena herança deixada pelos pais. Por isso sendo um espírito mais contemplativo do que realizador, logo após a formatura, já casado, teve que se submeter a um emprego de promotor em Piracuruca (1860), sendo depois nomeado Juiz Municipal de Codó e, pouco mais tarde (1864), removido para Príncipe Imperial (hoje Crateús).

Os vencimentos mal davam para o sustento da família, e este fato é salientado por Davi Caldas, transcrevendo cartas do poeta a seu maior amigo, o Dr. José Manuel de Freitas.

Mesmo assim, iniciada a Guerra do Paraguai, não podendo oferecer serviços pessoais, por ser enfermiço e asmático, ofereceu ao governo 10% desses minguados vencimentos, para ajudar nas despesas de guerra:

“Ao Dr. José Coriolano de Souza Lima. Aceito e agradeço, em nome do governo imperial, o oferecimento que em ofício de 18 do mês passado fez Vossa Mercê de dez por cento de seus ordenados de juiz municipal e de órfãos dos termos reunidos de Príncipe Imperial, Marvão e Independência, para as despesas de guerra, a contar daquela data. a) Franklin Américo de Meneses Dória – Presidente” (publicado em “A Imprensa” de 1865).

* * *

Em 1866, conseguiu ser promovido a Juiz de Direito, cabendo-lhe a comarca de Pastos Bons, no Maranhão. Ali esteve até ser acometido da moléstia que o levou ao túmulo.

Também em Pastos Bons teve que enfrentar a primeira e, talvez a única luta de sua vida. Era juiz municipal o Dr. Manuel Belisário Henrique da Cunha, representando a família, uma das grandes proprietárias do Estado. Coriolano, desvinculado do meio, queria fazer justiça pura. O Dr. Manuel Belisário, por sua vez, tinha que defender interesses de seus correligionários, entrando, por isso, em atrito com o juiz de direito.

Os ânimos foram-se acirrando com detratações e diz-que-disse. A imensa legião dos leva-e-traz punha lenha na fogueira. Coriolano ia-se exaltando cada vez mais. Esta luta de homens cultos tornou-se assunto e distração única da pacata cidade.

O resultado dessa luta inglória foi ter sido o poeta acometido de congestão cerebral, em 1869, aos quarenta anos de idade (*), e retornar à terra natal, seu querido sertão de Crateús, para morrer.
(*) Incompletos. Morreu em agosto (24) e completaria quarenta em outubro (29). (Nota do Coordenador)

* * *

Coriolano era dum escrúpulo exagerado, até mesmo em política. Em 1866, já estando ele em Pastos Bons, foram-lhe dados 23 votos, para Deputado à Assembléia Geral, na Corte. Estes votos, dados espontaneamente, representavam um colégio eleitoral completo, pois que as eleições eram por graus.


Impressionado pelo efeito que esses votos pudessem causar no candidato oficial, seu amigo, de lá mesmo de sua comarca, escreveu esclarecendo o assunto e agradecendo os votos:

“Lendo na “Imprensa” de 3 de fevereiro do corrente ano, nº 28, o resultado da apuração de votos da eleição a que se procedeu nessa província para um deputado geral, vi que me haviam honrado com 23 votos. Pois bem: declarando a quem me ler que estava longe de supor que me dessem um voto, porque não tive a idéia de preterir nesse sufrágio a muitos patrícios que me precedem em serviços e inteligência, devo, todavia, assegurar a esses amigos que me distinguiram com os seus votos, que muito e muito os estimo e agradeço: 1º) porque de modo algum embaciaram o triunfo de meu ilustrado patrício e parente, o Exmo. Sr. Dr. Antônio Borges Leal Castelo Branco; 2º porque foram voluntários e inspirados. Pastos Bons, no Maranhão, 6 de maio de 1866. a) J. Coriolano S. Lima” (publicado na “Imprensa” de Teresina).

* * *
A seguir, transcrevemos várias opiniões sobre Coriolano e sua obra:

Esmaragdo de Freitas, em discurso na Academia, iniciou fazendo um paralelo entre as comemorações feitas no Maranhão, no centenário d Gonçalves Dias, e o de José Coriolano, ambos nascidos na mesma época, e o silêncio reinante no Piauí, o desconhecimento do poeta, pelos próprios acadêmicos.

Salienta que eles, Gonçalves Dias e Coriolano, se irmanam no amor com que tratam suas pequenas pátrias. Lembra haver sido o Touro Fusco ridicularizado, pelos intelectuais da época, porque cantava um herói-bicho, mas observa que o Catingueiro, com a encantadora ingenuidade de que está repassado, redunda num hino triunfal à nossa vida matuta.

João Crisóstomo da Rocha Cabral extasia-se ante a obra do poeta e diz: “E ele cantou. Cantou como ninguém mais, com tanta doçura e entusiasmo, simplicidade e heroísmo, alma religiosa, olhar panteísta, a expressão própria de seu povo.”

O valoroso Touro Fusco é um poemeto que ainda não teve igual em nenhuma literatura, pela audácia de cantar em versos heróicos a estória de um novilho famoso, que luta e morre como herói, e nos deixa saudades, como as figuras humanas ou semidivinas de uma epopéia homérica ou virgiliana.”

Franklin Távora destacou especialmente a parte nitidamente popular da poesia de Coriolano:

“Na fiel pintura dos costumes do norte, musa elegante, generalisadora, erudita, só encontra rival em Juvenal Galeno”.

“O seu caráter, costumes, crenças e expressões, antes direi, a alma daquela região, as idéias, os assuntos, a vida que ele canta nos seus versos”.

“O inverno ou a seca, o gado, os campos de criação, merecem-lhe fiéis descrições”.

“Pode-se dizer que no seu livro está perfeitamente desenhado o Piauí, não digo tudo, mas está fotografada toda a zona sertaneja onde domina a industria pastoril”.

“O Touro Fusco, interessante poemeto escrito nas férias do segundo ano; o Catingueiro, Primeiras Águas, O Velho Caçador de Onças, a Canção do Serrano e tantas outras poesias insertas nas Impressões e Gemidos, ou injustamente preteridas pelo espírito de seleção que as determinou, são a mais irrefutável prova desse acerto” (“Um Poeta do Norte”, em “Gazeta de Notícias”, transcrito na Revista da Academia nº 17, de 1938).”

Lucídio Freitas, em “História da Poesia no Piauí” (1918), pinta-o como: “um delicioso evocador, um paisagista capaz de plasmar toda a grandeza triste da nossa terra. E há nas suas descrições um pequeno beijo de saudade, leve como uma pluma, apaixonado como uma carícia nupcial. Nenhum poeta de seu tempo o iguala”.

João Pinheiro, na secura de seus conceitos, diz que ele “foi, efetivamente e, sobretudo um dos mais amenos cultores da poesia no Piauí”.

Antônio Chaves, que o escolheu para patrono de sua cadeira na Academia, traçando-lhe o perfil, disse que: “passou pela vida cantando com a simplicidade de um crente e o entusiasmo de um justo, tendo sempre a sua alma através dos céus e através do infinito, bebendo a harmonia dos astros e a canção do luar”.









Poesias Publicadas em 1870
(na mesma ordem da edição de 1870)
(Notas de A. Tito Filho na Edição de 1973)

GRANDEZA DE DEUS

Que cena majestosa se me of’rece (1)
Onde quer que um olhar pasmoso fite!
Que notas, que harmonia deleitável
Respira a natureza que me cerca!
Aqui manso ribeiro o prado corta,
Ali mais apressado o rio rola,
Mais além ronca o mar em fúria aceso!
Aqui a leve brisa me bafeja,
E após ela o tufão me açoita a fronte!
Ali pequeno arbusto reverdece,
Mais além mira o céu d’árvore a cúpula!
A roseira que ostenta donairosa (2)
A flor que faz inveja às outras flores,
Que os homens enamora com seus mimos,
Que os ares embalsama com perfumes,
Das murmurantes auras embalada,
Aqui parece rir co’a (3) natureza!
Ali mil outras flores se desfazem
Os campos matizando, em doce cheiro!
Sobre altivas mangueiras gorjeando,
Ou sobre altas palmeiras buliçosas
Estão mil aves ternas à porfia,
Enquanto roxa luz difunde a aurora!
O sol já mostra o disco no horizonte,
E a metade vingando do seu curso,
Em pino cresta o orbe com seus raios!
Já descai (4)no caminho do ocidente
E em breve além do mar se envolve em trevas!
O mar converte em fogo as águas suas,
As nuvens doiro e prata se agaloam,
Os favônios expiram nos palmares,
E o homem nesse instante ao céu se eleva!
Não tarda os horizontes incendidos
Nova forma tomarem: uma estrela
Seus trêmulos fulgores já reflete
Sobre a rugosa face do oceano,
Em seguida mais outras e outras muitas!
A lua que surgiu de sob as águas,
Ou que o rosto mostrou d’além dos montes,
No espaço se equilibra, e sobre a terra
Aos viventes derrama os seus favores!
Óh ! quanta poesia ! óh ! quanto assombro
Onde quer que um olhar pasmoso fite!
O homem que a virtude traz no peito,
Mais a chama cristã no peito ateia!
Ao ímpio que o remorso traz na mente,
Mais a mente o remorso lhe atribula!
O blasfemo que, os céus escarnecendo,
Soltou vozes, que aos céus injuriaram,
Qual o cão que raivoso ladra à lua,
E que alfim (5) já cansado inútil pára
O sacrílego peito comprimindo,
De blasfemar inútil também cessa.
Que pode um grão de areia movediça
Contra a rocha em que o mar se quebra iroso?
Que pode pobre argila sobre argila
Contra Deus que sustenta infindos mundos?
Que pode o homem frágil pequenino
Contra Deus, que o gerou do pó, do nada?
Senhor! o teu poder é grande, imenso !
Tudo quanto é sublime a ti se deve.
Óh minha doce Mãe! – quem no teu peito
Depositou afetos tão sagrados?
Virgem meiga e gentil, que o mundo adora,
Quem te fez tão amável? Esse riso,
Que nos prende e fascina, encanta, arrouba,
Quem t’o (6) depositou nos róseos lábios?
Aves, que gorjeais na umbrosa selva,
A quem deveis o deleitoso canto?
Pois quem tais maravilhas fez no mundo?
Foi Deus, que às flores também deu aroma,
Macio e fresco ciciar às brisas,
Sibilos ao tufão, sussurro às folhas,
Brandura à fonte, correnteza ao rio;
Foi Deus que fez os mares procelosos,
Que lhes deu ondas, escarcéus e vagas,
Que às campinas deu relvas e matizes,
Ao sol fulgores, às estrelas brilho,
E à lua doce luz que a mente aplaca;
Foi Deus que deu um pugilo informe, inerte,
Fez o homem moral à imagem sua!
Óh ! quem há que se iguale ao Deus supremo,
Se ele é só o supremo sobre tudo?
Quem há que o Criador co’a criatura
Compare, se de Deus seu ser dimana?
Senhor ! – o teu poder é grande, imenso!
O mar no-lo (7) revela em seus gemidos,
A terra nos seus verdes atavios,
A flor no seu perfume, o sol nas cores,
As aves no seu canto deleitável,
O céu no seu azul que se marcheta
De milhões de prodígios luminosos,
Quando a noite se desdobra sobre a terra
Seu manto de mistério a todos grato!
Meu Deus ! Senhor meu Deus! quanto és sublime!
Ao teu gesto potente a fronte curvam
O grande, o rico, o pobre, o sábio, o néscio!
O mar que enfurecido em flor rebenta,
O bravo furacão que os bosques prostra,
A fera que rugindo atroa os ares,
O raio que resvala pelo espaço,
O trovão que estrondeia retumbando,
A nuvem que desata em catadupas
E o corisco veloz que caracola,
Tudo, tudo a teus pés, ó Deus se humilha,
Tudo, tudo a teu nome um hino entoa!
E o homem que a razão fez neste mundo,
Depois do teu poder, o mais potente;
O homem que possui um’alma eterna,
Que outra vida lhe of’rece além da campa,
Dos brutos se rebaixa à classe ignóbil,
E as leis posterga ao criador benigno!
..............................................................
Porém, Senhor, perdão p’ro (8) homem frágil,
Que o fizeste d’argila; atende ao mísero:
Quando seus lábios trêmulos soltarem
O suspiro final, que o mundo exige;
Quando seus olhos turvos se cobrirem
Co’o vítreo manto, regelado, eterno;
Quando apagar-se (9) do seu peito a flama;
Quando o frio eternal gelá-lo todo;
Quando a morte, Senhor, tirar-lhe a vida
Nesse céu de venturas, - misterioso –
Dá-lhe asilo, Senhor, lhe cede a glória.

Comentários

(1) of’rece. Oferece. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.
(2) Donairosa. Derivado de donaire. É o latim donarium, donairum, donairo. A forma donaire teve influência espanhola. A gente pronuncia donaire tal como se escreve.
(3) C’oa. Em lugar de com a. Necessidade de contagem de sílabas poéticas. Em com a há duas sílabas poéticas reduzidas a uma.
(4) Descai. Verbo descair: deixar prender ou cair.
(5) Alfim. Hoje pouco usado. O mesmo que enfim, finalmente.
(6) To. Combinação dos pronomes te e o. Este o está no lugar de riso. Quem depositou o riso (o) nos lábios teus? (te) Te aqui tem função de posse.
(7) No-lo. Combinação dos pronomes nos e o. Nesta combinação o nos perde o s e o pronome o toma a velha forma lo. Este lo na poesia está no lugar de poder: no-lo revela.
(8) P’ro. Para o. Necessidade de metrificação.
(9) Quando apagar-se. O verbo está no futuro do subjuntivo. Deveria ser quando se apagar. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.


CRATEÚS (1)

Lindo sertão meus amores,
Crateús, onde nasci, (2)
Que saudade, que rigores,
Sofre meu peito por ti!
São amargos dissabores
Que em funda taça bebi!
Que saudade, ó meus amores,
Crateús, onde nasci!

Esta incessante saudade
Me espedaça o coração!
Eu gemo na soledade (3)
Esses tempos que lá vão...
Crateús, minha beldade,
Meu lindo, ameno sertão,
Que dura, fera saudade
Me atormenta o coração

Que vezes, em pé, na praia,
Me lembro dos mimos teus!
Dessas c’roas (4), onde ensaia
A rola (5) os gemidos seus!
Onde a lua se desmaia
Alvacenta – lá dos céus!
Ó quantas vezes na praia
Em cismo nos mimos teus

As ondas que vêm chorosas
Na lisa praia morrer,
Lembram-me as auras queixosas
Nos teus vales a gemer!
Lembram-me as moitas verdosas,
Ondeando-se a volver!
Ondas, não vinde chorosas
Na lisa praia morrer!

Que dias esses d’outr’ora
Que o tempo ingrato levou!
Do meu lar eu via a aurora
Que sorrindo despontou!
O galo co’a voz canora,
Cantava : có-córô-cô!
Ai ! esses dias d’outr’ora
O tempo ingrato levou!

Hoje meu peito não goza
A dita que já gozou!
Hoje minh’alma saudosa
Chora o tempo que passou!
Ó sorte desventurosa
Que meus prazeres turvou!
Infeliz de quem não goza
Venturas que já gozou!

Crateús, que dor tão viva!
Ai tempos que já lá vão!
Ao teu nome a dor se aviva
Que sente meu coração!
Assim sofre a sensitiva (6)
Ao toque de incauta mão!
Crateús, que dor tão viva
Ai eras (7) que já lá vão !

Se os sinos tocam meu pranto
Corre, banha o rosto meu!
Seus dobres lembram-me tanto
Os dobres do sino teu!
Eis do sol, o roxo manto,
No ocaso além – se escondeu!
Trocam trindades... (8) meu pranto
Corre, banha o rosto meu!

Não posso ver uma bela,
Não posso, lindo sertão;
Logo me lembro daquela...
Que vive em meu coração.
Crateús, onde está ela,
Dá-lhe lembranças, que eu não...
Não posso ver uma bela,
Não posso lindo sertão!

Dá-lhe lembranças... e escuta
Se a bela por mim gemeu...
Se gemer... a brisa arguta
Me traga o gemido seu.
Ah ! se minh’alma o desfruta ...
Crateús se o gozo eu...
Quem dera ! – Sertão, escuta ...
Escuta se ela gemeu ! ...

E adeus, terra, onde a alvorada
Primeira p’ra mim raiou!
Onde a primeira morada
Meu pai querido assentou!
Onde o galo, à madrugada,
Cantando, me despertou!
Onde, à primeira alvorada,
Ouvi-lhe o có-rócô-cô!

Comentários
1) Crateús. Hoje município e cidade do Ceará. Pertenceu ao Piauí e constituía os municípios piauienses de Independência e Príncipe Imperial.
2) José Coriolano de Sousa Lima nasceu na fazenda Boavista, do termo da antiga vila de Príncipe imperial, que pertencia ao Piauí (veja nota 1).
3) Soledade. Estado de quem se acha só. Lugar ermo, onde alguém vive curtindo saudades.
4) C’roas. Coroas. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. Monte de areia, no leito dos rios. No Norte também se diz croa.
5) Noutro local deste livro há comentário sobre rola (pássaro).
6) Sensitiva. Planta, cujas folhas e folíolos têm a propriedade de se fechar, quando se lhes toca (Aurélio).
7) Eras. O mesmo que tempos, épocas.
8) Trindades. Toque das ave-marias. Tardinha (neste sentido só usado no plural).

A Aurora

Douram-se os prados ao romper d’aurora,
Que surge à hora que prazer só diz,
Os horizontes de listões (1) se arreiam,
Aves gorjeiam nos rosais gentis.

Na clara e doce sussurrante fonte,
Que do alto monte se despenha e cai,
O roxo manto de ondeantes cores
Com seus lavores a atenção atrai.

Nas verdes folhas, onde o orvalho oscila,
Brilha e rutina matinal rubim, (2)
Que a meiga aurora coloriu, raiando,
Co’o matiz brando de um primor sem fim

As brancas nuvens que através do espaço,
Do lume baço, pelo ar se vão,
Cingem brocados de um lavor perfeito
Como se feito por virgínea mão

A flor donosa, que do calix pende,
Cheiro recende que se eleva ao céu;
Tudo se expande, se promete vida
À luz querida do cambiante véu.

Da cumieira, no trinado vário,
Quanto o canário nos atrai, seduz!
Chilra a andorinha na cornija santa,
E o galo canta co’a fulgente luz.

Douram-se os prados ao romper da aurora,
Que surge à hora que prazer só diz,
Os horizontes de listões se arreiam,
Aves gorjeiam nos rosais gentis.

A luz, em tanto, que listões formara
Já mais se aclara pelo espaço além;
A luz d’aurora que assomou dourada
É dissipada pelo albor que vem.

E a criancinha, que acordando chora,
Logo afervora maternal amor;
A linda virgem, que do sono acorda,
Só se recordar de brincar e flor.

O pobre artista, que o trabalho presa,
Apenas reza, se encomenda a Deus,
Todo se afana no trabalho duro,
Que é seu futuro mais dos filhos seus.

E prados e aves, e perfume e montes,
E orvalho e fontes, e listões no ar,
“Hosana” (3) tudo ao Criador entoa,
Que a seus pés voa, que lh’os (4)vai beijar.

A criancinha, que acordou chorosa,
Virgem formosa, que sonhou com flor,
O artista pobre, que o trabalho estima,
Tudo se anima co’o fulgente albor.

E antes que o dia radioso assome,
E que o sol dome todo o ar com luz,
Na mente um hino fervoroso e santo
Eu devo, em tanto, consagrar à Cruz. (5)

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¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
A luz dourada, que listões formara,
Quanto se aclara pelo espaço além!
A luz d’aurora que surgiu dourada,
É dissipada pelo albor que vem.

E a natureza como está sorrindo
Ao astro lindo que apontando vem!
Tudo progride na ciência e arte!
Por toda parte resplandece o bem!




Comentários
1) Listão. Faixa. Risca larga. Existe o variante listrão.
2) Rubim. Pedra preciosa de cor vermelha. Em sentido figurado, como no caso, cor vermelha. Há a variante rubi, mais usada. Palavra de propcedência latina.
3) Hosana. Da língua hebraica . Significa: salve, também louvamos. Breve oração dirigida a Jeová, pedindo socorro, tirada do Salmo 118. Aclamação do povo, marchando em tono do altarna festa dos tabernáculos: “A maior parte das orações pronunciadas nesta solenidade, começavam pelo hosana” (John D. Davis – Dicionário da Bíblia” – 280). A multidão dos discípulos que acompanhavam a jesus na sua entrada em Jerusalem aclamava-o, dizendo: “Hosana, filho de Davi”. Hosana corresponde a canto de alegria. No sentido religioso é expressão de júbilo. Substantivo masculino: o hosana. Usa-se hosana também como interjeição.
4) Lh’os. Combinação do pronome lhe (em função possessiva) com o pronome os (objeto direto): que vai beijar os (pés) lhe (dele).
5) Cruz. Deus. Religião.


As Aves da Minha Terra

As aves da minha terra,
Quer no sertão, quer na serra,
Sabem falar!
Esta seu fado carpindo, (1)
Aquela a lira ferindo
No seu trovar!

Outras aos matos ensina
Doces nomes que amofinam
Seus corações;
Esses nomes tão queridos,
Sempre tristes – repetidos
Nas solidões.

Quando vai findando o dia,
E que, escondido, alumia (2)
Ainda o sol,
A pomba (3) no tronco antigo
Carpe saudades do amigo
Ao arrebol!

De outra parte saltitando
De galho em galho cantando
Gentil sofreu, (4)
Toca na lira afinada
Uma canção modulada
Que o amor lhe deu!

E aquela que além se esconde,
Lá chama (ninguém responde)
“Ó Zabelê!” (5)
Tão triste! Lá foi –se embora,
E a amada que tanto chora
Ninguém n’a vê!

E aquela que ali suspira,
Que sofre, que até delira
Num seco pão,
Em tom sentido e penoso
Lá chama o chorado esposo
“João-corta-pão!” (6)

também a rola gemendo
o esposo que viu morrendo
se lastimou!
Seu fim co’o sol comparando
No ocaso, diz suspirando:
“Fogo-apagou!” (7)

Da cegueira que não o deixa
O caboré já se queixa
Cantando ao sol,
Repetindo assim o nome
Da doença que o consome:
“Terçol-terçol!...” (9)

Também da beira do rio
Quando tudo é já sombrio
De um mulungu,(10)
A infeliz, a desgraçada
Chama com voz abafada:
“Jacurutu!”(11)

Mas... que soldado tão belo
Faz com seu peito amarelo
A guarda ali?
É uma ave mui guerreira,
Que, pulando na aroeira (12)
Diz: “Bem-te-vi!” (13)

Também diz um, todo o dia,
Quando o sol põe-se ou radia,
E surge além;
Chamando pela esposinha,
Dia a saudosa avezinha,
“Vem vem!”(14)

Vede lá também aquela,
Chama-se a tal bacharela (15)
Pega (16)ou cancão; (17)
Ela sorri-se, ela fala,
Assobia, canta, estala...
Que compr’ensão!

Eis ali outra – tão bela!
Rompendo, qual sentinela,
O denso véu
Da mudez da noite escura,
Quando, vendo a criatura,
Grita: “tetéu!” (18)

Dai, porém, ao papagaio (19)
Da oratória o louro (20), daí-o,
Pois nisto estou:
No dizer, no estilo é uma,
É das aves na tribuna
O Mirabeau! (21)

É terra que tem primores
A terra dos meus amores,
Onde nasci!
As aves de lá se falam,
Cantam, suspiros exalam
No Piauí!




Comentários
1) Carpindo. Verbo carpir. Emprego no sentido de prantear, chorar. O verbo carpir não conjugado na primeira pessoa (singular) do indicativo presente. Em conseqüência não tem o subjuntivo presente.
2) Alumia. Noutro local há comentário sobre este verbo.
3) Pomba. Fêmea do pombo. Os autores românticos tiveram muita afeição por esta ave, símbolo da inocência.
4) Sofreu. Também sofrê. É o corrupião. Onomatopéia: tomam-se as onomatopéias traduzidas em palavras humanas para designar o animal que as pronuncia.
5) Zabelê. Copio: “De pés vermelhos e de corpo quase todo vermelho, a primeira impressão para quem vê, de longe, a Zabelê, é de que se trata da Juriti-piranga (ordem Columbiformes, espécie Oreopeleia); e, como o seu canto é de uma nostalgia e ternura inigualáveis, ainda mais se positiva a impressão de que ela é a Juriti-piranga. Entretanto, é muito maior do que a Juriti; o seu tamanho aproxima-se mais de uma inhuma ou de um mutum; sendo assim mais desenvolvida, a natureza lhe permitiu o hábito de andar pelo chão, de caminhar ou correr comumente pelo solo” e adiante: “quanto à origem da palavra Zabelê, não há dúvida de que é tupi, e, quanto ao significado, afirmam que é um enunciado onomatopaico” (Bugyja Britto – Zabelê – 8).
6) João-corta-pau. João tem grande voga no Brasil para a designação de aves. O João-corta-pau pertence à família dos Caprimúlgidas. Plural: Joões-corta-pau.
7) Fogo-apagou. Noutro local há comentário sobre fogo-apagou.
8) Caburé. Nome dado a uma espécie de mocho pequeno. Nascentes dá à palavra origem tupi. Com a significação de “o propenso a morar no mato”. Vive isolado. Só sai de noite.
9) Terçol-terçol. Terçol é pequeno abscesso no bordo das pálpebras. “Lindo olho tem o caburé” – diz-se por ironia.
10) Mulungu. Árvore leguminosa. Nome de uma árvore africana. Nome africano.
11) Jucurutu. Ave de canto triste, plangente. Nome tupi.
12) Aroeira. Árvore de madeira muito dura.
13) Bem-te-vi. Ave muito conhecida. Quando canta parece repetir: bem-te-vi. Daí o nome.
14) Vem-vem. Nome dado a vários gaturamos. Plural vem-vens.
15) Bacharela. Empregada a palavra no sentido de mulher faladora. Aplica-se à pega.
16) – 17) pega ou canção. Ave faladora. Com o nome de pega se batiza a meretriz.
17)
18) Tetéu. Ave pernalta.
19) Papagaio. Ave trepadora, notável pela facilidade com que imita a voz humana. Parece que a origem é o latim papagallus, no provençal papagai, espanhol papagayo. Tido o papagaio como sabido e esperto. Há estórias de papagaios notáveis. No folclore brasileiro o papagaio aparece como herói de muitas aventuras. Anedota de papagaio se tem na conta de anedota imoral.
20) Louro. Nome que se dá ao papagaio. Assim já cantavam os troveiros medievais:
Papagaio louro
Do bico doirado,
Leva esta carta
Ao meu bem amado.
21) Mirabeau. Honoré Gabriel Victor Riqueti, conde de Mirabeau, francês (1749-1791). Famoso orador. Pertenceu à assembléia francesa e da tribuna lançou a frase célebre e desafiadora: “Estamos aqui por vontade do povo e daqui só sairemos pela força das baionetas”.

Só um Anjo Será

A flor que melindrosa se baloiça
No melindroso, delicado pé,
Não é como o meu bem tão melindrosa,
Não é, não é, não é!

A aurora que o levante purpureia, (1)
Que os horizontes colorindo vem,
Não tem aquelas lindas, róseas faces,
Não tem, não tem, não tem!

A brisa que sussurra nas palmeiras
É doce quando a tarde em calma está;
Mas voz tão maviosa como a dela
Não há, não há, não há!

A flauta (2) que desoras (3) suspirando
Quebra da noite a plácida soidão, (4)
Não é como o seu canto – direi sempre
Que não, que não, que não!

Se alguma virgem bela ataviou-se
Para mais realçar o todo seu,
Esse todo o meu bem – sem atavios –
Venceu, venceu, venceu!

Su’alma e coração são compassivos,
Ela tem o candor de um serafim, (5)
É, sim, a minha amada um tipo d’anjo;
É, sim, é sim, é sim!

Só um anjo de Deus, dos céus baixado,
Que à celeste mansão remontará,
Será como o meu bem perfeito e puro,
Será, será, será!




Comentários
1) Purpureia. Verbo purpurear. Dar cor de púrpura (vermelho escuro)
2) Flauta. Também frauta. Formas variantes.
3) Desoras. Melhor que o poeta houvesse empregado a locução a desoras, fora de horas, alta noite. Também se usa a desora, como neste passo de Manuel Bernardes: “... estrondos noturnos que a desora se ouviam”.
4) Soidão. Forma antiquada de solidão. Felinto Elísio empregou-a: “Na soidão dos escuros corredores”.
5) Serafim. Nome de entes celestiais que estavam à roda do trono de Deus, na visão de Isaias. Cada um deles tinha seis asas: com duas cobriam a face, com outras duas cobriam os pés e com duas voavam. Figuradamente, pessoa formosa.

Às Seis Horas da Manhã

A mente está mais tranqüila,
A natura é mais louçã,
Tudo tem mais resplendores
Às seis horas da manhã.

Traja a aurora vestes d’ouro,
Matizando o colo (1), a chã,
Dando à corrente brilhantes
Às seis horas da manhã.

Negligente sobre o leito
Meiga virgem, linda e sã,
Inda jaz, cismando amores
Às seis horas da manhã.

Outras vezes levantada
Saúda o terno galã,
Que um adeus fruir viera
Às seis horas da manhã.

Da janela ao acenar-lhe
Co’o mais formoso ademã, (2)
Mostrou quanto era ditosa
Às seis horas da manhã.

E ele disse: “Oh! mais se firma
O donoso talismã
Do nosso amor! – m’o (3) asseguram
Às seis horas da manhã!”

Libando da esposa um osc’lo (4)
Nos lábios cor de romã, (5)
Procura o esposo o trabalho
Às seis horas da manhã.

Acorda a gentil criança
Chorando a gritar mamã!
Logo a mãe ao seio aquece-a
Às seis horas da manhã.

O desgraçado recorda
Sonhada aventura – vã
Mas essa mesma o consola
Às seis horas da manhã.

Já brinca à beira do lago
Mui esbelta a jaçanã, (6)
Nessas horas dos folgares,
Às seis horas da manhã.

As aves trinam nas selvas,
E grita a maracanã, (7)
As brisas serenas sopram
Às seis horas da manhã.

Horas! vós sois precursoras
Do prazer, como do afã!
É tudo vida e trabalho
Às seis horas da manhã.

Lá surge o sol levantino!
Prostai-vos, raça pagã,
De Deus a sombra que surde
Às seis horas da manhã.

Comentários
1) Colo. Emprego no sentido de zona de transição entre raiz e caule.
2) Ademã. Sinal externo, com que se manifesta o gosto, ou desprazer, e assim qualquer afeto da alma; gesto (Morais).
3) Mo. Combinação do pronome átono me com o demonstrativo o (isto): me asseguram isto.
4) Ósc’lo. Ósculo. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
5) Romã. Fruta, de cor rósea.
6) Jaçanã. Ave ribeirinha, de bela plumagem. É o tupi-guarani nhaçanã.
7) Maracanã. Ave. Do tupi maracá = m (b) aracá (o maracá, o chocalho), nã (semelhante, parecido): semelhante ao maracá, equiparado ao chocalho (veja Romão da Silva – “Denominações Indígenas na Toponímia Carioca” – 235).

Nênia

(oferecida à minha querida irmã, Joana C. de A e S., por ocasião da morte de nosso querido e sempre lembrado pai)

A corda que mais sonora
Soava em meu coração,
Já não vibra alegremente
As mesmas notas de então.
Agora, envolvida em crepe, (1)
Só exprime a minha dor;
Quanto é triste o seu acento,
Pungente e consternador!

Ó meu pai, que me educaste
Na santa lei de Jesus;
Que me deste bons exemplos,
Os olhos fitos na Cruz;
Por que deixaste este mundo
Tão solitário e cruel,
Onde sinto só tristezas,
E sorvo somente fel?

Morreste... e eu sei que tu’alma
Descansa eterna e feliz;
M’o (2) dizem tuas virtudes,
Tua vida santa m’o diz;
Porém tua ausência eterna,
Tão saudosa, tão fatal,
Me dilacera as entranhas
Com uma dor sem igual.

Ó vós, corações de filhos,
Que inda hoje suspirais
Por um pai piedoso e santo,
Cuja memória ainda amais:
Avaliai minhas mágoas
E a dor do meu coração,
Pois meu pai já não existe
Minha mais doce afeição.
Saudade que me acompanhas
Pela morte de meu pai,
Não sejas tão aflitiva;
Fibras do peito chorai!
E vós lágrimas saudosas,
Por estas faces corre;
Que eu não sei como inda vivo
Sem meu caro pai, – não sei!

Tu, corda que mais sonora
Soava em meu coração,
Vibra sons consoladores,
Como as brisas da soidão;
Vibra, sim, que este meu pranto
É puro pranto de amor
Por meu pai, que amarei sempre,
Que hoje habita co’o Senhor.


Comentários
1) Crepe. Emprego no sentido de luto
2) Mo. Combinação do pronome átono me com o demonstrativo o (isto): tuas virtudes me dizem isto.

O Piauí

Vós pensais que minha terra
Menos que as outras encerra
De beleza e de primor?
Enganai-vos: é tão bela,
Tão prendada que como ela
Poucas há, se alguma o for.
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas.

Tem tantas frutas gostosas,
Tantas aves sonorosas,
Tem um sol tão criador!
Tem uma manhã luzida,
Tem uma tarde sentida,
Que recorda tanto amor!
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas;

Tem caças mui saborosas,
Que vivem tão descuidosas,
Sem temer o caçador!
Suas madeiras têm favos
Que abrigam seus filhos bravos
Da fome e mais do calor.
É terra, cujas meninas
Mostram nas faces boninas.

Seus rios são caudalosos,
Navegáveis e piscosos,(1)
Emanam dizendo – amor!
Tem lindas flores fragrantes, (2)
Ouro, prata e diamantes,
E outras minas de valor.
Fogem por entre boninas
As nascentes cristalinas.

Tem um céu tão anilado,
De noite tão estrelado,
Tão gentil e encantador,
Que eu não sei se assim o digo
Porque conservo comigo
O que chamam próprio amor.
Mas quem nega que as meninas
Mostram nas faces boninas?

Seus filhos são mui briosos,
São, em geral, talentosos,
Têm à pátria fido (3) amor;
Suas filhas são fagueiras,
São lindas, são feiticeiras, (4)
De branca ou morena cor.
É terra cujas meninas
Mostram nas faces boninas.

Tem uma lua saudosa,
Uma brisa harmoniosa,
Que exala suave odor;
Tem mancebos (5) dedicados,
Valorosos, extremados
Na paz, na guerra, no amor.
Tem vales e tem colinas
Matizadas de boninas.

Vereis nas altas palmeiras,
Ou nas copadas mangueiras
Chilrar o alado (6) cantor;
Vereis, libando a doçura
Do cravo, da rosa pura
O fulgido beija-flor.
Vê-lo-eis pelas campinas
Beijar olentes boninas.

Vós pensais que minha terra
Menos que as outras encerra
De beleza e de primor?
Enganai-vos: é tão bela,
Tão prendada que como ela
Poucas há, se alguma o for.
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas.

Minha terra é o El Dorado, (7)
Deleitoso, afortunado,
Que Walter Raleigh (8) sonhou;
É o país de Cocanha, (9)
Onde a ventura é tamanha
Que a vida nunca abafou!
Oh! ide ver a minha terra
Que tanta beleza encerra!

Comentários
1) Piscosos. Abundante em peixes. Pelo latim pisce, como representação excepcional do grupo sc.
2) Fragrantes. Aromáticas. Perfumadas. Não confundir com flagrante.
3) Fido. Pelo latim fidu, o mesmo que fiel.
4) Feiticeiras. Emprego no sentido de mulher que encanta por sua beleza. Atraente.
5) Mancebo. É o latim mancipiu, moço, prisioneiro de guerra, escravizado por ser mais útil ao trabalho. Emprego no sentido de jovem.
6) Alado. Latim alatu. Que tem asas, pássaro.
7) Eldorado. Explicação de nascentes: “lugar imaginário, cheio de riquezas incalculáveis (De Eldorado, o dourado, nome do soberano de um país imaginário da América do Sul, o qual ao amanhecer revolvia-se em pó de ouro).” De R. Magalhães Junior a observação: “Por estas palavras era designada uma terra do ouro, que se supunha localizada na América do Sul. Nela existiriam os maiores depósitos desse metal precioso em todo o mundo e não haveria pobres, vivendo todos na maior abundância. A lenda se originou, sem dúvida, da apreensão, por Pizarro, dos tesouros dos Incas, no Peru. Aplica-se a expressão, nos dias de hoje, a todas as regiões em que abundam ouro, petróleo ou outras riquezas. Voltaire, em Candide, ou L’optimisme, fez o seu herói visitar o Eldorado, nas imediações do Paraguai, e aí não tinha curso o dinheiro, por inútil, pois até as crianças, nas ruas, brincavam com pepitas de ouro...” (“Dicionário de Provérbios e Curiosidades” – 116).
8) Walter Railegh. Também se escreve Ralegh. Cortesão, navegador, colonizador, escritor. Inglês, viveu entre os séculos XVI e XVII.
9) País de Cucunha. País da abundância, onde tudo é deleitoso. Criação do fabulário da idade Média – segundo R. Magalhães Junior -, que cita Maurice Rat para informar haver a expressão aparecido pela primeira vez no século XII. R. Magalhães Junior transcreve Capistrano de Abreu: “Por Gabriel soares sabemos que a gente de tratamento só comia farinha de mandioca fresca, feita no dia. O mesmo autor dá uma lista, forçosamente incompleta, das conservas e doces, transplantados uns de além-mar, aprendidos outros na terra. Dir-se-ia um país de Cocagne”. Cocagne é forma francesa.

Como a Flor do Bulebule (1)

Os cabelos de Maria
À mais leve exalação
Se embalançam,
Brincam, dançam.
Buliçosos eles são,
Como a flor do bulebule,
Aos beijos da viração.

Anelados por seus ombros
De uma candura sem fim,
Ora adejam,
Ora beijam
O seu seio de marfim. (2)
Como a flor do bulebule,
A brisa agita-os assim.

Quem a visse descansando
Sua face sobre a mão
Docemente
Negligente,
Dissera-a etérea visão,
Ou a flor do bulebule,
Se não sopra a viração.

Mas e a brisa se levanta
Como as aves de manhã,
Os cabelos,
Louros, belos,
Da terna virgem – louçã,
Como a flor do bulebule,
Beija-os a brisa da chã. (3)

Os cabelos de Maria,
Aos beijos da viração
Se embalançam,
Brincam, dançam
Resplendem meigo clarão.
Como a flor do bulebule,
Seus lindos cabelos são.

Comentários
1) Bulebule. Ervinha, cuja flor se agita facilmente com qualquer vento. Figuradamente, o que é buliçoso, inquieto.
2) Marfim. Emprego figurado: branco.
3) Chã. Solo. Superfície da terra.

O Correr da Vida

Surge a aurora purpurina,
Na roseira abre um botão,
Brilha n’água cristalina
Dessa aurora almo (1) clarão.
Mas passou... não volta a aurora,
A fonte não mais colora,
Nem o botão nessa hora
Há de mais abrir-se, não.

Exala a flor doce aroma,
Os gozos prazer nos dão,
O riso aos lábios assoma
De acordo co’o coração.
Mas esse aroma sumiu-se,
Esse prazer extingui-se,
Esse riso consumiu-se,
Jamais nunca voltarão.

Se meiga aurora resplende,
É outra – a de ontem morreu!
O botão que se desprende,
Não é o que emurcheceu!
O cheiro, o prazer gozado,
Tudo – lá jaz no passado,
Tudo, lá jaz olvidado
Na era em que se perdeu!

A brisa que hoje cicia,
Que dela amanhã? – morreu!
A hora passada, o dia
Não volta, desapareceu! (2)
Mais perto estamos da morte,
Trilhe este ou aquele norte,
Ninguém evita seu corte,
Dá-se à terra o que ela deu.

Comentários
1) Almo. Noutro local deste livro há comentário sobre almo
2) Desparecer. Noutro local deste livro há comentário sobre desparecer

Sobre o Mar

Aos crebos (1) sons das empoladas ondas,
Que o barco fende, perpassando ovante,
Modelo as dores de meu peito aflito,
Afiro as mágoas de meu peito amante.

Solitário entre o mar e o firmamento,
Procuro serenar meus tristes males,
Porém o pensamento esbaforido
Erras nestes azuis, equóreos (2) vales.

Por que sulcando as ondas marulhosas,
Arrisco minha vida já precária?
Por que não findar meus tristes dias
No seio de uma gruta solitária?

Mas não! Morrer sem vê-la, longe dela
Fora morrer mil mortes num só dia.
Morrer!... quero viver para fitá-la...
Morra depois embora de alegria.

Quanta vida reluz nos seus encantos!
Nos seus olhos gentis quantos fulgores!
Mas eu... pobre de mim! – luto co’a (3) morte,
Gemo ao recontro de pungentes dores!

Talvez que os frescos ares que respira,
Me façam renascer, voltar-me a vida;
Talvez que do seu hálito no ambiente
Possa minha saúde ser mantida.

Talvez! Avante, ó barco e bem depressa!
Leva-me ao suspirado porto amigo;
Oh! leva-me, que eu tenho neste peito
Muitas saudades que afogar comigo.

Comentários
1) Crebo. Repetido, amiudado.
2) Equóreos. Relativo ao mar. Origem latina.
3) Co’a. Noutro local deste livro há comentário sobre co’a

Hino ao Criador

Senhor, tu és o Deus, o pai celeste,
Que minha mãe adora ajoelhada;
Por mim, por meus irmãos, por meus parentes,
Por todos, neste mundo, ela não cessa
De dirigir-te aos céus freqüentes súplicas.
Suas lágrimas que manam saudosas
Por meu Pai, que ela amava mais que tudo,
Depois do teu amor que ao dele excede,
São outras tantas preces que se elevam
A ti, Senhor, por seu repouso eterno!
Tu foste de meu Pai o deus propício;
Por ti acrisolou-se na virtude
Vivendo como vive o justo e o sábio,
Morrendo como morre o sábio e o justo.

Senhor, o teu poder tudo proclama:
O inseto humilde que se escapa aos olhos,
A enorme fera que no corpo avulta,
A dura pedra, o vegetal virente,
A terra, o espaço, o céu, a luz, as trevas,
E o homem que fizeste à imagem tua.

Àquele lindo arroio que serpeia
Por entre flores, ervas e pedrinhas,
Mandaste-lhe correr sereno e puro,
E o arroio correu!
Àquele mar sanhudo que de encontro
Vem quebrar-se nas duras penedias,
Mandaste-lhe gemer nos seus embates,
E o mar, Senhor, gemeu!

Àquela várzea, que verdeja ao longe,
Àqueles férteis prados recamados
De mimoso capim, por onde pastam
De minha Mãe as brancas ovelhinhas,
Mandaste a chuva fecundar no inverno,
E a chuva os fecundou!
Mandaste à terra que seu seio abrisse,
E nele recebesse o grão que a vida
Dos povos alimenta; e ao grão mandaste
Crescer e produzir: e o grão crescendo,
Aos olhos do colono, que o mirava,
Produziu e vingou! (1)

Oh! quanto o meu Senhor foi previdente
Quando do mundo tirou do caos horrível!
Como estas laranjeiras fez sombrias
E lhes deu flores e dourados frutos!
Como à pinha (2) lhe deu sabor tão grato!
Como deu à romã tão doces bagos!

Senhor! Tu és a fonte donde emanam
Vida e prazer, amor e poesia!
O doce sabia nos seus gorjeios,
O lindo pintassilgo (3) nos seus descantes, (4)
O canário amarelo em seus trinados,
As aves da soidão, que amam as trevas,
Tudo, tudo, Senhor, Deus de proclama
Imenso, Criador, Onipotente!

Não te saúda a rosa quando se abre
Aos beijos da manhã na voz da brisa?
Não são tipos de amor que te revelam
O cravo (5), o bogari , (6) os brancos lírios? (7)

Múltipla a natureza em elementos,
Tudo tem sua voz para louvar-te:
As flores o perfume; o canto as aves;
O mar seus escarcéus; o sol fulgores;
O céu, onde rutilam tantos mundos,
Milhões de estrelas que cintilam belas;
E o homem, ledos hinos de harmonia,
Do coração brotados fervorosos,
Que lh’os (8) dita a razão por teus favores.
Hosana, (9) a Deus nos céus! Na terra Hosana!

Ó Deus de minha Mãe, Deus piedoso,
Que na terra e no céu meu Pai amava,
Aceita deste mísero vivente
As flores, os incensos que te envia
Nos seus versos de amor; - flores, incensos,
Sem galas, sem perfumes, sem sinceros,
Filhos d’uma alma que te adora crente.
Oh! aceita-os, Senhor! se não desprezas
A voz da brisa, o sussurrar da fonte,
O bulício das ramas que te elevam
Um cântico de amor fervente e terno,
Jamais desprezarás a voz daquele
Que por ti modelaste na feitura,
Superior à toda natureza
E somente sujeito ao teu destino.
Sim! aceita-os, Senhor, e teus favores
Derrama-os sobre mim, por piedade,
E sobre minha Mãe e minha amada,
E sobre os meus irmãos e a Pátria minha.
Derrama-os. Minha voz será constante,
Senhor, em proclamar-te o Deus propício
De meus Pais, - o meu Deus que adoro humilde.

Comentários:
1) Vingou. Empregado no sentido de amadurecer, medrar, crescer: as sementeiras vingaram.
2) Pinha. O mesmo que ata, fruta.
3) Pintassilgo. Pássaro
4) Descantes. Concerto de vozes.
5) Cravo. Flor do craveiro
6) Bogari. Flor. Também se diz bogarim
7) Lírios. Flor.
8) Lhos. Combinação dos pronomes átonos lhe e os: dita a razão a ele (lhe) homem estas cousas (os).
9) Hosana. Noutro local há comentário sobre hosana.

O Mar e o Vento

E o vento e o mar viram nascer o gênero humano, crescer a selva florescer a primavera; e passaram e sorriram-se.
(A Herculano – Eurico)

Irmãos, sócios nas fúrias, quem não sente
O gelo do terror ao contempla-vos!
Em cada vaga, que se arroja irosa,
Em cada sibilar, que rijo açoita,
Eu ouço a voz do Imenso, a vos do Eterno!

Oh! como assemelhai-vos majestosos
Àquele que vos deu poder tamanho!
Como zombais nas vossas tempestades
Do mísero mortal, fraco e mofino!
- É que de Deus representais o verbo?

Quando vossos esforços combinados,
Os vossos temporais, vossos horrores
Se cruzam n’amplidão do espaço imenso,
Converte-se o ateu (1), o cristão ora,
E o guerreiro gentil olvida a espada!

E vós como passais – altivo – ousado!
Como sorris da própria humanidade!
Que se curva, humilhada, às vossas iras!
- É que Deus vos criou primeiro que o homem,
E em vossas fúrias estampou seu verbo!

Rugi! Gemei! ó mar, ó tempestade!
Erguei aos ares vagalhões indômitos!
Enchei o espaço de tufões (2) medonhos!
Que vos pode domar a raiva insana,
Que cava abismos, que soçobra armadas? (3)

Quem vos pode domar? Deus, Deus somente.
Passai – sorri – zombai da humanidade.
Quem da afronta ousará tomar vingança?
O homem? – este não, que o escarnecestes:
- Somente o Criador, de quem sois verbo. (4)

Comentários
1) Ateu. Formação grega: a (elemento privativo) e theo – teo (Deus). Sem Deus. Que não crê em Deus.
2) Tufão. Vento violento. Parece que se trata do árabe tufan.
3) Armadas. Forças navais. Navios de guerra.
4) Verbo. Referência ao Filho de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Diz o Evangelho: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. O Verbo fez-se homem e habitou entre nós e nós vimos a sua glória, glória como Filho unigênito do Pai” (São João – I, 1, 14). O Verbo feito homem é Jesus Cristo.

O Catingueiro

Nasci e crie-me nas bastas catingas,(1)
Nas selvas umbrosas (2) de meu Piauí;
Não gosto das praças, seus usos detesto,
Que males e dores não sofrem-se (3) aí!
Ditoso me julgo, tocando a viola,
Cantando os amores que temos aqui.

Eu vivo contente de ser catingueiro, (4)
Da caça, da pesca, das frutas rendeiro. (5)

Voltando da roça, nas horas douradas,
Sentidas que a rola (6) diz fogo apagou, (7)
Vi uma donzela (8) risonha, formosa,
Que amor em peito pra sempre plantou.
Pedi-a, ma (9) deram, casei-me com ela,
E Deus nosso leito d’amor fecundou.

Co’a esposa querida, co’os caros filhinhos,
Que vida que eu passo! que ternos carinhos!

Se o dia é de festa, se é santo (10) ou domingo,
Eu dispo (11) a camisa do quente algodão,
E visto o meu fato (12), que tanto custou-me, (13)
Se acaso não quero vestir meu gibão; (14)
E vou-me pra vila, que o padre me ordena
Que à missa não falte, não falte ao sermão.

Entretanto na igreja, de joelhos curvados,
Minh’alma não cisma do mundo em cuidados.

Não cisma em cuidados, que toda se prende
Às chagas, sofridas por nós, de Jesus;
Meus lábios suplicam... e as preces contritas,
Humildes se abraçam co’a trava da Cruz, (15)
Se abraçam – que nela de Cristo os discip’los (16)
Enxergam seu norte, (17) seu anjo, sua luz.

Ditoso me julgo na crença primeira
Que a mãe carinhosa ditou-me (18) à lareira. (19)
Cumprido o preceito que a igreja nos manda
No seu mandamento primeiro, (20) saí,
E a casa do padre vigário procuro,
Que ele é meu compadre – melhor nunca vi!
Co’o riso nos lábios, me diz: “Como passa?
Sem ter almoçado não vá-se (21) daqui.”

Às vezes espero; mas outras, saudoso,
Regresso à choupana, (22) que eu amo extremoso.

Oh quadro de encantos! de graças ornado!
Sim: vede-o, invejai-m’o . Que vida esta aqui!
- A esposa na porta, co’o riso da esp’rança, (23)
Aponta-me rindo: “Filhinhos, lá... vi!”
E as lindas crianças olvidam seus brincos: (24)
“Mamãe! - Gritam elas – papai vem ali”.

Cheguei! – minha esposa foi logo abraçando,
E bênçãos (25) e beijos aos filhos fui dando.

Mimosos afagos me faz a consorte,
Em roda os filhinhos me chamam papai,
Me contam mil cousas, me pedem bolinhos;
Quem vai tão ditoso no mundo – quem vai?
Ó vós das cidades notai os enlevos
De nossas catingas, senhores, notai!

Não temos cuidados, que a Virgem Maria
A pobre choupana dos pobres vigia.

Mil frutas encontro nas vastas catingas
Nas várzeas e campos do meu Piauí:
Cajus, (26) guabirabas, (27) maduras pitombas, (28)
Dendês (29) e palmeiras, cajás, (30) buriti, (31)
Também há mangabas (32) e umbus (33) tão gostosos!
Pequis (34) e juçaras, (35) e o bom bacuri. (36)

Que vida e doçura nos densos palmares,
Em nossos ubérrimos, (37) frescos pomares!

Em nossos açudes, (38) lagoas e rios,
Meu Deus! que fortuna! quão provido és!
Que boas branquinhas, (39) que peixes gostosos,
Piaus (40) e corvinas, (41) mandis, (42) mandibés! (43)
Aqui só tem fome quem vive na rede,
As mãos amarradas, atados os pés.

Não troco esta vida, pois outra mais bela
Não vejo no mundo, nem farta como ela.

No inverno que vida! que dias alegres!
A chuva na terra, na terra o feijão,
O arroz, a maniva (44) e o milho amarelo,
Que nascem e medram no fértil sertão.
Das vacas que mugem – de bafo cheiroso –
Mungimos (45) o leite que faz requeijão. (46)

De noite a coalhada (47) na branca tigela (48)
Se estende na mesa tão branca como ela.

Nas praças se mente, nas praças se zomba
De nós catingueiros – dos filhos daqui:
Que importa? – desprezo seus usos tiranos,
Que a gente sufocam! – não quero-os (49) pra mi? (50)
Ditoso me julgo nas margens virentes
Floridas, umbrosas do meu Piauí.

Não faltam-nos caças nas matas sombrias:
Queixadas, (51) veados, (52) tatus (53)e cotias. (54)

Belezas dos campos, belezas donosas, (55)
Que os olhos deslumbram nos dias de abril!
A várzea verdeja de flores toucada, (56)
No vale baloiçam-se flores a mil!
E a coma das altas, verdosas colinas
Ondeia, flutua de um modo gentil!

Não pode ter gozo nenhum verdadeiro
Quem vive no mundo sem ser catingueiro.

Orquestras das pacas – que valem, que servem!
Da minha viola prefiro o rojão; (58)
Prefiro os tangeres (59) que desse umbuzeiro,
Pesado de frutos, ferindo-me estão;
Prefiro essa orquestra que as aves modulam,
Que calam delícias no meu coração.

Delícias! Delícias! – prazer que extasia
Nas asas sonoras da doce poesia!

Que importa-me (60) a vida dos homens da praça?
Que importa? Que digam se tenho razão:
Em nossas catingas mil frutos pendentes
O gosto me excitam em toda a sazão; (61)
Em suas madeiras mil favos (62) se criam,
Mil favos gostosos – tão doces que são!

Nambus, (63) codornizes (64) abundam nos matos
Carões (65) nas lagoas, marrecas e patos.

Nas praças que zombam de mim: que me importa?
Co’a esposa, co’os filhos em torno ao fogão,
Eu vivo ditoso, não tenho remorsos,
Em quanto a viola desfiro o rojão!
E as coplas (66) alegres com ele se casam
Do peito nascidas, do meu coração.

Esposa, filhinhos, cantemos, cantemos,
De Deus a bondade louvemos, louvemos.

Nasci e criei-me nas bastas (67) catingas,
Frondentes, sombrosas – do meu Piauí;
Não gosto das praças, seus usos detesto,
Que males e dores não sofrem-se aí!
Ditoso me julgo, tocando a viola,
Cantando os primores que temos aqui.

Bem disse o vigário que nós catingueiros
Vivemos mais fartos que em londr’os (68) banqueiros.

Comentários
1) Catingas. O nome do poema é “O Catingueiro” – e catingueiro é o que habita a catinga. Esta palavra catinga também se escreve caatinga. Aliás, neste sentido em que Coriolano emprega a palavra, aparece sempre caatinga, embora os dicionários também registrem a variante catinga: “Por caatinga, entende-se um aglomerado de plantas lenhosas, de baixa altura, cuja composição, longe de ser uniforme, varia extraordinariamente de acordo com a qualidade do solo, do sistema fluvial e com a topografia geral do terreno. O xerofitismo é o seu elemento básico. As folhas caducam e desaparecem completamente nas secas. Será curioso assinalar que a grande quantidade de folhas das florações das caatingas poderia ser elemento de grande significação para sua sobrevivência. Essa transformação, porém, não se realiza por motivo da umidade do solo. Todavia, abundam nas caatingas tubérculos radiculares providos de bactérias nitrificantes, cujo tipo mais notável é representado pelas leguminosas. Essas bactérias hibernam nas secas para reaparecerem em grande atividade logo que desabam as primeiras chuvas. Dá-se, então, o milagre do verde, que surpreende o vaijante habituado à paisagem desoladora do estio” (Carlos porto – “Roteiro do Piauí” – (114-115). Mais abaixo (pág. 115) salienta o consagrado estudioso: “a caatinga é a vegetação típica do Nordeste, a mais profusa e a que lhe imprime feição peculiar”. Nascentes tira caatinga ou catinga do tupi Ka’a (mato) e tinga (branco). Macedo Soares transcreve a definição que St. Hilaire deu de catinga: “mato que perde as folhas anualmente, e ostenta menos vigor que o mato virgem – e cujas folhas são ora brancacentas, ora avermelhadas, de um bolor ou ferrugem que as cobre” (Dicionário). Acha o dicionarista que nesta acepção catinga vem do tupi-guarani cating, bolor, ferrugem. Acha ainda que caá-ting, mato branco, “como dão todos os escritores, inclusive Batista Caetano, nem tem propriedade”. Há também catinga, com transpiração fétida, bodum dos negros, que Batista Caetano tira do tupi-guarani cati, bolor, contração de caquâ ting, crescido branco (bolor). O cardeal Saraiva registrou catinga (fedor) como vocábulo de Angola. Esclarece Macedo Soares: “Mas, o que se pode concluir é que, em Portugal, o sucedâneo de bodum era, como na colônia do Brasil, o tupi-guarani catinga, e que esta palavra passou, como tantas outras, para a África na boca dos negros repatriados. O certo é que ela não se acha em vocabulário africano, nem nas relações dos viajantes”.
2) Umbrosas. Cheias de sombra. Procede do latim umbra, sombra.
3) Não sofrem-se. Na época em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: não se sofrem.
4) Catingueiro. Veja observação de n° 1.
5) Rendeiro. Indivíduo que cobra rendas. Arrendatário.
6) Rola. No linguajar indígena nheengatu a rola tem o nome de juriti. Juruti ou juriti é o tupi yiruti e uruti. Alfredo da Mata disse da rola:”Bonita rola (Leoptoptila rufolixa rich. e Bern, ordem Columbidae), que não tem manchas metálicas nas asas, o que distingue a rola do juruti (Veja Nunes Pereira – Moron Gueta – um Decameron Indígena” – 641)
7) Fogo-apagou. O canto da rola parece dizer fogo-apagou, razão pela qual ela é conhecida por esta expressão.
8) Donzela. É o latim dominicella, diminutivo de dona (latim domina) e originalmente significou moça nobre. A palavra passou a denominar a mulher solteira, virgem.
9) Ma. Combinação dos pronomes átonos me e a, representativos de objetos indireto e direto, respectivamente.
10) Santo. Dia santo, santificado.
11) Dispo. Primeira pessoa do presente do indicativo do verbo despir, irregular.
12) Fato. Roupa. Morais tira a palavra do espanhol hato.
13) Que tanto custou-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diz: que tanto me escutou.
14) Gibão. Traje do vaqueiro, de couro curtido, de bode ou de vaqueta.
15) Cruz. Referência ao martírio de Cristo rumo ao monte Calvário.
16) Discip’los. Discípulos. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
17) Norte. Empregado no sentido de rumo, direção.
18) Que a mãe carinhosa ditou-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se dirá: que a mãe carinhosa me ditou.
19) Lareira. Laje do lar no qual se acende o fogo.
20) Mandamento primeiro. São dez os mandamentos da Lei de Deus. Eis o primeiro: “Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas”.
21) Não vá-se. No tempo em que José Coriolano escreveu não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se dirá: não se vá.
22) Choupanha. Casa rústica de madeira ou de palha.
23) Esp’rança. Esperança. Por necessidade de metrificação, o poeta suprimiu uma sílaba da palavra.
24) Brincos. Folguedos, brincadeiras.
25) Bênçãos. De modo geral, as camadas populares não dizem bênção, mas conservam a tônica latina benção (oxítona).
26) Cajus. Fruto do cajueiro. Tem o nome científico de anacardium occidentale. Fruta de que há duas partes alimentares: o pendúnculo carnoso e doce, que se come cru e de que se fazem doces, sorvetes, cajuadas, cajuína; e a amêndoa da castanha (sendo esta o verdadeiro fruto do cajueiro) e que depois de desembaraçada )ao fogo) do pericarpo algo oleoso e cáustico, usa-se à maneira de amêndoa da Europa, em doces e confeitos, e também sob a forma de farinha (veja A. J. de Sampaio – “A alimentação Sertaneja e do Interior da Amazônia” – 225) Muito popular a castanha assada. Para Romão da silva caju é nome indígena: (a) ca (chifre) ajú igual a ayú (o pomo amarelo). Cf. “Denominaçõesd Indígenas na Toponímia Carioca” – 83. Macedo Soares (Dicionário) entende que vem de caá, folha, planta, mais ju igual a jub, amarelo.
27) Guabiraba. Fruto da guabirabeira. Nascentes tira do tupi gwa’bi, comestível, e rab, relativo de ab, pelo, por alusão a ser tormentoso, razão pela qual se chama cabeluda.
28) Pitomba. Fruto da pitombeira.
29) Dendês. Fruto da palmácea africana e da espécie amazônica. Cultivada para a produção de óleo ou azeite de dendê. Nome africano de palmeira do Congo e da Guiné, introduzida no Brasil. Forma derivada, dendezeiro.
30) Cajás. Fruta muito apreciada para refrescos, sorvetes, cambicas. Vem do tupi cã igual a (a) cã. (osso, caroço) e já igual a yá (fruta) – a fruta de caroço, o fruto que é todo caroço.
31) Buriti. Nome científico: mauritia vinifera. Palmeira muito alta. Dá frutos comestíveis. “em tempo de calamidade – escreveu Almeida Pinto – o povo erra pela matas à procura destes frutos, para mitigar a fome; mas o uso cotidiano e prolongado deles determina um amarelidão na cútis”. Macedo Soares acrescenta:”O tronco fornece por incisão excelente suco vinhoso; as folhas têm variadas aplicações; op caule fornece madeira de construção: faz lembra a tamareira dos desertos da África Central”. Palavra indígena: imbiriti – de i (água) mais mbiriti, que emite, que bota, que escorre. Na Amazônia se diz miriti. Dos cocos do buriti se prepara vinho e a famosa buritizada (doce de polpa do fruto). O óleo é alimentar.
32) Mangaba. Fruto delicado. Estomacal. Dele se faz doce. O leite é aconselhado contra a tuberculose pulmonar. Do tupi-guarani mangab, fruto que fornece borracha. De fato, o leito coagulado fornece borracha de superior qualidade (Veja – Macedo Soares – Dicionário).
33) Umbu. Também imbu, forma preferível, talvez do tupi ia-imbu, fruto que dá água. Comestível. Da polpa do fruto bem maduro se prepara a imbuzada, com leite e açúcar. Também se faz o doce de imbu. Os tubérculos do imbuzeiro são comestíveis e deles, segundo Gilberto Freyre, se prepara cocada de batata de imbu.
34) Pequis. Josué de Castro dá o pequi como fruto indígena (“Geografia da Fome” – 211). Este fruto isento de casca é cozido com água e sal e comido puro ou com farinha d’água. Também se come cru, ou cozido com feijão, ou arroz. Escreve-se ainda piqui, mas pequi é melhor. Muito usado o óleo de pequi, obtido da polpa do fruto e da semente.
35) Juçara. Romão da Silva (op.cit.) oferece o seguinte como etimologia: - ju igual yu (espinho; fragoso; pungente) çara (ser, o que é) – ju igual a yu (espinho, espinhento) içara igual a yçara (cerca, esteio, tapume) – a cerca ou tapume de espinho; o esteio fragoso ou espinhento. E acrescenta: “Diz-se no comum do espinho utilizado pelos índios à guisa de agulha”. E adiante: “Jiçara e iuçara (q.v) designa uma casta de palmeira (Euterpe edulis), a que chamam também açaí; a fruta dessa palmeira da qual se faz uma beberagem saborosa e muito apreciada no Norte do Brasil” (pág. 214). Para Macedo Soares, açaí provém de ia (fruta) e çai, que chora, bota água. Raimundo Morais disse do açaí, o mesmo que juçara: “Amassado, produz um vinho purpurino, aromático, que é tomado com açúcar e farinha d’água ou farinha de tapioca. Em Belém, capital paraense, as amassadeiras de açaí assinalam as respectivas quitandas com uma bandeirinha encarnada” (O meu dicionário das Cousas da Amazônia” – 66)
36) Bacuri. Fruto e semente comestíveis. De Raimundo Morais: “O fruto, amarelo, parece uma laranja grande. A polpa é branca, acidulada e doce. A compota é fina, delicada, incomparável. O sorvete – simplesmente delicioso. Dos frutos naturais da planície é o mais gostoso. Os filhos, como são chamados os gomos sem caroço do fruto, comidos crus, com farinha d’água torrada, constituem uma sobremesa excelente” (op. Cit – 72). Esses gomos sem caroço, pelo menos no Piauí, recebem o nome de língua.
37) Ubérrimo. Superlativo absoluto sintético de úbere (abundante).
38) Açude. Palavra de origem árabe.
39) Branquinhas. Peixinho de água doce.
40) Piaus. Peixe. Nome indígena: “pele manchada”.
41) Corvinas. Peixe saboroso. Deriva-se de corvo por causa da cor.
42) Mandis. Nome indígena: “pele manchada”.
43) Mandibés. Nome de peixe. Denominação indígena.
44) Maniva. Explicação de nascentes: “Planta da mandioca, também chamada maniveira. Caule da mandioca (Norte). (Do tupi mani’iwa, arvore de mani; Mani era o nome de uma jovem que morreu de amores e de cujo corpo, segundo uma lenda, brotou a raiz da planta)”.
45) Mungimos. Verbo mungir. Ordenhar.
46) Requeijão. Lacticínio, geralmente de fabricação caseira, feito de leite de vaca ou de cabra.
47) Coalhada. De coagulare, latim. Morais registra coagular, coalhar e qualhar. E acrecenta que a forma divergente coalhar melhor se escreve qualhar. Aurélio só registra coagular e coalhar. Em “Geografia da Fome”, Josué de Castro refere-se ao alimento: “E não é só com milho que se consome leite em abundância nop serttão do Nordeste, mas de muitas outras formas. Misturtando com café de manhãzinha, ou com a colhada fresca ou escorrida...” (pág. 204). Coalhada é o leite coagulado, geralmente de vaca. Coalhada, em tijelas de barro, nos sertões do Nordeste (A.J.Sampaio –“A alimentação Sertaneja e do interior da Amazônia” – 241). Anoto estas considerações de Martins de Aguiar: “É o mesmo caso de coalho, coalhar, coalhada, coalheira. De co-alhar passou a cu-a-lhar e, em fim, a cua-lhar (qualhar). Qualhar é clássico e está no sapiente Morais. É a única feição gráfica que deve tomar o verbo (e todos os cognatos), pelo menos no Brasil, onde só um tolíssimo pedante proferirá cu-alhar. Se em Portugal o fazem, nobreza e povo, é que influiu nos eruditos a lembrança do étimo latino, coagulare, e o vulgo se pôs docilmente a imitá-los”. (“Notas de Português de Felinto e Odorico” – 425)
48) Tigela. Origem latina. Vaso de louça ou de barro. Forma de xícara, sem asas.
49) Não quero-os. No tempo em que José Coriolano escreveu, não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: não os quero.
50) Mi. Forma arcaica do pronome mim. No latim, mihi. A nasal m de mihi nasalou a vogal i, de que resultou mi, mim. As nasais possuem a tendência de nasalização das vogais com que estão em contato. No português arcaico já aparece mim.
51) Queixadas. Porco bravio. Espécie de porco-do-mato. Substantivo feminino.
52) Veado. Do latim venato, animal de caça.
53) Tatus. De ta (pelo, confundindo com ca), casca, escama, e tu que pode ser tou igual a toó abs. de oó, encorpado, denso. Há duas espécies de tatu: a tatu-peba (de peb, chato) e o tatu-bola.
54) Cutias. Animal roedor. Romão da Silva tira cutia de a-cu-ti ou a-gu-ti, o indivíduo que come com as patas dianteiras, feito gente.
55) Donosas. Feminino de donoso, elegante, gracioso, belo.
56) Toucada. Emprego em sentido figurado, orlado, encimado.
57) Coma. Folhagem das árvores, copa.
58) Rojão. Câmara Cascudo acentua que conheceu a forma velha de rojão, aí por 1910: era pequeno trecho musical, tocado a viola ou rabeca (por ambas também), antes do verso cantado pelo cantador.como na cantoria do desafio não havia acompanhamento musical, os trechos eram executados antes do verso e depois, para o descanso do primeiro cantador e pausa para o adversário prepara a resposta. Depois de 1918 – continua ele – rojão tem nova significação, valendo duração, medida, forma, estilo da cantoria, sua extensão e modelo (veja – dicionário de Folclore Brasileiro).
59) Tangeres. Substantivo masculino plural desusado. Significa tocatas, soadas, ou sonatas de instrumentos músicos. No caso, emprego figurado. Na pronuncia o ge é aberto.
60) Que importa-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: que me importa.
61) Sazão. Estação do ano. Figuradamente, tempo apropriado à colheita de frutas.
62) Favos. É o depósito de mel das abelhas.
63) Nambus. Ave. Tem os pés e bicos vermelhos e por canto um assobio longo e estridente. Também aparecem inamu, inhambu, enambu, nhambu. Etimologia proposta por Rodolfo Gareia; y demonstrativo (igual a o que, aquele que), am, em (pé) e bur (emergia): o que emerge em pé, a prumo; ou de y – am (a que se levanta, mais ba, estrondado); ou de y – nhumbú (o que corre surdindo, ou emergindo, ou que levanta o vôo rumorejando).
64) Codornizes. Plural de codorniz. Origem latina. O mesmo que codorna, ave campestre, caça muito procurada.
65) Carão. Ave.
66) Coplas. Estrofe de certo número de versos que faz parte de uma canção ou cançoneta.
67) Bastas. Feminino de basto, espesso, denso, abundante.
68) Londres. Capital do Reino Unido (United Kingdon of Great Britain and Northern Ireland). Constituído de Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do norte. A chamada Grã Bretanha, a maior ilha da Europa, é constituída da Inglaterra, Gales e Escócia. O Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do norte, na área metropolitana, tem uns dez milhões de habitantes.

A Virgem do Crateús

Oh! não!... pincel, não pode o mais sublime
Pintar o brilho teu!
A poesia te cante; ela se exprime
Co’a linguagem do céu.
(D. Antônia Gertudres Purich – Portuguesa)

Há na minha província uma ribeira,
Um sertão, onde eu vi a vez primeira
Sorrir-me da existência a doce luz:
Tem o nome da tribo (1)que o habitava,
Quando ao rude tapuia (2) entregue estava,
Esse nome, sabei-o, - “Crateús.” (3)

Não tem matas sombrias, espaçosas,
Não tem serras soberbas, grandiosas,
Que apontem gigantescas para o céu:
Tem somente campinas decoradas
De campestres ervinhas perfumadas,
Que estendem sobre o chão seu verde véu.

Tem várzeas vicejantes, salpicadas,
De um sem número de flores nacaradas,
E brancas como a rosa e o jasmim;
E d’outras mui gentis, cheirosas flores,
Tão belas no matiz, nas várias cores,
Esmaltando o tapete de capim.

Pois foi nessa ribeira, em que a verdura
Parece uma alongada cobertura,
Tecida pela mão do próprio Deus,
Onde também gozou a luz primeira,
Aquela que é rainha da ribeira
Na formosura d’anjo e dotes seus.

Pintá-la... tentativa sem proveito!
Só a mente a concebe, só o peito,
E os olhos, que deslumbram o seu fulgor!
Palavras... essas não, que a não descrevem,
Que lhes faltam perfumes; não se atrevem
Nem sequer a esboçar-lhe a tez., a cor!
Quem pudera pintar-lhe os fios (4) louros?
Os meigos, vivos olhos - dois tesouros,
Que pudera-os (5) pintar? – Certo, ninguém!
Azula-se debalde o firmamento,
Debalde o graminoso pavimento
Verdeja sobre a terra - aqui – além! –

Mas, tentemos, talvez...; busquemos cores:
Que modelos gentis, encantadores
Nos of’recem (6) o céu, a terra, o mar;
Há’í cores por certo primorosas;
Mas não são como as cores graciosas
Dos olhos que eu procuro, em vão pintar!

Eles têm um volver tão deleitoso!
Uma luz que a luzir infiltra um gozo,
Que as fibras vão queimar no coração!
Que abrasa sem matar, que dá mais vida,
Parece uma centelha despedida
Lá do céu... mas não sei se será, não!...

Sua boca de rosa, seu sorriso
Entreaberto – parece um paraíso!
Seus dentes, nem o gelo (7) é branco assim!
Se ela dá-me (8) uma fala modulada
Pelas falas dos anjos – afinada, -
Se ela ri-se (9) donosa para mim...

Ai! que eu homem não fico! – mudo e frio,
Me converte em estátua o calefrio (10)
Que nos gélidos membros me coou!
Empanam-se-me os olhos, enlanguescem
E das faces as cores desfalecem
Como o lírio pendido que murchou!

Que belas são as cores da alvorada!
A aurora tem a face tão rosada!
É meiga em seu sorrir – é meiga, sim!
Tem flores, tem perfumes – é tão bela!
Mas não tem o que tem no riso dela
Quando ri-se, (11) donosa para mim!

Mulher ela não é: silfo (12) ligeiro,
Percorrendo, talvez, o mundo inteiro,
Anda ao peito a acordar novo sentir!...
É, talvez, uma idéia sedutora...
É, talvez, um sorriso da SENHORA, (13)
Que pairou sobre a terra a refulgir!

Quem me dera gozar um só instante –
Agora – aquele olhar tão cintilante,
Que só têm as estrelas lá no céu!
Quem me dera! Tão longe!... o que faz ela?
Dorme? Sonha? – Talvez! Nem eu, donzela,
Poder do sonho teu rasgar o véu!...

Infeliz que sou eu! Nunca julguei-o, – (14)
Este inferno, em que ardo, em que me ateio!
Mas de que me queixar? – quem m’o forjou?
Ajuntei em montões os combustíveis,
Acendi, aticei-os! E, insofríveis,
Ardo neles! Meu Deus! Que infeliz sou!

Insofríveis! Oh! não: por ti querida,
Eu dera de bom grado a própria vida;
Qu’importa?... A dura ausência terá fim.
Serei, serei um dia venturoso,
O futuro me acena dadidoso;
Que bens que ele entesoura para mim!

Oh! e quanto eu te adoro, ó minha imagem!
Gemerei; mas não temas vassalagem,
De meu peito pra outra: oh! isto não.
Sou firme como a rocha combatida,
Donde a vaga recua espavorida,
Como a fé que desprende a contrição.

Linda virgem, feitiço (15) de minh’alma,
Nem sabes quanto sofro! Em doce calma
Tu, porém, bebe o ar desse sertão!
Linda virgem, meu anjo, meu tormento,
Sobe às asas sutis do veloz vento
Vem dar-me um lenitivo ao coração.

Não é moça, meu Deus! – é uma idéia
Angélica, querida, que volteia
Em torno à mente minha: mulher não!
É talvez, um sorriso da SENHORA,
Transformado em imagem sedutora
Que pede neste mundo adoração.

Comentários
1) Tribo. Referência aos Crateús, índios que habitaram a região do hoje município de Crateús, Ceará. No tempo em que o poeta escreveu, Crateús pertencia ao Piauí – com o nome de dois municípios – Independência e Príncipe Imperial. O Piauí trocou os dois pelo de Amarração, hoje Luís Correia, porto marítimo. O Ceará fundiu os municípios de Independência e Príncipe Imperial num só, com o nome de Crateús. Odilon Nunes, mais de uma vez, no 1º Volume de “Pesquisas para a História do Piauí”, faz referência aos índios Crateús. Eis um passo: “Em 1703, os Anapurus pedem aldeamento, mas um pouco mais tarde estão a perturbar a tranqüilidade dos colonos, e assim também os Crateús que levam o desassossego ao Ceará e Piauí e contra os quais toma o Governador de Pernambuco medidas repressivas”. (pág. 109).
2) Tapuia. Índios bárbaros. Tapuias habitavam o norte, e tinham muitas tribos com várias denominações.
3) Crateús. Veja nota 1.
4) Fios. Empregado como cabelos.
5) Quem pudera-os pintar. Na época em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: quem os pudera pintar ou quem pudera pintá-los.
6) Of’recem. O poeta suprimiu a vogal e para diminuir uma sílaba (necessidade de metrificação).
7) Gelo. Empregado no lugar de neve.
8) Se ela dá-me. Na época em que o poeta escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: se ela me dá.
9) Se ela ri-se. Veja nota 8.
10) Calefrio. Também calafrio. Formas variantes.
11) Quando ri-se. Veja nota 8.
12) Silfo. “Ser macho sobrenatural, que, segundo crenças celtas e germânicas, ocupava no mundo invisível posto intermediário entre gnomo e a fada”. (Nascentes).
13) Senhora. Nossa Senhora.
14) Nunca julguei-o. Veja nota 8
15) Feitiço. Para uns provém de feito mais sufixo iço, nome dado ao ídolo feito pelo próprio adorador. Para outros promana do latim facticiu, com evolução fonética normal. Empregado como encantamento, encanto.

Careço de Teu Amor

Eu careço (1) de ti, ó minha amada,
Como da rotação carece a terra,
Como d’alma carece o corpo imbele, (2)
Como o mundo de tudo quanto encerra.

Eu careço da luz desses teus olhos,
Como as plantas da luz do sol carecem,
E da gota d’orvalho a flor no prado,
E da mansão celeste os que falecem.

Eu careço do teu riso fagueiro,
Como o crepusc’lo (3)do fulgir d’aurora,
Como carece o arrebol do ocaso,
E a terna virgem do chorar que chora.

Eu careço do teu falar tão meigo,
Como dos bosques das brisas sussurrantes,
Como os regatos do arenoso leito,
Por onde se deslizam murmurantes.

Sim, do teu hálito, careço, ó bela,
Como o vivente do ar que se respira,
Como os astros do céu, onde fulguram,
Como a rosa do aroma que transpira.

Do teu amor careço, ó minha amada,
Como das ondas da praia em que se quebram,
Como as aves do canto mavioso
Com que tão docemente se requebram.

Do teu amor careço, ó minha amada,
Como o nauta carece da bonança,
Como um peito que geme consternado
Carece de seus males a mudança.

Tu és o meu santelmo, (4) a minha vida,
Sem ti o q’eu seria? um desgraçado,
Folha seca do ramo desprendida,
Um fantasma na vida já penado.

Ou se não fora muito: apenas sombra,
De um ente que amou tanto, e, malfadado,
Vive dores curtindo e acerbas penas,
Os dias consumindo desgraçado.

Eu te amo, como se ama a meiga aurora,
A noite de luar, a flor do prado,
Os favônios (5) brincões, e as harmonias
Dos cantores gentis do bosque ondado.

Qual alma e carinhosa mãe solicita
O filhinho que aperta sobre o peito,
Assim eu te consagro amor tão íntimo
Que não posso dizer-t’o (6) com efeito!

Sim, Maria, meu anjo, quanto te amo
Eu não posso dizer-t’o! Como ousara
Sem palavras que exprimam quanto sinto!
Como eu te amo, ninguém talvez amara!

Tu és o meu santelmo, a minha vida,
Sem ti o q’eu seria? – um desgraçado,
Folha seca do ramo desprendida,
Um fantasma na vida já penado!

Comentários
1) Eu careço. Rigorosamente o verbo carecer significa não ter: ele carece de razão, isto é, não tem razão. Aparece também em grandes escritores como necessitar, da forma em que empregou o poeta.
2) Imbele. Fraco, sem forças.
3) Crepusc’lo. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. Crepúsculo.
4) Santelmo. Chama azulada que, principalmente, em ocasiões de tempestade, aparece nos mastros dos navios, por efeito da eletricidade (Aurélio).
5) Favônios. Vento fagueiro, suave.
6) Dizer-to. To aqui é combinação do pronome átono te com o demonstrativo o: dizer-te isto.

Voto de Gratidão

(À filantropia do ilustre cidadão inglês o Sr. George Patchett, tão bem prodigalizada na calamitosa quadra epidêmica em que nos achamos.)

“Semper bonus, nomenque tuum, laudesque manebunt.”
(Virgílio)

Poeta, não me curvo ante os altares
Da lisonja que sempre detestei;
Nunca da lira fiz subir aos ares
Vendidos cantos, - nunca os modulei.
Só presto culto à cândida amizade,
À virtude, ao herói só prestarei;
Só me curvo ante o altar da Divindade;
No pó da infâmia nunca rojarei.

Estro de minha pátria, santo enleio,
Que meu peito dilata, ó gratidão!
Derrama nestes metros (1) que encadeio
Tua doce e suave inspiração.
Que eu diga em poucos versos as virtudes
Daquele piedoso coração,
Onde não cabem preconceitos rudes,
E só ferve o ardor da compaixão.

Filho querido de Albion, (2) teu nome
Entre nós assumiu alto renome,
Co’o o heróico Pernambuco há de morrer;
Mas, enquanto o pendão de sua glória
Tremular nos anais de nossa história,
Teu nome abençoado há de viver.

A sorte, que te olhou tão davidosa,
Não a vês a sorrir-te mais donosa,
Mostrando-te um porvir de tanta luz?
É o fogo celeste que fulgura!...
Que espera decorar-te a fronte pura
Do lume etéreo, que no céu transluz!

Filha de Deus, excelsa caridade!
Com teus louros de tanta piedade
Engrinaldaste a fronte do bretão: (3)
São louros eternais, que não fenecem.
Imarcescíveis – nunca se esvaecem,
Perfumados do orvalho de Sião. (4)

Este povo tão nobre e hospitaleiro,
Que, sempre denodado, do estrangeiro
Soube o jugo tirano sacudir,
Não se humilha à mentida potestade,
Mas aos feitos da santa caridade
Profunda gratidão sabe nutrir.

Sabe! Terra de bravos, belicosa,
Nos triunfos, doutrora, tão famosa,
Quando em prol de seus foros batalhou,
Repeliu sempre o ousado aventureiro;
Mas hoje ao heroísmo do estrangeiro
Tributa as homenagens que ganhou!

Feliz do povo quando na batalha
Expõe o peito impávido à metralha
Ensurdecido aos ecos do canhão,
Por libertar a pátria escravizada;
E depois – beija a mão abençoada
Do estranho que leniu sua aflição.

Pátria de Newton, 5 Inglaterra, exulta
Aos sons da lira brasileira – inculta!
Novo lustre realça os brilhos teus.
Nas artes, no comércio poderosa,
Nova c’roa (6) te cinge luminosa,
Mais grata aos homens e mais grata a Deus.

Quantas dores, bretão, não tens poupado
À terna filha, ao filho desvelado,
À mãe solícita, ao afanado pai?
Quantas dores, bretão, tens removido
Do par ditoso que somente unido
Ditosa a vida no correr lhe vai!

Homem sublime! Herói – que herói se chama
Aquele que se aquece à pia (7) chama
Da caridade – aceita o voto meu
De eterna gratidão, - filho somente
De um peito brasileiro incandescente
À nobre ação que te franqueia o céu.

Filho querido de Albion, teu nome
Entre nós assumiu alto renome,
Co’o o heróico Pernambuco há de morrer;
Mas, enquanto o perdão de sua glória
Tremular nos anais de nossa história,
Teu nome abençoado há de viver.

Recife (pelo cólera), 22 de março de 1856

Comentários
1) Metros. O mesmo que versos.
2) Álbiom. Antigo nome da Inglaterra. Pronuncia-se Ólbion. Ainda hoje por Álbion se designa literalmente a Inglaterra. Em inglês a palavra não toma acento gráfico. Pode em português escrever-se Albião.
3) Bretão. Da Bretanha. O mesmo que inglês.
4) Sião. Em hebraico Zion, Tsion. Nome de uma das colinas de Jerusalém. Nome que também poeticamente se aplicou a toda a cidade de Jerusalém. Tornou-se o símbolo da esperança da volta do povo judeu para a Palestina. Sião tem sido motivo poético desde o rei-poeta Davi e outros autores dos salmos bíblicos, até Dante e Camões.
5) Newton (Isaac). Físico e matemático inglês (1642 – 1727). Descobridor da gravitação e da teoria das cores. Obra principal: “Philosophiae naturalis principia mathematica” (Princípios matemáticos da filosofia natural), em que a formulação definitiva da mecânica de Galileu e abriu caminho para as descobertas do setor da mecânica celeste e continuou incontestada até a formulação da teoria da relatividade. Estabeleceu os fundamentos do cálculo infinitesimal.
6) C’roa. Coroa. Suprimida uma sílaba por necessidade de metrificação.
7) Pia. Piedosa.
Observação: No final da poesia, José Coriolano escreveu: pelo cólera. Segue-se o estudo.
CÓLERA-MORBUS. Ou cólera-morbo, ou simplesmente cólera. Assim descreve Drigalski a respeito deste mal. “Tão rica em maravilhas mas tão fértil em calamidades, tão freqüentemente maltratada pela natureza como pelos conquistadores é a Índia, que foi em todos os tempos e que é ainda a sede de um outro mal terrível. Na planície compreendida entre o delta do Ganges, o Hongli, o Bramaputra e os contrafortes do Himalaia uma epidemia violenta irrompe freqüentemente. No mais quente verão – na estação fria isto se produz mais raramente – acontece sempre que um indígena, depois de ter consumido os belos frutos da região, bebido da água de uma lagoa sagrada ou de algum poço, seja presa de uma doença repentina. Todo o corpo parece esvaziar-se numa diarréia irrepreensível; apesar do calor, o doente não pode transpirar. Sofre uma sede insaciável, sua face torna-se toda parda, seu corpo se desseca, seus membros tornam-se arroxeados e frios. A voz fica tão fraca, que ele só pode falar com grandes esforços. Perde logo os sentidos”. Todos os continentes conheceram o terrível mal. Na América do Sul, só em 1869 foi extinto.
Cólera, como paixão, ira, frenesi é a palavra feminina. E quanto à doença, deve dizer-se o cólera ou a cólera? Referindo-se à doença, Aurélio dá cólera como substantivo feminino e masculino: a cólera, o cólera.
Eis anotação de Silveira Bueno: “ O substantivo cólera é feminino, mas no composto cólera-morbus vem predominando o gênero masculino de morbus. A maioria dos gramáticos insiste no gênero: a cólera-morbus. A maioria, porém, do povo teima em levar ao masculino: o cólera-morbus. Quem vencerá? O povo” (Questões de Português” – pág. 87).
Napoleão Mendes de Almeida sustenta que “o composto cólera-morbo é do gênero feminino”.
Por esta forma se manifesta Cândido de Figueiredo: “Ao ler diariamente os numerosos telegramas que nos anunciam os casos coléricos da Rússia, de Paria, e da Itália, sinto destes calafrios, que não exprimem terror, mas uma repugnância instintiva pelo nome que dão à epidemia: o cólera”. (“Lições da Língua Portuguesa” 2º vol – 1901 – Lisboa – pág. 300). E acrescenta: “A palavra cólera, de origem grega, é feminina em todos os dicionários do respectivo idioma; passou para o latim, e ali também conservou o gênero feminino; passou para o português e aqui foi sempre feminino na boca dos mestres da língua e nos dicionários de melhor nome”.
Julgo oportuno transcrever estas considerações de Vasco Botelho de Amaral (“Problemas da Linguagem e do Estilo” – 1948 – págs. 190 a 192): “Quem abrir um dicionário de grego, como o de Bailly, por exemplo, encontra lá o vocábulo khole, biles, fel, e, no sentido figurado, cólera, ira. Em kholera, feminino, já se lê o sentido especial da doença. O latim recebeu do grego a palavra e pode ver-se em Quicherat que o vocábulo cholera, também feminino, significa na língua latina a biles, ou a doença da cólera, ou o sentimento da ira.
Tanto nesses dicionários, grego de Bailly ou latino de Quicherat, como noutros, toda gente pode verificar que o vocábulo greco-latino referia muita vez o próprio vômito que caracteriza tão medonha doença.
Temos, pois, que a palavra cólera já no grego e no latim nomeava a doença física e a doença sentimental, com a biles como base das perturbações, e já nessas línguas era feminina.
Passemos agora a ver o que aconteceu em francês.
Consultando etimólogos franceses, como Dauzat, aprendemos que o latim cholera deu em francês choléra (como nome da doença caracterizada pelos vômitos, isto é, pelas perturbações biliosas) e colère, isto é, ira.
Colère é feminina em francês. Mas le choléra (o nome da doença) é masculino.
Ora, como em Portugal há muita gente que se limita a papaguear a França, o gênero masculino francês do nome da doença começou a aparecer em traduções portuguesas. Começou quando?
Quando – não se sabe. Mas eu direi: sempre que a doença flagela alguma região do globo, a língua francesa espalha a notícia e os tradutores portugueses espalham a asneira de cólera no masculino.
Ora, não está certo que os nossos diários e, em reflexo do noticiário das agências, também as emissoras, ora empreguem a palavra num gênero ora noutro. Uns chamam a essa horrível doença a cólera; outros o cólera.
De estranhar é que a nossa Imprensa e a nossa Rádio concedam à palavra dois gêneros.
Mas eu ainda me admiro mais de não haver censura para certas indisciplinas. A vítima é sempre a língua portuguesa; e o resultado, a desorientação do público.
Em Portugal e no Brasil foram vários os filósofos que se ocuparam do gênero da palavra cólera. Entre outros, defenderam a feminilidade de cólera os autores seguintes: Leite de Vasconcelos, Cândido de Figueiredo. Ribeiro de Vasconcelos, Gonçalves Viana.
Era de supor que, depois das advertências desses Mestres da língua, não mais tornasse a aparecer “o cólera” em letra de forma. Redondo engano. A palavra hoje continua a ser tratada como hermafrodita pelos tradutores e pelos redatores portugueses.
Não se julgue que tal gênero incorreto não aparece em obras de responsabilidade. O excelente Dicionário de Aulete e Valente apresenta cólera no masculino, o que é verdadeiramente lamentável.
Além da sobredita razão de o vocábulo ser em grego e em latim o mesmíssimo que traduz a doença e o sentimento, além dessa razão, há ainda a contribuir para o gênero feminino a terminação em a, peculiar de tal gênero, e o uso dos melhores autores portugueses.
Os mais competentes autores de obras de Medicina em Portugal e no Brasil adotaram sempre a cólera, e não o cólera, à francesa.
Artistas da pena sempre lhe deram esse gênero, como Alexandre Herculano, o qual em O Monge de Cister escreveu:
“Com rapidez da cólera ou da peste...” (IX, tomo I, 17ª edição).
Muitas vezes acrescenta-se à palavra cólera o vocábulo latino morbus, isto é, doença. Como é masculino, toma-se em francês o conjunto le cholère-morbus como masculino. Os tradutores portugueses imitam e dizem “o cólera-morbus”.
Ainda neste caso, devemos, porém, corrigir para o feminino, considerando morbus como um elemento justaposto de cólera, que é feminino.
No dicionário de Dificuldades indiquei aos estudiosos esta abonação de Garret, nas Obras Completas: “é a cólera-morbus”.
Em suma: o cólera, o cólera-morbus são erros. A cólera ou, então, a cólera-morbo – sempre feminino. Eis a correção indiscutível”.

A Donzela e a Sensitiva

A donzela é prazenteira,
Como a aurora quando raia;
Tão fulgente,
Tão nitente,
Como a luz que o sol espraia:
Ela é como a sensitiva, (1)
Que ao leve toque desmaia!

É tão meiga como o riso
Da criancinha inocente;
É mimosa,
Duvidosa
Qual luz d’aurora nascente:
Ela é como a sensitiva,
Que do toque se ressente,

A donzela tem caprichos,
Como as vagas caprichosas;
É qual bela
Meiga estrela
Sobre as águas marulhosas:
Ela é como a sensitiva,
Como as flores mais donosas.

Às vezes nas faces dela
Brilha a cor que tem a rosa,
Desbotada,
Desmaecida
Depois vê-se a cor mimosa.
Ela é como a sensitiva,
Que se ofende melindrosa.

Sim, às vezes a donzela
É como a cecém (2)cheirosa
Sempre amada,
Festejada;
Outras vezes melindrosa.
Assim como a sensitiva,
Como as vagas – caprichosa.

A donzela oculta espinhos
Como a rosa em defensiva;
Se embravece,
Mas murchece
Depois como a sensitiva!
Às vezes ela é tão branda!
Outras vezes tão altiva!!

Comentários
1) Sensitiva.Planta. Noutro local há comentário sobre sensitiva.
2) Cecém. O mesmo que açucena.

A Órfã de Amor
e
A Rosa Desfolhada


Oh! quanto minha sina se assemelha
À triste sina desta pobre flor!
Ambas sofremos o rigor da sorte,
Ambas somos, meu Deus, órfãs de amor!

O quente estio dissecou-lhe as pet’las, (1)
O vento desfolhou-a pelo chão,
Faltou-lhe o orvalho da manhã serena,
Como a mim o bater de um coração...

O céu foi meu rival! E o sol brilhante
Que nos dias felizes me raiou,
Também se converteu em sol nocivo,
Que a seiva desta vida ressecou.

Também as mansas auras que brincavam
Com meus soltos cabelos pelo ar,
Tornaram-se tufões ardentes, rijos,
E ousaram meus amores desfolhar!

Porém diz-me, flor, que te secaste
Ao sol estivo, (2) que te fez morrer,
Não há para o perfume e para a vida
Uma terra em que devem reviver?
Comentários
1) Pét’las. Pétalas. O autor suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
2) Estivo. De estio, de verão. Estival.

A Vítima do Poder

(Fato)

Um pão, Senhor, um pão vos eu suplico,
Oh, se não, desta vida alivia-me.
Mil inferno, não valem, não importam
Os tormentos cruéis que a alma me pugem!
Desde muito, Senhor, meus longos males
Hei servido comigo – a sós – em pranto;
Mas a fome voraz me abrasa toda,
E a vossos pés prostrada um pão esmolo!
Meu marido morreu, da sanha vítima
De tiranos mandões – assassinado!
Culpado nunca foi, - honesto e probo,
Tendo o voto prestado em prol da pátria,
Foi convicto (1) de crime! Oh tirania!
Meu filho, que a seu pai sobrevivera,
Que curava de mim pobre, abatida,
Foi gemer na chibata desvalido,
Deixando desolada a mãe viúva!
E que crime, Senhor, meu filho tinha?
Que vícios, que maldades no seu peito
Podiam asilar-se em tal idade?
Ah! seus crimes, seus vícios eram estes:
O ser filho de um pai honesto e probo,
O cuidar de uma mãe misera e velha,
Que o esposo dia e noite pranteava,
Único apoio de um irmãzinha, o único
Que bis restava, além do pai celeste.
Potentados da terra, homens sinistros,
Que a sede saciais no sangue nosso,
Essa sede cerval, (2) - temei perversos,
Temei de Deus a vingadora espada,
Que mil galopes fulmina aos infratores
Dos seus santos preceitos de igualdade.
Senhor, se acaso sois também tirano,
Se é férreo vosso peito, ímpio, sangrento,
Vossa esmola desprezo, e só desejo
Que esta vida fatal tirai-m’a presto. (3)
Meu Deus! meu deus! perdão! vede – eu deliro!
Entre as vascas cruentas d’agonia,
Meu esposo me fala, e o desgraçado,
O meu querido filho das entranhas
Eu – lá vejo gemer sob a chibata,
Curvado, envolto em sangue e sem alento.

*
* *


Assim delirava a triste,
Do tempo exposta ao rigor;
Oh! que peito humano houvera
Infenso à tamanha dor?

Envolto seu corpo em trapos,
Como seu rosto em palor,
Rojava no chão a triste
Agonizante – em furor!

Depois soltou um gemido,
Tremeu e quêda (4)ficou:
Toquei-a! que horror! – gelada!
A desgraçada expirou!

Oh! quantos assim se acabam,
Como essa pobre acabou!
Seu filho sob a chibata
Quem sabe? – talvez findou.

E a orfanzinha, coitada!...
Que será dela também!
Oh! quanto a pobre criança
Na vida sofrido tem!

Não é sonho isto que ledes,
Nem poética ficção,
Pois eu vi convulsa a pobre,
Vi-a estendida no chão.

Depois toquei o seu corpo!
Coitada! Não tinha ação,
Da terra havia voado
Para a celeste mansão.

Comentários
1) Convicto. Qualificativo do réu cujo crime ficou provado.
2) Cerval. Relativo ao cervo.
3) Tirai-ma presto. O ma corresponde à combinação dos pronomes me e a: tirai a vida (ela: a) a mim (me). Presto: com presteza.
4) Queda. Feminino do adjetivo quedo (quê). Que não se move. Calmo. Sossegado.

Nos Anos de Maria

(em 21 de dezembro de 1856)

Já um sol Deus tinha feito
Quis Deus fazer outro sol
Com crepusc’lo (1)mais fagueiro
Com mais fagueiro arrebol.

Já uma aurora existia
Ornada d’oiro e rubim (2)
Porém Deus fez outra aurora
Mais formosa para mim.

Já nos céus milhões de estrelas
Cintilavam a fulgir;
Porém Deus fez outra estrela
Que tem mais doce luzir.

Já uma luz espargia
Sua luz d’almo (3) fulgor;
Porém Deus fez outra lua
Mais bela por seu langor.

Já mil flores recendiam,
O cravo, a rosa, o jasmim;
Porém Deus das flores todas
Criou outra flor pra mim.

E o sol novo, e a nova aurora,
E a nova estrela a luzir,
E a nova flor, que eu adoro,
E a nova lua a fulgir.

És tu, Maria formosa,
Mulher fagueira e gentil,
Que os mesmos astros supera
Que giram no céu d’anil.

E o sol dos amores
De meigos fulgores
Sepulta os ardores
No mar ou lá não?
Num bar bem estreito:
Sepulta-os de feito
No mar de meu peito
No meu coração.

E a aurora nitente,
Fagueira, ridente,
Com manto rubente
De roxo clarão,
Me cura as feridas
Na ausência sofridas,
No pranto embebidas
Do meu coração.

E a estrela donosa
Fadada, formosa,
Querida, mimosa,
De meigo clarão,
Também no meu peito
No mar bem estreito
Tremula de feito,
No meu coração.

E a lua saudosa,
Gentil, langorosa,
De luz duvidosa,
De frouxo clarão,
No mar bem estreito
Também de meu peito
Reflete de feito
No meu coração.

E a flor engraçada,
A flor perfumada,
De todos amada
No pátrio sertão,
Exalam odores,
Mimosos favores,
Por ser os amores
De meu coração.

O sol vem lá do oriente,
Sepultar-se no ocidente
Tingindo de fogo o mar,
Dando á borboleta amores
Nos refletidos fulgores,
No refletido brilhar.

Outra vez nasce brilhante
Outra vez morre inflamante,
Tingindo de purp’ra (4) o céu;
Às trevas sucede o dia,
Ao dia a noite sombria
Coberta de escuro véu.

E sempre o sol é fulgente
Quando vem lá do oriente
No occíduo (5) mar se ocultar,
Durante o curso aclarando
Montes, prados, e lançando
Sobre tudo o seu brilhar.

Porém este sol descrito
Mesmo belo está proscrito
D’outro sol pelo fulgor;
D’outro sol que dentro d’alma
Derrama cousa que acalma
Gemidos de um trovador.

É um sol que é um céu formando
Nele vê-se cintilando
Mil planetas, é a flor
Mais galante e meiga e pura,
Tem a celeste figura
Dos anjinhos do Senhor.

Este sol mais refulgente,
Que eu adoro ardentemente,
Este sol do meu amor,
Hoje viu a luz primeira,
Luz vital, grata, fagueira,
Luz de meigo resplendor.


Comentários
1) Crepúsc’lo. O poeta suprimiu uma sílaba por exigência de metrificação.
2) Rubim. Há comentário noutra parte do livro.
3) Almo. Noutro local há comentário sobre esta palavra.
4) Púrp’ra. Púrpura. Veja nota 1.
5) Occíduo. O mesmo que ocidental.

Sabes Amar?

Talvez amar não saibas! Não, não sabes,
Se vives satisfeito, se ela o vive;
Se, quando te sorri, teu peito folga;
Se uma palavra terna que te envia,
Te arrebata ao pináculo da glória,
E faz-te ouvir o sussurrar das brisas,
E o murmúrio da fonte que serpeia,
E o canto ingênuo das sonoras aves,
E a deliciosa música dos anjos:
Se assim é teu amor, amar não sabes!

Mas, se teu peito torturado geme,
Quando o sorriso nos seus lábios pousa,
Se tua alma se alegra a sós contigo,
Quando os seus olhos umedece o pranto;
Se, a meiga voz te cala n’alma
Seus ternos, suavíssimos acentos,
Descrer do que ela diz, do que ela jura,
E logo te arrependes e te humilhas,
E incrédulo, depois, o amor praguejas:
Se assim é o teu amor – amar tu sabes.

Mais de uma vez em minha triste vida
Amor tenho ensaiado... hoje em meu peito
À virgem do sertão derramo olores.
Porém ela sorri, quando em me rio,
É ditosa, é feliz, se eu sou ditoso.
No passado houve alguém que escarnecia
Do meu pranto e sofrer, mas que chorava,
Se nos meus olhos, se nas minhas frases
Descobria sinais de aprazimento: (1)
Essa... amava-me, sim, mas era um monstro!

Amor não gera em mim delícias brandas
Nem razoável acho-o em seus efeitos:
Faz-me o peito ferver em duras fráguas,
E faz-me apetecer martírios dela!
Sim, vê-la sempre rindo, encantadora,
Botão que desabrocha ao romper d’alva,
A falar-me de amor como os eflúvios
Da noite que branqueja em noite estiva,
Oh! fora para mim tormento e morte!
Não quero o seu amor assim, - não quero.

Vê-me o rosto a esp’rança (2) fulgorosa?
Vê-me nos lábios o sorrir dos crentes?
Vê-me nos olhos a paixão que brilha?
Pois mostre-me no rosto o desalento,
Mostre-me os lábios trêmulos sem vida,
Mostre-me os olhos lânguidos de pena.
Mas, se comigo sente as dores minhas,
Eu vejo nela a serpe (3) que se finge;
Se ao ver-me alegre, prazenteira folga,
Eu julgo seu prazer filho do engano!

Amar é mui difícil, pois só ama
Quem sente amor contrário como eu sinto.

Comentários
1) Aprazimento. Prazer. Contentamento.
2) Esp’rança. Esperança. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.
3) Serpe. O mesmo que serpente.


Êxtase

Minh’alma, às vezes, de visões bem cheia
Deixando a terra se remonta aos céus!
Presa nas asas de eternal idéia,
Descansa à sombra do espaldar de Deus!
Momento doce que embriaga a mente
Em doce arroubo que lhe faz sentir!
Batendo as asas para o Céu ridente,
Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

Quanto é sublime do Supremo (1)a obra
Que misteriosa se revela além!
Segredo! – aos juizes do Senhor se dobra
Tudo! – quem pode-os (2) penetrar? Ninguém!
Somente o bardo nas canções singelas
Do Eterno (3) o templo poderá abrir!
Bate, minh’alma, tuas asas belas,
Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

Deixa as terrenas ilusões do mundo,
Sobe, minh’alma, canta Hosana a Deus,
Beija-lhe o sólio (4) com prazer profundo,
Em coro – unidas com os anjinhos seus.
Olvida as pompas que no mundo passam
Qual da loureira (5) o desleal sorrir;
Esquece enganos, que o porvir te embaçam:
Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

E quando houveres em prazer banhado
Teus seios – fartos – dos perfumes lá,
Volta, minh’alma, do meu corpo ao lado
Saudosa pousa, suspirando cá.
Espera a hora do tremendo juízo, (6)
Que há de no campo Josafá (7) surgir:
E então que glória – dir-te-ei num riso:
Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

Comentários
1) Supremo. Deus.
2) Quem pode-os. Na tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: quem os pode.
3) Eterno. Deus.
4) Sólio. O mesmo que trono.
5) Loureira. Loureira emprega-se como mulher de vida desregrada, também como mulher provocante e sedutora.
6) Juízo. Referência ao juízo final, julgamento que Deus fará de todos os homens, no fim do mundo: “Serão todas as gentes congregadas em torno de Jesus Cristo, que separará uns dos outros como o pastor separa os cabritos das ovelhas, e assim porá as ovelhas à direita, e os cabritos (os pecadores) à esquerda”. (Padre J. Lourenço – Dicionário da Doutrina Católica”. 133).
7) Josafá. Parece que o poeta não se refere ao célebre rei Josafá, de Judá. A referência parece feita ao vale de Josafá, identificado com o vale de Cedron, onde os católicos romanos e os maometanos dizem ser o lugar do juízo final. Simples conjetura.


Os Dez Mandamentos



Eu te amo, ó bela! em ti, por ti, me inflamo...
Meu peito já não sente um outro efeito
Que não do teu amor! Se durmo e chamo...
O lábio pronuncia
Teu nome que radia
N’est’alma, meu amor



Não juro à outra... não: oh! eu perjuro!...
Eu? – nunca! Antes morrer numa espelunca (1)
Como o tigre acoimado, fero (2) e duro.
Jurar à outra bela,
Trair-te, a ti, (3) por ela?...
Isso não, meu amor!



Desejas? queres?... Bem! Pra que tu vejas
Que eu quero obedecer a quem venero,
Viverei encerrado, se o almejas
Nos domingos e dias
De festas, d’alegrias,
Viverei, meu amor!



Respeito aos caros pais. Negar-te o preito
Que pede a amada e o amador concede
Para os obedecer? (4) – não quer meu peito.
Tudo farei, mas nisso,
Não, não, doce feitiço, (5)
Isso não, meu amor!



A vida que ao mortal é tão querida
Tira-la eu? Não: que horror que isto me cala!
Mas em tua defesa – eu homicida (6)
Serei, eu assassino,
Tigre, monstro ferino,
Mas por ti, meu amor!



Quem visse teus encantos, quem sentisse
O doce mimo que te envolve, e fosse
Capaz de te ofender, e não nutrisse
Um coração de fera,
De tigre ou de pantera, (7)
Isso não, meu amor!



Poeta, esse não furta: qual atleta,
Desejo tem de herói: porém um beijo
Eu morro para furtar-t’o: assim a meta
Do heroísmo tocara;
Somente assim furtara,
Só assim, meu amor!



E falso testemunho, em cujo encalço
Descrido, eu apanhado, eu desmentido,
Não, nunca levantei! Porém refalso (9)
Um fato, uma verdade
Por um f’licidade (10)
Gozar-te, meu amor!



Comigo, tu, querida! Oh! eu contigo,
Logrando o mago (11) céu, que ando sonhando
No grêmio do consórcio, sacro abrigo
Das pudibundas (12) almas,
Sonhar lascivas palmas...
Isso não, meu amor!

10º

Cobiça de que é d’outrem, que enfeitiça
Um peito pouco nobre, à inveja afeito,
Em mim seu torpe facho não atiça.
Porém cobiço, bela,
Os mimos que revela
Teu coração de amor

Os dez (13) se encerram em dous.

Eu amo a Deus (14) e a ti me inflamo...
A Ele por ser Deus, tu, porque d’Elle
És o mais precioso e gentil ramo.
Depois da Divindade,
A ti, minha beldade,
A ti o meu amor.

Comentários
Observação: são dez os mandamentos da Lei de Deus: 1) adorar a Deus e amá-lo sobre todas as cousas; 2)não invocar o santo nome de Deus em vão; 3) santificar os domingos e festas de guarda; 4)honrar pai e mãe; 5) não matar; 6) gastar castidade nas palavras e nas obras; 7) não furtar; 8)não levantar falsos testemunhos; 9) guardar castidade nos pensamentos e nos desejos; 10) não cobiçar as cousas alheias.
1) Espelunca. Lugar imundo. Origem grega, pelo latim.
2) Fero. Noutro local há observação sobre fero.
3) Trair-te, a ti – Caso de pleonasmo. Na frase há dois objetos: te e a ti.
4) Para os obedecer. Embora antigamente se usasse o verbo obedecer com objeto direto (os), hoje se fixou o objeto indireto (lhes), como no caso.
5) Feitiço. Noutro local há observação sobre feitiço.
6) Homicida. Em homicida há a raiz latina de homine (homem), seguida da vogal de ligação dos elementos latinos, que é i, finalmente cida, derivado da raiz do verbo latino caedo, caedis, caedere, cecidi, caesum, com a significação de ferir, matar. Deveria ser hominicida, mas suprimiu-se uma das duas sílabas próximas nasais, fato a que se dá o nome da haplologia (simplificação). Noutro local, veja o que escrevi a respeito de bondadoso.
7) Pantera. Animal carnívoro muito violento.
8) Descrido. Particípio de descrer.
9) Refalso. O poeta empregou o verbo refalsar, que os dicionários não agasalham, sim o verbo refalsear, enganar, atraiçoar.
10) F’licidade. Felicidade. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.
11) Mago. Emprego no sentido de delioso, encantador.
12) Pudibundas. Que tem muito pudor.
13) Os dez. referência aos mandamentos, antes citados.
14) Amo a deus. Caso de objeto direto com preposição. Assim pode aparecer o objeto direto quando representado por nome próprio, e noutros casos.


A Virgem e a Roseira

Linda virgem pensativa
Vagava só num jardim,
Seu rosto estava tristonho
Amor a tornara assim.

Seus olhos não tinham vida,
Nem suas faces rubor,
Que uma rival despiedada (1)
Lhe roubara o seu amor.

Viu numa bela roseira
Um semi-aberto (2) botão,
Querendo a virgem colhê-lo,
Estendeu-lhe a nívea mão.

Diz-lhe a roseira; “Donzela,
Acaso algum mal te fiz?”
A mão recolhendo a virgem:
- Não roseira, assim lhe diz.

- Não supus que mal fazia
- Em tirar-te este botão;
- Pra suprir a falta deste,
- Outros muitos brotarão.

Tornou-lhe a verde roseira:
“Tu virgem, não pensas bem!
Se um amante te hão roubado,
Procura, pois, outro bem.

Mas, se àquele só votavas
Tua extremosa paixão,
Eu dentre todos prefiro
Também só este botão.”

Linda virgem pensativa,
Que vagava num jardim,
Voltou cismando mais triste!
Amor a tornara assim.

Comentários
1) Despiedada. Que não tem piedade. Cruel.
2) Semi-aberto. Semi é o elemento latino com a significação de a) quase; b) metade, meio; c) um tanto.






O Triste Arcano! (1)

Lamento a sorte que me faz poeta,
Não que eu engenhe divinais canções;
Poeta n’alma cuja dor secreta
Do peito faz-me rebentar vulcões!...
Tenho um segredo que na fria lousa
Comigo à terra deverá baixar;
No peito guardo-o, pois ali repousa
O triste arcano que me faz penar.

Embalde tenho consumido os anos
Em falsas cismas... em penar sem fim;
Não saiba o mundo, de fatais enganos,
Aquele arcano... que só cumpre a mim!
A campa gélida comigo desça.
São desventuras que convém calar;
Basta que eu saiba-o (2) e que Deus conheça
O triste arcano, que me faz penar.

Dize-lo aos homens... não no (3) quer o peito;
Que importa aos homens o segredo meu?
Soubera-o o anjo... se não fosse afeito
Àquelas juras... como o penso eu.
Porém os anjos não perjuram... minto!
É triste a cisma que me faz chorar!
Do peito viva no fiel recinto
O triste arcano, que me fez penar.

Feliz julgai-me! Não no sou, por certo!
Anri meu peito, vê-lo-eis de dor
Contudo, enfermo, qual baixei incerto,
Lançado às rochas por um mar de horro.
Segredo infausto que, talvez na campa,
Meus curtos dias me fará murchar!
E a lousa (4) apenas saberão que estampa
O triste arcano, que me faz penar.

Rireis! – qu’importa – não permita o fado
A sorte, um anjo, ou a mulher, ou Deus
Que o peito vosso, qual o meu, penado
Concentre males como os males meus.
Males que pode desfazer somente
Um riso d’anjo... de mulher falaz... (5)
Mas não que a fala, que o sorrir desmente
O triste arcano, que me faz penar.

Corram meus dias lacrimosos, mestos, (6)
Julgem-me os homens, por demais feliz;
Fruindo julguem-me prazeres festos, (7)
E ocultem versos o que o rosto diz!
Comigo – aos sorvos – beberei meus males
Até meus dias, meu viver findar;
Nem leve a brisa pelos amplos vales
O triste arcano, que me faz penar.

Embalde tenho consumido os anos
Em falsas cismas... em penar sem fim;
Não saiba o mundo, de fatais enganos,
Aquele arcano... que só cumpre a mim!
À campa gélida comigo desça:
Basta que eu saiba e que Deus conheça
O triste arcano, que me faz penar.




Comentários
1) Arcano. Segredo profundo. É o latim arcanu, secreto, oculto.
2) Que eu saiba-o. Na tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.
3) No. Nos clássicos, principalmente, o pronome átono, acusativo de 3ª pessoa, o, a, os, as assume, por assimilação, a forma no, na, nos, nas, depois de vozes nasais.
- Viam-no chegar.
- Não na deixariam prear impunemente (Rui).
- Que não sabe a arte, não na estima (Camões).
No português de hoje, depois de bem, não e quem, vai desaparecendo o modelo clássico: não o desejo, por exemplo.
4) Lousa. Emprego já comentado noutra parte deste livro, com a mesma significação.
5) Falaz. Que engana intencionalmente.
6) Mestos. Tristes.
7) Festos. O mesmo que festivos. Pronúncia aberta (fés)
.

A Vida Humana é Sofrer


É breve o viver d’aurora,
Mas essa vida d’um’hora
Brilha, fulgura e colora
Tudo ao seu alvorecer;
Pura nasce e morre pura,
Não sabe se há desventura,
Mas a humana criatura
Nasce e sofre até morrer!

Vive o sol somente um dia
Foco de luz, de poesia,
Muitos climas alumia
De seus raios co’o fulgor;
Dá vida às plantas nascentes,
Aquece os bosques virentes,
Torna as águas transparentes,
Todo (ou tudo) é brilho e resplendor!

Tem a flor bem curta vida,
Porém na estação florida
Vive entre galas (1) – querida
Impera no toucador. (2)
Tem uma cor de beleza:
Branca, - parece a simpleza;
Rósea, - parece a pureza,
Ofendida em seu pudor.

Entre as ramas que vicejam
As ternas aves se beijam,
E das brisas que bafejam
Sentem em torno o frescor;
Mas o homem vem ao mundo,
Sofre em breve um golpe fundo,
Depois outro mais profundo
E morre entre ais e entre dor.

Sim, o homem um só instante
Vivendo, sofre constante
Dissabores sempre avante,
Sempre avante até morrer!
Brilha a aurora e o nitente,
Recende a flor inocente,
Beijam-se as aves contente, (3)
E o homem sempre a sofrer!


Comentários
1) Galas. Pompa. Fausto. Abundância. Alegria.
2) Toucador. Espécie de cômoda encimada por um espelho e que serve a quem se touca ou penteia (Aurélio).
3) Beijam-se as aves contente. O poeta empregou contente no singular, com o valor de advérbio: beijam-se contentemente as aves.

O Que eu Quero


Em quanto a sorte me persegue avara,
E a dor dos males me deslustra o rosto,
Tenho um consolo: no futuro hei posto
Minha esperança mais donosa e cara.

Mas, se das turbas através eu passo
E não lhes ouço murmurar meu nome,
Penso que a sorte, que a cruel consome
Tantos castelos (1) que velando faço!

Então os olhos, a cismar, dilato,
E encaro a esfera que me está suspensa...
E num arroubo de uma idéia imensa
À porta augusta dos vindouros bato!

Talvez – orgulho – que a avareza cega,
Talvez – um erro – que me embala a mente;
Mas, quem não olha pra o futuro crente?
Quem destes sonhos – tão gentis – renega?

Cubra-me o corpo muito embora aterra,
E em meu jazigo, (2) em cuja paz repousa,
Nenhum letreiro me decore a lousa, (3)
Nem caia um pranto, que a saudade encerra.

Não quero pranto, nem letreiro ou flores,
Quero somente que meu nome e glória
No tempo augusto da imortal memória
Radie ao evos (4) co’imortais fulgores.

Comentários
1) Castelos que velando faço. Castelos no ar. Imaginar coisas excelentes mas irrealizáveis.
2) Jazigo. Sepultura, túmulo
3) Lousa. Pedra funerária que se coloca sobre a sepultura.
4) Evo. Século. Perpetuidade.



Primeiras Águas

Foge, pavoroso espectro (1)
Maça magra e poeirenta,
Deixa vir o guapo jovem
Que a tudo, meigo, aviventa.

Em teu ossudo regaço (2)
De medonha catadura,
Só chilra o grilo, a cigarra,
Só há poeira e secura

Porém nos frescos domínios
Do jovem que assoma rindo
As árvores vêm florescendo
E os prados também florindo.

O velho tronco lascado, (3)
Que tinha a seiva perdido,
Sente as fibras se lhe incharem,
E brota reverdecido.

O jericó (4) suculento,
Que na seca se encolhera,
Caindo no chão a chuva,
Mais belo reverdecera!

A gentil cebola brava, (5)
Dos prados lindo ornamento,
Pelas várzeas e campinas
Brinca e se embala c’o vento.

Nos galhos reflorescentes
Os canoros passarinhos
Se lembram de seus amores,
Se fazem ternos carinhos.

E troveja pra o nascente,
E o tempo todo empardece,
E a terra inchada verdeja,
E o velho tronco enverdece.

Oh! quanta é minha ventura
Por gozar na minha terra
De amor os brandos influxos,
Que esta gentil quadra encerra!

O colono imaginando
No seu lar, no seu porvir,
Mostra no rosto a esperança
Nos lábios mostra o sorrir.

O fazendeiro contente
Dá largas ao coração;
Sente o peito dilatar-se
Nos campos do seu sertão,

E a semente cai na terra
Pelas mãos do lavrador;
Mil frutos dela se esperam
Entre risos, entre amor.

E o fazendeiro à porteira
Abóia (6) as vacas que vêm
Berrando pelos bezerros
Que o curral seguros tem.

Notai aquela vaquinha:
Que berro saudoso – momm!...
Pois ela chama o filhinho,
Que responde ao terno som!

Te os sapinhos nos charcos
Festejam ao modo seu
Esta quadra deleitosa
Que a natureza nos deu!

Oh! vida, quem não te inveja,
Nem sente gosto e prazer:
Senti-los, sem invejar-te,
Não sei como possa ser!

E a chuva cai em torrente,
E a terra toda alagou;
Corem riachos e grutas,
Mais de um açude sangrou.

Meu Deus! Prestai-me saúde
Neste meu sertão gentil,
Onde o inverno é tão belo,
Onde o céu tem tanto anil!


Comentários
1) Espectro. Sentido figurado. Espantalho.
2) Regaço. Sentido figurado: lugar onde se repousa.
3) Lascado. Rachado, quebrado.
4) Jericó. Planta da caatinga. Pode secar completamente sem morrer.
5) Cebola-brava. Planta da família Narcisáceas.
6) Abóia. Do verbo aboiar, derivado de boi. Aboiar é cantar à frente do gado; toada pouca variada e triste; serve para guiar e pacificar as reses, e sobre estas exerce muita influência, quando saudosa e em viagem”. (Juvenal Galeno). Aboio é canto sem palavra, marcado exclusivamente em vogais, entoado pelos vaqueiros quando conduzem o gado. (Cascudo). Os vaqueiros abóiam para orientação dos companheiros. Para atrair o gado. Para guiar a boiada. Também se diz aboiado, como Euclides da Cunha: “... ecoam melancolicamente notas do aboiado...”

A Um Passamento

Triste rola, por que gemes?
Tua dor quem motivou,
Que te carpes nestas horas,
Quando o sol já se ocultou?

Lastimoso e triste sino
Quem te ensinou a dobrar
Deste modo tão penoso
Que o peito faz-me (1) ansiar?

Brisa serena da tarde,
Por que passas a gemer
Pelas folhas da mangueira?
Por que vens-me (2) entristecer?

Sol formoso, que douravas
O céu com teu arrebol,
Por que perdeste essa cores,
Que eu tanto te amava, sol?

Lua pálida, mimosa,
Astro belo, inspirador,
Por que mais lânguido brilho
Ressumbra do teu fulgor?

Rosa bela, purpurina,
Por que te murchaste assim?
Lírio, por que te secaste?
Por que morreste, jasmim?

Meu coração, por que sofres?
Por que bates, coração?
Que desgraças me anuncias
Nesta tua agitação?

Ah! já sei: tudo me indica
Triste nova, que se deu;
Tudo lamenta uma esposa,
Que bela e jovem morreu!

Mas, ah! – lembrei-me que a esposa,
Se para o mundo morreu,
Para o céu mais venturosa
Entre glórias reviveu.

Comentários
1) Que o peito faz-me. Na época em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: que o peito me faz.
2) Por que vens-me? Veja nota 1

Beijos Mudos

Não quero dar-t’os na face,
Na lisa fronte não quero,
Nem quero um beijo que estale
Nos lábios com todo o esmero:
Eu quero um lânguido beijo,
Mudo abrasado de pejo.

Não quero que ninguém saiba
Que eu te beijei, meu encanto;
Eu gosto dos beijos mudos,
São beijos que sabem (1) tanto!
Depois – as brisas loureiras
São por demais chocalheiras.

Basta que os lábios se rocem
Mudos, bem mudos de pejo;
É testemunha indiscreta
A brisa de um som de um beijo,
Pode contar no arvoredo
O que se fez em segredo.

E as flores podem ter zelos (2)
Invejar nossa ventura
Podem ferver tantos beijos
Nas flores pela espessura!
E podem brisas e flores
Divulgar nossos amores.

Por isso delícias minhas,
Toma um terno e mudo beijo!
Não é mais doce e macio?
Não tem mais fogo e mais pejo?
Um beijo assim sabe tanto!
Toma inda outro, meu encanto!

Comentários
1) Sabem. Verbo saber. Empregado no sentido de ter sabor.
2) Zelos. No plural corresponde a ciúmes.

O Rei

Reis da terra o que sois? Oh quase um nada
(G. Dias)

Sentado no trono soberbo, brilhante
De pedras luzentes e de ouro e cetim, (1)
O rei se espreguiça, notando o cambiente (2)
Das sedas custosas e do ouro e rubim

Da mente lhe fogem tristeza humanas,
Que humanas tristezas não sentem os reis;
Circumdam-lhe o sólio volúpias insanas,
E em torpes prazeres imerso vê-lo-eis. (3)

Real diadema, cingindo-lhe a fronte,
Mortal não supõe-se, (4) mas julga-se um Deus,
Nos vastos domínios – quem há que o afronte,
Não são-lhe (5) os vassalos quais vis pigmeus? (6)

Baixelas (7) riquíssimas, taças doiradas,
Manjares opíparos – tudo primor,
O gosto lhe excitam, e as horas passadas
No vinho, na gula que lhe trazem torpor.

Do marmor, (8) do jaspe (9) deslumbram-lhe as cores,
E as vestes refulgem com mago esplendor;
Dos vasos pendentes exalam-se as flores
De em torno a seu trono perfumes e odor.

Mil quadros lascivos vigiam-lhe o leito,
Forrados de sedas, de moles coxins; (10)
Mil quadros que acendem-lhe (11) a flama no peito,
Que em beijos apagam-lhe (12) maus serafins.

E os paços (13) se atulham de infames vassalos,
De damas corruptas, de vis cortesãos,
Que todos procuram os reis para honrá-los,
Curvar-lhes os joelhos, beijar-lhes as mãos.

São todos sedentos de fama e de glória,
Sem feitos briosos, sem nobres ações!
A vida estudai-lhes: vereis sua história,
Manchada de crimes, de negras paixões.

Vereis suas frontes ao peso curvadas
De louros sangrentos de vítimas mil!
Zombando – profanos! – das cousas sagradas
Com riso de mofa, com ar senhoril!

Vereis ondular-lhes na mente orgulhosa
Enxames, sem conta, de idéias cruéis;
Vereis sua pena mover-se impiedosa,
Selando mil mortes, - cruentos lauréis!

Tiranos do mundo, num lago de horrores
A purp’ra (14) profana, nem podem lavar!
E a purp’ra manchada, que escorre em cruores, (15)
Não sabe outra cousa, que o vício acatar!

Abutres famintos, flagelo dos povos
São todos os testas-coroados, - os reis;
Voltejam-lhe o leito febris, sempre novos,
Prazeres impuros, - tais sempre os vereis!

História de monstros – dos reis é a história:
Um bom dentre centos, - os mais são maus reis;
Deveres conculcam, dos homens escória,
São massas inertes, são massas sem leis.

São massas (16)inertes, que um rei sem virtude
É rei só na forma, no peito não é:
Senhores se dizem, e em tal atitude
Nos gozos que passam somente têm fé.

Poeta livre não me curvo ao ouro
Dos reis perversos, que tiranos são:
O falso brilho do seu vil tesouro
Ofusca a escravos, mas a livres não.

Somente a escravos, pois o povo é nobre
Por natureza, mais gentil brazão
Que esses ganhados do suor do pobre
Como os dos reis pela mor (17) parte o são.

Os reis detesto, porque neles vejo
Impresso o selo de um viver de horror;
Direis que o fausto que o circunda invejo,
Dizei-o embora, que hei de vós só dor.

Dizei-o embora! Mas sabei que o peito
Do poeta é livre, como livre sou;
Não crê nos ídolos da grandeza, e preito
Só rende ao justo que ação justa obrou.

No livro magno que contém a história
Dos reis mundanos, o que aí vereis?
Sinistros feitos e fatal memória
Legada aos evos por ignóbeis reis.

Esse Alexandre, (18) que às nações deixara
Um nome cel’bre, (19) que jamais ganhou,
Ébrio – execrável! O seu braço alçara
Ferindo aquele que o até (20) salvou!

A mesma pátria que no livre seio
Produziu Brutus (21)e gerou Catão, (22)
Gemeu nos ferros, no infernal enleio
De reis protervos – como todos são.

Sim, lêde os feitos de um cruel Tibério, (23)
E os de um Calígula (24) inda mais cruel;
Vêde, fazendo lupanar do império
De Cláudio a esposa, (25) sensual, infiel!...

E Nero... (26) o monstro ainda mais que a fera
Cruento e mau, de coração cerval,
Páginas negras de sangrenta era
Juntou à história mais cruel, fatal!

E esse guerreiro que apregoa a fama,
Que para sempre no Waterloo (27) caiu;
Em cujo peito laborava a flama
Incendiaria – qual jamais luziu!...

Fui um tirano que usurpou impérios,
E que da esposa vil repúdio fez! (28)
Como os Calígulas e cruéis Tibérios
Foi Bonaparte (29)tão cruel, talvez.

De quantos Neros se recheia o mundo!
Não posso, oh nunca! – querer bem aos reis;
Num mar de gozos, nesse pego (30) imundo
Os reis polutos sempre aí vereis.

Dos reis inveja... não se ajusta ao peito
Do poeta livre, como livre sou;
Não creio em ídolos de grandeza, e preito
Só rendo ao justo que ação justa obrou

Comentários
1) Cetim. Tecido lustroso e macio. Origem árabe.
2) Cambiante. Gradação de cores. Cor indistinta. Alguns estudiosos lhe atribuem indiferentemente o masculino e o feminino. Escritores de grande notoriedade empregaram cambiante no masculino: “A fé e a superstição misturam os seus reflexos num cambiante confuso” (Manuel Bandeira).
3) Vê-lo-eis. Ao futuro do presente não se junta, depois dele, o pronome átono. Ou o pronome vem antes do verbo – não o vereis, ou no meio do verbo: vê-lo-eis.
4) Não supõe-se. Na época em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: não se supõe.
5) Se são-lhe. Veja nota 4.
6) Pigmeus. De muito pequena estatura.
7) Baixelas. Utensílios empregados no serviço da mesa.
8) Mármor. Termo poético. O mesmo que mármore.
9) Jaspe. Tipo de quartzo que apresenta grande variedade de cores.
10) Coxim. Almofada, ou travesseiro, para descanso.
11) Que acendem-lhe. Veja nota 4.
12) Que em beijos apagam-lhe. Veja nota 4.
13) Paço. Forma evolvida do latim palatiu. Este latim deu duas formas portuguesas: palácio e paço.
14) Púr’pra. Púrpura. José Coriolano suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação. Púrpura é substância vermelho-escura. Também vestuário dos reis, como na poesia.
15) Cruores. Sangue que corre, sangue que sai dos vasos. Matéria corante que entra na composição do sangue. Parte coagulante do sangue (Nascentes).
16) Massas. Emprego no sentido de corpos.
17) Mor. Forma contraída de maior.
18) Alexandre. Veja noutro local herói de Alexandria, que é o mesmo Alexandre, ou Alexandre III o Grande (356 – 323 a.C.). Rei da Macedônia. Destruiu Tebas. Venceu Dario. Conquistou Tiro, Gaza e o Egito. Fundou Alexandria. Apoderou-se da Babilônia. Um dos maiores guerreiros da história da humanidade.
19) Cel’bre. Célebre. Supressão de sílaba por necessidade de metrificação.
20) Que o até salvou. Próclise é a colocação do pronome átono antes do verbo. No caso houve reforço da próclise.
21) Brutus. Político e escritor romano (85 – 42 a.C.). Protegido de César, mas participou da conspiração contra este, que, vendo-o brandir um punhal, gritou: Tu quoque, Brute, fili mi! (Tu também, Brutu, meu filho!).
22) Catão. Marcus Porcius Cato, dito Catão o Antigo (234 – 149 a.C.). tribuno. Político austero e honesto. Lutou contra o luxo das mulheres. No senado exigiu o aniquilamento da cidade de Cartago.
23) Tibério. (Tiberius Julius Caesar). 42 a.C – 37 d.C. Imperador romano. Tomado de desconfiança e misantropia, retirou-se para a ilha de Capri, deixando parte de suas responsabilidades a Sejano, que tramou a queda do imperador. Tibério mandou matar Sejano e vários membros do senado e da família imperial.
24) Calígula. (Caius Caesar Augustus Germanicus) – dito Calígula (12 d.C – 41). Imperador romano. Foi educado entre os soldados, responsáveis por seu cognome de cáliga, calçado militar. Sucessor de Tibério. Enlouqueceu no poder. Extravagante e cruel. Quis que seu cavalo Incitatus fosse nomeado cônsul. Lamentava que o povo romano não tivesse apenas uma só cabeça para que pudesse degolá-la de um só golpe. Assassinado.
25) Do império de Cláudio a esposa. Cláudio I (Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus – 10 a.C., 54 d.C.). Imperador romano. Epiléptico. Drenou o lago Fucino. Sofreu a influência de suas esposas Messalina, depois Agripina. Esta o envenenou. José Coriolano faz referência especialmente a Messalina (Valeria Messalina), que se entregou à devassidão e foi executada por ordem do imperador.
26) Nero (Lucius Domitius Nero Claudius). Nasceu em 37 d.C. Faleceu em 68. Sucessor de Cláudio. Mandou matar o irmão Britânico e a própria mãe. Cruel. Imperador romano, realizou governo despótico e libertino, que contou com a cumplicidade da segunda esposa Popéia, acusou os cristãos do incêndio de Roma, e pelos cristãos foi acusado de incendiá-la. Perseguiu o cristianismo. Abandonou o poder depois de declarado inimigo público pelo senado. Fez-se matar por um liberto.
27) Waterloo. Escreveu José Fonseca Fernandes: “Waterloo é uma povoação a quinze quilômetros do centro de Bruxelas (Bélgica). Deu nome à batalha em que Napoleão Bonaparte foi vencido pelos exércitos reunidos dos ingleses de Wellington e prussianos de Bulow e Blücher, última e derradeira batalha em que se empenhou o maior general-de-campo da idade contemporânea. Uma batalha que Napoleão perdeu na última hora por ter faltado tirocínio militar a um de seus marechais, Grouchy, o indeciso auxiliar que não soube incorporar-se ao grosso das tropas em combate, permitindo às reservas prussianas comandadas por Blücher que decidissem a sorte da contenda” (“Europa de Sempre” – 176).
28) E que da esposa, vil repúdio fez. Referência ao fato de se ter Napoleão Bonaparte divorciado de sua mulher Joséphine Tascher de La Pagerie para casar-se com Maria Luísa, da Áustria.
29) Bonaparte. Napoleão I, imperador dos franceses de 1804 a 1815. General. Cobriu-se de glória como guerreiro em quase todo o mundo do seu tempo. Venceu a Itália. Ocupou Alexandria no Egito. Restabeleceu a ordem na França. Restaurou a paz religiosa. Participou da redação do código civil, um dos maiores monumentos jurídicos de todos os tempos. Anexou a ilha de Elba à França. Nomeado Presidente da República italiana. Reorganizou a Alemanha. Reformou a universidade e realizou grandes obras de urbanismo. Quando anexou a Holanda, atingiu o máximo de poder. Foi desastrosa a guerra que fez à Rússia. Abdicou do trono. Exilado em Elba, mas voltou ao poder. Perdeu finalmente a batalha de Waterloo. Abdicou segunda vez. Feito prisioneiro pelos ingleses na ilha de Santa Helena, aí faleceu seis anos depois.
30) Pego. O mesmo que pélago, mar profundo. O poeta empregou a palavra em sentido figurado.

A Rosa Defendendo-se

Numa roseira formosa,
Vicejante, bela, airosa,
Despontava linda rosa,
Entre espinhos e entre odor;
Quis colhe-la à madrugada,
Mas a roseira agastada
Me fere a mão desdenhada,
Que logo foge co’a dor.

Qual o guerreiro valente
Que, ferido mortalmente,
Descansa e co’o combatente
Vai nova luta travar;
Assim eu esperançoso,
Ousado, cavalheiroso,
Tendo o botão odoroso
Da roseira conquistar.

Porém a roseira altiva
A fresca chaga me aviva
Aos meus desejos esquiva
Co’o mesmo espinho d’então;
Fujo ainda mais pressuroso,
Já me tornando medroso,
Já sentindo estrepitoso
Me bater o coração.

Então todo amedrontado
Pelo poder denodado
Do lindo botão amado
Que a roseira em si contém,
Já no meu fado reflito,
Em minha sorte medito,
E quase vencido grito:
- Sou fraco como ninguém!

Contudo, outra tentaiva
Inda faço, mas me esquiva
A roseira, é dor mais viva
Fez-me então exp’rimentar; (1)
E logo as armas deponho,
Envergonhado e tristonho,
No verde tronco risonho
Sem que mais queira tentar!

Se a roseira, vegetante
Apenas, zela constante
Seu lindo botão fragrante
Que só tem beleza e odor;
Como a donzela a beleza,
Que lhe deu a natureza,
E a su’alma de pureza
Não há de zelar co’ardor? (2)

Sê, pois, qual tal a roseira,
Ó donzela prasenteira,
Se de tu’alma fagueira
Quisesse um mimo roubar;
Sê assim, anjo donoso,
Que Deus, sempre bondadoso, (3)
Neste mundo tormentoso
Não quis para alívio dar

Comentários
1) Exp’rimentar. Experimentar. Necessidade de metrificação.
2) Co’ardor. Com ardor. Necessidade de metrificação.
3) Bondadoso. Forma rigorosamente correta ao lado de bondoso. Esta resultou de haplologia: supressão de uma sílaba quando no vocábulo há outra próxima do mesmo valor: da, do (dentais). O mesmo se passa com caridadoso (caridoso).


Feliz Tempo

Momentos felizes, momentos ditosos
Em que desfrutei
Tua meiga presença, teu rosto de graças,
Em que me arroubei;
Mas eles se foram, passaram veloces (1)
E eu triste fiquei.

Contudo, Maria, meu peito consulto,
Responde: não sei!
Lhe noto incerteza, por isso em meus braços
Te unir poderei!
Venturas me agoura? (2) Contigo momentos
Felizes terei!

Agora somente me restam gemidos,
Pois nada alcancei;
Meus lábios quiseram se abrir e pedir-te,
Porém me calei!
Meu fado maldigo; mas como se eu mesmo
Meu dano causei?

Ao menos nutrindo tão grata esperança...
Assim viverei;
Se a mão delicada me deres de esposa,
Feliz eu serei!
Se a mão me negares de esposa, ó querida,
Então morrerei!

Não achas, Maria, tão duro dizer-se:
“Jamais o amarei?”
não achas tão doce, tão grato afirmar-se:
“Sim, tua serei?”
Pois olha, Maria, sincero te digo:
- Eu sempre te amei.




Comentários
1) Veloces. Forma latina, muita usada antigamente. Hoje, veloz, velozes.
2) Agoura. Verbo agourar. Empregado no sentido de prever, predizer. Fazer agouro, agourar, hoje se emprega quase sempre em mau sentido.

À Morte

Do Visconde de Almeida Garret.


Não morre o gênio, sobrevive a fama,
Não morre o sábio, seu renome voa
Em meio às eras que o repetem sempre,
Retumba altíloquo.

Se abate as asas na gelada lousa, (1)
Pairando frio, se bordeja à campa,
Não morre o vate, nos anais fastosos (2)
Seu nome exalça-se.

Que importa a morte, pois se a vida extingue
Do sábio, fica-lhe renome eterno?
Se da memória resplandece o templo,
Que importa o túmulo?

Mais de três séculos sobre o luso (3) vate
Que importa pesem, se Camões (4) perpassa
Nos moles carmes, (5) nas endechas (6) tristes,
No canto altíssono?

Cantor mavioso! não findou tua vida.
Pairou no topo dos umbrais da morte;
Ei-la se expande, esvoaçando em torno
Do orbe terráqueo. (7)

Sim, nos teus versos de imortal beleza
Sorriem-te os evos através dos tempos!
Repousa a fama sobre o mundo como
No céu o espírito.

Cantor mavioso, do cantor do Gama, (8)
Rival nas letras e na glória infinda,
Teu nome ecoa lá nos peitos lusos
Qual nos brasílicos.

E o bardo rude do alaúde tosco
Tristes saudades te dirige triste;
Se vive a fama, se o esp’rito (9)goza,
O vate falta-lhe.

Soam teus versos como mestos soam
Repercutidos, virginais suspiros;
Decresce a arte, se lamenta o mundo
Pelo teu trânsito.

Porém que importa? – Sobrevive a fama,
Não morre o sábio, seu renome voa
Em meio às eras que o repetem sempre,
Retumba altíloquo!




Comentários
Observação: Almeida Garret pertenceu à celebre trindade de romantismo português. Os dois outros: Castilho e Alexandre Herculano. Foi poeta, dramaturgo, romancista.
1) Lousa. Noutro local há comentário sobre lousa neste sentido.
2) Fastosos. De fasto. Grande, notável, pomposo.
3) Luso. O mesmo que português.
4) Camões. Maior gênio literário de Portugal. Grande lírico. Épico notável. Autor de “Os Lusíadas”, epopéia que, em 1972, completou quatrocentos anos de publicada. Chamou-se Luiz Vaz de Camões.
5) Carmes. Poema. Versos líricos.
6) Endechas. Poesia triste. Canção melancólica.
7) Terráqueo. Que tem terras e águas.
8) Cantor mavioso do cantor do gama. Cantor do Gamam foi Camões. Vasco da Gama, o descobridor do caminho marítimo da índias, é o herói da epopéia nacional portuguesa “Os Lusíadas”. Quando José Coriolano diz cantor mavioso do cantor do Gama, está a referir-se a Garret, pois Garret escreveu o poema “Camões”.
9) Espr’ito. Espírito. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.

O Infante

Gosto de ver um infante (1)
Alegre andar pelo prado
A correr;
Gosto de ver-lhe o semblante
De pureza sombreado
Florescer.

Gosto de vê-lo correndo
Em busca da borboleta
A fugir;
Gosto de ouvir-lhe dizendo
Uma gracinha indiscreta
A sorrir.

Gosto de vê-lo sisudo
Quando a mãe o repreende
Porque errou;
Gosto de vê-lo assim mudo
Quando a lágrima que pende
Borbulhou.

Gosto de vê-lo chorando
Porque alguém de coitadinho
O chamou, (2)
Quando na relva brincando
Com seu pequeno irmãozinho
Se zangou.

Vede-o correndo – tão lindo!
Mas um queda, coitado
Lá deu!
Dizei-lhe: “É nada.” Sorrindo,
Não mostrará acalmado
Que sofreu!

Vede-o no colo materno
Cândidos beijos colhendo
Como vai!
Vede-o também como terno
Mil graças está fazendo
Para o pai!

Ó infante! Ó belo anjinho!
Quem dera no mundo fosses
Sempre assim...
Tens encetado o caminho...
Teus dias inda são doces!
Mal de mim!

Mal de mim – que hei já chegado
À quadra fatal da vida,
A do amor;
Já fui, qual tu, fortunado;
Hoje tenho a alma ferida
Pela dor!...

Ah! que dos anos da infância
Nem eu mais a memória posso
Conservar!
Nem mais dessa bela estância (3)
Da vida – a mimosa história
Sei contar!

Não sei – que a vida do adulto
É um mistério constante,
Um sofrer;
Num leito de dor sepulto,
Não tem alívio um instante,
Te (4) morrer!

Eis porque gosto do infante
Alegre, andando no prado
A correr;
Gosto de ver-lhe o semblante
De pureza sombreado
Florescer.

Comentários
1) Infante. Emprego no sentido de criança no período da infância.
2) De coitadinho o chamou. No sentido de dar nome, apelidar, o verbo chamar não admite, hoje, o pronome o, mas o pronome lhe.
3) Estância. Emprego no sentido de quadra, período.
4) Te. Por até. Assinala Silveira Bueno que os textos arcaicos apresentam variadas formas da atual preposição e, algumas vezes, advérbio até: ata, ataa, ta, ta, tee, até, te (“A Formação Histórica da Língua Portuguesa” – 181). No texto te por necessidade de metrificação.

Coragem
(pelo cólera) (1)


Não descrede da sorte: o mal nem sempre
Vos há de lacerar a doce vida:
Portai-vos corajosos; não descrede (2)
Da bondade do Céu na dura lida.

O céu é previdente: pelas dores
Com que o morbo (3) vos há ceifado a vida,
Nesse eterno jardim, de olor eterno,
Vos destina uma sorte mais subida.

Não descredo do Céu: co’as mãos erguidas
Louvai a mão divina que suspende
No curso o mesmo sol; que, majestoso,
Manda ao mar dividir-se, e ele se fende!

Não descrede do Céu: correi ao leito
Onde jaz sem recurso o triste, o pobre,
Prestai-lhe esses sufrágios que dimanam
De um peito caridoso e grande e nobre.

Um dia morreremos; pois corramos
Sem descanso a exercer a caridade;
Não pode uma ação boa ser banida,
Nem esquece-la a divinal bondade.

Nos momentos da vida nenhum gozo
Se pode comparar ao gozo santo
Que frui o caridoso junto ao leito
Que o mísero verte amargo pranto.

Não vede (4) em poucos dias tantos nomes
Gravados sobre o templo da memória?
Não vede em poucos dias laureados
Tantos bravos e heróis? – que maior glória?

E enquanto tremular a grimpa alçada
Aos brios desta terra belicosa,
Um nome ler-se-á no seu fastígio:
O nome da pessoa caridosa.

Avante, meus irmãos! Se a Deus se pode
Rival atribuir na vida e fama,
Será rival de Deus o caridoso
Que vela o moribundo ao pé da cama.

Comentários
1) Cólera. Veja estudo noutro local.
2) Não descrede. O imperativo negativo se faz com o subjuntivo presente: não descreais.
3) Morbo. Veja o estudo a respeito de cólera.
4) Não vede. O imperativo negativo é feito com o subjuntivo presente: não vejais. Admite-se não vede porque na época em que José Coriolano escreveu muitas questões da língua ainda não estavam disciplinadas.


O Velho Caçador de Onça

I

“Avante meus camaradas,
Vamos às matas bater;
Coragem! Fogo na onça
Quando a onça arremeter,
Que o meu facão amolado
Lh’hei de na guela meter;
Que eu não sei que cousa é medo,
Não sei, nem quero saber.

Aquele cão, que ali vedes, (2)
Trinta mil réis (3) me custou!
Faltará chuva em janeiro,
Mas nunca me ele (4) faltou!
Se a onça ronca raivosa,
Se um ah cão! Me ele escutou,
É polv’ra (5) – o bicho na cava
Meu tubarão (6) acuou!

Ouvi-me este canto agora;
Sabeis que eu não minto, não:
Eu caçava no peeiro (7)
O meu cavalo alazão: (8)
Vi uma onça comendo-o,
Estumei-lhe (9) o tubarão.
Ele filou-lhe na curva,
E eu puxei pelo facão.

A fera, escumando raiva,
Urrando, a mim se botou!
Da mão arrancou-me o ferro (10)
Co’a tapa que me soltou!
Mas eu o braço lhe enterro
Guela dentro que a afogou!
E a fera co’os finos dentes
O braço me mastigou!

Fiquei – assim – aleijado,
Mas inda movo o facão;
Não temo onças, nem almas,
Nem os vivos, temo, não
Esperai!... vejo trilhada
De rastro (11) a vereda... Ah cão!
Palavras não eram ditas,
Já corria o tubarão.

II

Sobre a encosta do serro (12) empinado
Uma onça pintada acuou;
Eram brasas seus olhos medonhos,
Muitos cães já o monstro matou!
Um restava – estafado – sangrento –
Que avançava aos estumos d’iscou! (13)

Para um canto jaziam cançados
Muitos bravos com pedras na mão!
Um somente co’a fera lutava,
Açulando (14) o fiel tubarão!
Cada grito d’iscou! Retumbava
Qual retumba no espaço o trovão!

Era só, mas seu rosto brilhava
Como brilha o semblante do herói!
Muitas vezes à boca da furna
Investia valente – qual sói (15)
Ser o bravo guerreiro ferido
Que a ferida não mostra que dói!

E lidava e lidava – afilando
O brioso, fiel tubarão;
E uma pedra vibrando, raivoso,
Fez a fera rolar pelo chão
Tremeu ela... gemeu... dando um urro
Que troou como troa o trovão!
E o guerreiro das matas repete
Novo golpe que o onça matou;
E, co’o peito incendido (16) de glória,
Seus amigos, por fim animou
Com a rude canção que dos lábios
Entre vivas e aplausos cantou.

III

Sou filho destas catingas,
Donde vós também os sois;
Nunca temi o novilho,
Como a onça temer pois?
Co’o ferrão (17) topo-os na testa,
Inda vindo dois a dois!
Não me abate o frio inverno,
Nem de agosto os quentes sóis. (18)

Nunca tive dor de dente,
Nunca tive indigestão,
Nunca doeu-me (19) a cabeça
Nunca sofri retenção, (20)
Nunca andei pelas cidades,
Nunca passei do sertão,
Nunca rojei, suplicando,
Pelos pés do cortesão.(21)

Com setenta anos de idade
Inda não sei me torcer;
Ando de pé quase sempre,
Sofro o frio sem tremer;
Lamento os moços de agora
Que vivem tudo a temer;
Nunca chorei nos meus dias,
Nunca me ouviram gemer.

Sou solteiro, - não casei-me
Porque Deus não permitiu;
Amei uma linda moça
Como igual nunca se viu!
Mais leve que uma veada (22)
Que o caçador pressentiu,
Ela não era da terra,
Co’os os anjos ao céu subiu!

Confessou-me que no mundo
Eu só era o seu amor!
Que vez, tocando a rabeca, (23)
Vi-lhe (24) no rosto o palor, (25)
E uma lágrima comprida
Banhar-lhe o seio d dor!
Nem pai nem mãe tinha ela,
Tinha-os levado o Senhor.

Vivia do seu trabalho,
Honrada como ninguém!
Pelos quereres (26) da vida
Eu adorava-a que nem
Tenho palavras que possam
Pintar-vos todo o meu bem!
Mas ela foi-se e eu cá vivo,
Enquanto a hora não vem...

Desprezei o casamento,
Do mundo não quis saber;
Meus pobres pais em meus braços
Eu vi-os também morrer.
Poucos amigos me restam...
As onças vivo a bater.
- Sou cristão, assisto à missa,
confesso-me; eis meu viver.”

_______

Eis a rude canção que cantava
O Senhor do fiel tubarão,
Que zombava do mundo e das onças,
E dos males, das eras (27) de então.

Comentários
1) Onça. Nome vulgar nas espécies de animal carnívoro do gênero felino. De modo geral, a onça pintada ou verdadeira, de ocorrem as espécies suçuarana e tigre. À onça preta se dá o nome de onça-tigre, muito feroz.
2) Vedes. Verbo ver na 2ª pessoa do plural do indicativo presente.
3) Trinta mil réis. Mil réis era a antiga moeda brasileira. Em 1942 passou a cruzeiro, dividido em centavos. Reis é plural de real (moeda).
4) Nunca me ele faltou. Próclise é a colocação do pronome átono antes do verbo. Os clássicos costumavam colocar o átono antes do reto, quando ocorria na frase advérbio notadamente de negação. O fato se chamou e se chama reforço da próclise.
5) Polv’ra. Por pólvora. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.
6) Tubarão. O cão, o cachorro.
7) Peeiro. Lugar onde se peiam os animais.
8) Alazão. Cavalo cor de canela. É palavra árabe.
9) Estumei. Verbo estumar. Assanhar (os cães) por meio de gritos e assobios apropriados.
10) Ferro. O facão.
11) Rasto. Também pode dizer-se e escrever-se rastro.
12) Serro. Pronuncia fechada (ser). Espinhaço.
13) Estumos de iscou. Os dicionários não agasalham estumo. Tenho impressão que o poeta empregou estumo como grito, assobio (para assanhar os cães). Macedo Soares diz que estumar é verbo tirado da interjeição ist! ist! “com que se estumam os cães”. Assim estumo seria deverbal de estumar. O poeta empregou ainda iscou. Há o verbo iscar, o mesmo que açular (os cães). Mas iscou na expressão acima está como interjeição.
14) Açulando. Do verbo açular. Instigar (cães) por meio de gestos, gritos. Emprega-se também em sentido figurado: irritar, provocar.
15) Sói. Verbo soer. Defectivo. Significa costumar e só se conjuga nas seguintes formas: sói, soem (indicativo presente); soia, soías, soía, soíamos, soíeis, soíam (pretérito imperfeito do indicativo; soído (particípio).
16) Incendido. É o verbo incender, acender, inflamar.
17) Ferrão. Ponta aguda de ferro.
18) Sóis. Plural de sol.
19) Nunca doeu-me. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: nunca me doeu.
20) Retenção. Prisão de ventre. Dificuldade de evacuar.
21) Cortesão. Empregado no sentido de homem de corte, palaciano.
22) Veada. Fêmea do veado. Venatum. Adjetivo latino do verbo venari (caçar). Tal adjetivo indicava, a princípio, todo e qualquer animal obtido pela caça. Hoje veado designa o antigo cervo.
23) Rabeca. Espécie de violino, quatro cordas de tripa friccionadas com um arco de crina, untado no breu.
24) Vi-lhe. Correto emprego do lhe em função possessiva, correspondente a seu, dele.
25) Palor. Cor pálida.
26) Quereres. Emprego de querer como substantivo. Ato de querer: o querer, os quereres (vontade).
27) Eras. Plural de era: época.

Em Que Pensas?
(pelo cólera) (1)

A estas horas, quando em noite turbida
Elevam todos seu esp’rito (2) a Deus,
Temendo os males que ao mortal misérrimo
Envolver tentam nos horrores seus;
A estas horas, quando a chuva em cântaros
Alaga as ruas tão intensa assim,
Que mais assusta os timoratos ânimos,
Bela, em que pensas? Pensarás em mim?

Além rouqueja pelo espaço altíssono
A voz do Eterno no feroz trovão,
Que abala a terra ao fuzilar contínuo
Que à terra vibra do Senhor a mão.
Enquanto a guerra pelo espaço horrífico
Os elementos travam feia assim,
Dormes ou cuidas, linda virgem cândida?
Bela, em que pensas? Pensarás em mim?

Ah! tu respiras junto à mãe solícita,
Sem que um idéia de volteje má;
Nem talvez pensas que o cruel contágio
Possa ferir-me sem que eu volte lá!
E eu entre os males, entre as duras fráguas
Em ti só penso! Crê-lo-ás assim?
Mas tu tão longe, criatura Angélica...
Bela, em que pensas? Pensarás em mim?

Não queira a sorte, nem o Céu propício
Que eu morra inglório, sem gozar feliz
Os teus encantos que na vida fazem-me
Olvidar males, de que amor maldiz.
Goze eu a glória, seja embora efêmera,
De nos teus braços ser ditoso assim
Como cogito no sonhar poético...
Bela, em que pensas? Pensarás em mim?
Comentários
1) Cólera. Veja estudo noutro local.
2) Esp’rito. Espírito. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.

A Filha do Deserto

Eu sou a triste filha do deserto,
Que Deus na terra ingrata abençoou;
Se suspiros e lágrimas desperto,
Consolações e paz também eu dou.
Quando as pompas do mundo te enfastiam,
E os prazeres sensuais, que te inebriam,
Derramam-te o horror no coração,
Quem é que, entre sorrindo e lacrimosa,
Que mãe enternecida e piedosa,
A ter com Deus te guia pela mão?

Eu sou o amigo oásis (1) do deserto,
Que Deus ao viajante fabricou;
Se as saudades da pátria em ti desperto,
Em ti também à pátria um gênio dou
Onde o luso escreveu essa epopéia, (2)
Gigante filha dessa nobre idéia,
Que deu a Portugal fama e brasão? (3)
Onde é que o vate geme suspiroso
As desgraças de um mundo tormentoso,
Fértil em males, fértil em traição?

Eu sou a companheira do proscrito, (4)
Como fui do Alverenga e do Dirceu; (5)
Se gemidos arranco ao peito aflito,
Também extingo-os no regaço meu.
Acrisola-se em mim a penitência,
Faço em mim ver o ateu a Onipotência,
Dos olhos seus rasgando o denso véu;
Em mim todos encontram pronto meio
De chegar-se ao Eterno ao imenso seio,
De ganhar-se um asilo lá no céu.

Era em mim o Sinai, (6) em que contrito
Moisés (7) quarenta dias jejuou,
E o Horto, (8) em que o discípulo maldito (9)
Com um ósculo ao Mestre (10) atraiçoou;
E o Horebe, (11)junto ao qual a sarça ardia,
E o presépio, em que viu a luz do dia
E a Estrela mais gentil da redenção:
Eu sou, mortais, a filha do deserto,
Que o amor e a contrição em vós desperto:
Eu sou, mortais, eu sou a solidão!

Comentários
1) Oásis. Lugar aprazível, coberto de vegetação, no deserto. No singular e no plural tem a mesma forma.
2) Onde o luso escreveu essa epopéia. Referência ao poeta português Luís de Camões, autor do poema épico “Os Lusíadas”.
3) Brasão. Noutro local há comentário sobre brasão.
4) Proscrito. Desterrado.
5) Alvarenga e Dirceu. Referência a Alvarenga Peixoto, poeta brasileiro do século XVIII integrante da chamada Escola Mineira, lírico; Dirceu é pseudônimo, ou nome árcade, de Tomás Antônio Gonzaga, português de nascimento, que se radicou em Vila Rica (Ouro Preto). Autor do célebre livro de poesias “Marília de Dirceu”. Marília foi Maria Joaquina Dorotéia de Seixas Brandão, sua noiva. Ambos os poetas se envolveram no movimento político da Inconfidência Mineira.
6) Sinai. Nome de uma montanha, aonde chegaram os israelitas depois da saída do Egito. Do cimo deste monte foi proclamada a lei dos dez mandamentos e na sua base foi ratificado o pacto que formou a nacionalidade hebraica, que tinha Jeová por rei.
7) Moisés. Grande legislador hebreu. Instruído na literatura egípcia, pois era filho adotivo de uma princesa do Egito. Descobriu que Deus o chamara para ser libertador dos israelitas, seus irmãos. Retirou-se do Egito. Muito refletiu, na solidão do deserto. Depois do episódio da sarça, Moisés voltou ao Egito. Aí tomou o comando do povo hebreu. No Sinai foi admitido a íntimas relações com Deus. Obteve de Deus os estatutos, baseados nos dez mandamentos. Numa das ocasiões em que foi chamado por Deus ao monte, jejuou quarenta dias e quarenta noites. Como organizador de um povo, Moisés dotou Israel com instituições civis e religiosas de primeira ordem. Possuía dotes de estadista.
8) e 9) Horto e discípulo maldito. Referência ao Jardim das Oliveiras, onde Jesus foi preso por soldados, acompanhados de Judas Iscariotes. É o mesmo Jardim de Getsemâni.
10) Com um ósculo atraiçoou o Mestre. De acordo com um sinal previamente combinado, a fim de indicar aos soldados a pessoa de Jesus, Judas adiantou-se e saudou o mestre, beijando-o na face.
11) Horebe. Veja nota 6. é o monte Sinai.
12) A sarça ardia. Quando terminou a meditação de Moisés no deserto (veja nota 7), foi ele surpreendido com o incêndio de uma sarça que ardia sem se consumir. Aproximando-se para observar o fenômeno, o Senhor o chamou no meio da sarça para ir libertar o seu povo.

A Noiva

Ei-la tão bela e casta – pensativa...
Sobre a mão descasando a linda face!
Ei-la de leve abrindo os róseos lábios
E um ai soltando que em Jesus termina!

Ah! que uma lágrima dos meigos olhos
Ora lhe inunda o encantador semblante;
Mas um sorriso brinca-lhe nos lábios,
Dando a seu pranto salutar antídoto! (1)

Vede-a, não mais suspira, a breve boca
O sorriso descerra, pudibundo,
Tão cheio de inocência e de candura,
Tão pudibundo que de sê-lo cora!

Mas, dor! – de novo o pranto se sucede,
De novo o riso nos seus lábios pousa!
Virgem, virgem do amor, que alternativa
Tu’alma ingênua assim contrista e alegra?

Que sentes, virgem? Que mistério é este?
Por que tu choras, enrubesces, ri-te?
Como é que o pranto te sucede o riso?
Como é que ao riso te sucede o pranto?

Virgem, virgem de amor, eu te perscruto...
Os recônditos, puros pensamentos
Descortino-te, e sei porque suspiras
Tão grato suspirar envolto em gozos.

________

És noiva, em breve teus dias
Vão tomar diversa cor,
Não turvos, sempre serenos
Nos doces laços do amor.

Se pensas, virge, e suspiras,
Se acendes na face a cor,
Suspiras, virgem, de pura,
Pensas nos laços do amor.

Teu terno pranto coado
Da saudade no rigor,
O seio materno banha,
Banha as mãos do genitor.

Teu riso adoça a lembrança
Da posse desse penhor,
Que por ti somente anhela
Os doces laços de amor

Tu’alma é como a de um anjo
De um Serafim do Senhor;
É pura como a das virgens
Que habitam co’o Salvador.

Se pensas, virge, e suspiras,
Se acendes na face a cor
Suspiras, virgem, de pura,
Pensas nos laços de amor.

_______

Tu pensas! não sabes se acaso um futuro
Pra ti se reserva de angústias pejado;
Tu pensas! não sabes se o nó que meditas
Será feliz sempre, ditoso, sagrado.

Tu choras! teu pranto saudades revela,
Revela lembranças do tempo passado;
Tu choras! teu pranto nos joelhos goteja
Da mãe carinhosa, do pai desvelado.

Tu ri-te! teu riso te afaga a lembrança
De unires-te (2) àquele que te é tão prezado;
Tu ri-te! (3) teu riso demonstra a certeza
De seres, ó virgem, penhor muito amado.
Tu coras! o nácar (4) que às faces te sobe.
Que o rosto formoso te faz mais rosado,
Ó virgem, demonstra que és pura, que és bela,
Que um nó tu meditas difícil, sagrado.

E a virgem que pensa na sorte futura,
Que chora saudosa – do tempo passado,
Que ri-se (5) à lembrança de mútuo amor terno,
Que cora de um laço tão puro e sagrado:

Oh! não! essa virgem, tão puro, tão santa,
Às portas tremendas do templo sagrado,
Um beijo não cede, não vende perjura
Ao vil que a requesta, profano, malvado.




Comentários
1) Antídoto. É o emprego anti (contra) e doto (dado). Antídoto significa dado contra. Contraveneno. O poeta empregou a palavra em sentido figurado: remédio contra um mal moral.
2) Na época em que o poeta escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.
3) Vide nota 2
4) Nácar. Cor de carmim. Cor-de-rosa.
5) Que ri-se. Veja as notas 2 e 3

Nênia

(À morte de meu colega Manuel Alexandrino da Silva Girão, falecido no dia 8 de maio de 1855, quando estudante do 1º ano da Faculdade de Direito do Recife.)

Frágil homem, mortal, que és tu no mundo,
No grande espaço do universo solto?
- Hoje vida e prazer; - hoje alegria:
- Amanhã cinza ou nada, em morte envolto.

Hoje vida e consolo; hoje esperança,
Reluta a mente co’o poder da sorte:
Mas não reluta, por lhe ser defeso, (1)
Co’o tremendo poder que vem da morte.

E ela tirana, com seu ferro ervado,
Prostra o mancebo no florir dos anos;
Desfaz a glória de seus sonhos magos,
Sem que vença o porvir de seus arcanos.

Ó morte, és bem cruel! Por que roubaste
O filho pelo qual a mãe suspira?
Por que roubaste o devotado amigo,
Cuja lembrança tanta dor inspira?

Mas ah! que a flor singela da campina
Muitas vezes abate o vento forte,
Como a vida singela do mancebo
Muitas vezes decepa a crua morte!

Tua vida exalou-se, como o incenso, (2)
Como esvai-se da flor o doce cheiro,
Fugiu de sobre a terra como foge
A cristalina fonte de um ribeiro.

Foi unir-se ao Senhor, grato consolo!
Que um prêmio lá no céu tem a virtude;
Foi unir-se ao Senhor, que o céu acolhe,
Quando morre contrita a juventude.

Mas a dor que min’alma dilacera
Quanto é pungente! Que cruel saudade!
Quanto é breve, meu Deus, quanto aflitiva
A vida humana nesta soledade!

Frágil homem, mortal, que és tu no mudo,
No grande espaço do universo solto?
- Hoje vida e prazer; - hoje alegria:
- Amanhã cinza ou nada, em morte envolto.




Comentários
1) e 2) Defeso e incenso. Palavras comentadas noutro local deste livro.
Observação: três espécies de cantos ou poemas havia na antiga Roma recitados nas exéquias de pessoas notáveis: a nênia era declamada ou cantada junto à fogueira, em que se incinerava o cadáver; o epitáfio era gravado sobre a urna; e o epicédio era pronunciado na cerimônia dos funerais, estando o corpo presente. O vocábulo epitáfio ainda tem a mesma significação. A nênia e o epicédio são hoje elegias fúnebres compostas para celebrar ou lamentar a perda de pessoa ilustre e querida (Veja – Olavo Bilac e Guimarães Passos – “Tratado de Versificação” – 135, 136)

Entrevista

Quero pedir-lhe uma coisa.
“Duas e três: diga, peça.”
Não se zangue: dê-me um beijo.
“Tudo farei, menos essa...”

Deixe disso: dê-me um beijo.
“Logo lhe dou, não se vexe.” (1)
É que você não me estima.
“Não diga tal, não se queixe.” (2)

Mas por que não dá-me (3) o beijo?
“Não lh’o dou por ser donzela.” (4)
Pois então dê-me um abraço.
“Bem tola, se caiu nela!”

Nada então você quer dar-me?
“Dou-lhe este róseo botão.”
Somente! nada mais dá-me? (5)
“Dou-lhe mais meu coração.”

Poderei dispor só dele?
“Esta é boa! Por que não?”
Então não tem outro dono?
“Por Deus lhe juro que não.”

Porém... quando dá-me (6) o beijo?
“Quando der-lhe (7)a minha mão.”
Mesmo à face dos altares?
“Deus me defenda! Aí não.”

Ah! já sei, você tem medo.
“Medo, não; vergonha, sim.”
Pois escute: é um segredo...
“Ai beijou-me! Só assim.”

Comentários
1) e 2) o poeta rimou vexe (ê) com queixe. Não é rima perfeita, mas muito usada.
3) Não dá-me. Na época em que José Coriolano poetou, não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: não me dá.
4) Donzela. Emprego no sentido de virgem. Mulher virgem.
5) Nada mais dá-me. Veja nota 3
6) Quando dá-me. Veja nota 3.
7) Quando der-lhe. Veja nota 3.

Só Eu Não Morro

Morre a inocente criança,
Esperanças de seus pais;
Morre a donzela formosa,
Nem coram-lhe as faces mais!

Morre o poeta mimoso
Que em brandos versos cantou
Sua pátria, seus amores,
E tudo que o inspirou!

Dentre o catre (1) da velhice
Sempre querido o ancião,
Deixa o filho inconsolável,
Deixa mais de um coração!

A brisa que sobre a tarde
Vem co’as ramas cochichar,
Se perde no espaço imenso,
Nem pode mais murmurar!

Morre a flor que se embalança
Na linda haste que a sustem,
Tudo morre neste mundo:
Morre a virtude também!

Tudo morre, é bem verdade!...
Mas eu por que vivo sou?
Se as flores e as virgens morrem,
Por elas por que não vou?

Eu irei... é bom que finde
Este leal coração,
Que há tantos anos padece,
Sem achar consolação!

Flores donosas da terra,
Mimosas virgens de Deus,
Não morrei, (2) por vós eu parto,
Lembrai-vos de mim. Adeus!




Comentários
1) Catre. Cama pobre, miserável.
2) Não morrei. Trata-se de imperativo negativo. O imperativo negativo faz-se com o subjuntivo presente: não morrais.

Hino à Tarde


Mas eis a tarde de primores rica!
Em mimos co’a manhã rivalizando.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Marques de Paranaguá

I

Tarde meiga e gentil, se tu não fosses
Mais triste que a manhã, mais melancólica,
Quantas vezes comigo meditando,
Precursora do sol te julgaria!
Mas, depois, atentando em teus langores,
Na dor, na compaixão que em ti transluzem,
Conheço o teu fadário neste mundo
Não es ditosa, - não – e só tens risos
Para o filho infeliz da desventura.
Tarde meiga e gentil, amo-te muito!
Que peito pode haver ingrato e rude
Aos influxos suaves que respiras,
Sem do passado refletir saudoso
Nos dias de prazer que já gozamos!
Ou em que em teu seio, ébrio de saudade,
Não gema e não suspire, e aos tristes olhos
Não mande um pesaroso pranto – amigo!
Oh! sim – eu chorarei, porque meu peito
Às vezes no chorar encontra alívio.
Tarde meiga e gentil, amo-te muito.

Se compassiva os corações tu prendes,
Como nos prende com seu pranto a órfã,
Se a mente em santo arroubo nos enlevas,
Como o riso da virgem pudibunda
Que o selo marca de um sofrer intenso,
Porque da frouxa, dissonante lira
Sentidos carmes te ofertar não devo?
Oh! sim – eu cantarei, porque meu peito
Às vezes no cantar encontra alívio.
Tarde meiga e gentil, amo-te muito!

II

Quanta é bela a manhã, surgindo alegre
Das partes do oriente, em que se arreia (1)
Que formosos listões (2) de fogo e púrpura,
Que sua cor dourada comunicam
Às campinas, à fonte, às cumeadas!
O levantino (3) mar é todo rosas
No seu leito de areia a espreguiçar-se
Oh! quanto a aurora despontando é bela!
Tarde, filha do céu, os teus encantos
Não lhe ficam somenos: (4) tu guarneces
Também as nuvens brancas de escalarte,
Quando além do poente o sol se esconde.
Um manto sobre o mar também estendes
De vermelhos listões também formado.
Vales, campinas, fonte e campanários
Com seu meigo arrebol também matizas.
Se a natureza ri-se (5) com seus raios,
Se bafejam as auras docemente,
Enchendo de fragrância os horizontes,
Também, tarde gentil, no teu regaço,
Ao sepultar-se o sol, as aves trinam,
Suspira a natureza, as auras sopram,
Embalsamando os ares de fragrância.
Em ti se encontra amor, ledice, encanto!
O proscrito, (6) nas lágrimas que entorna,
No teu suave seio alívio encontra;
Encontra alívio aos duros sofrimentos
O desgraçado que de amor padece.
Chora a tarde o extremoso amigo a ausência
Do amigo que no peito traz gravado.
Choram os pais pelos ausentes filhos,
E os filhos pelos pais ausentes choram.
O amante pela amada em dor se fina (7)
E a amada pelo amante em dor consome-se.
Todos carpem à tarde, e acham consolo,
Se da ausência os rigores crus suportam.
Extático (8) o poeta te contempla!
E que idéias tão ternas se associam
Por teu tristonho porte despertadas!
Te semelhas à virgem que suspira,
E como ela também és triste e bela.
Mas na tua tristeza o mel se bebe
Que tranqüiliza os corações que sofrem.
Num triste cogitar se encontra às vezes
Lenitivo, que os males dissipando,
Torna a mente de novo ao seu descanço.
Ó tarde, doce amiga, quanto te amo!
Que vezes me ofereceste desafogo
As saudades que assaz me acompanhavam!
Que vezes dos meus olhos roxeados
Já de muito chorar, mais novo pranto
Arrancaste, a minh’alma consolando,
Que em chorar também há consolo pronto!
E quando esses momentos soidosos (9)
Melancolia só me prodigavam,
Onde soltava os meus gemidos longos
Que “saudades e ausência” só diziam?
Soltava-os nessas sombras que ministras
De copado arvoredo sussurante
Ou no abrigo das penhas que resistem
Aos embates do vento duro e forte.
Ó tarde! – quanto és grata aos que padecem!
Quanto mais tu das trevas te aproximas,
Mais exultam d’alegres dous amantes.

III

Porém, céus! – que feliz coincidência
Mais a tarde enfeitiça no meu canto!
Eu escuto uma voz que me desperta
Na mente altiva pensamentos puros,
No peito nobre sentimentos caros.
Pobre virgem! quem sabe o que ela sofre!

IV

Que belo quadro – agora – além contemplo!
Perto de mim – sereno – se desliza
O meu velho Poty. (10) Como amoroso
Recebe na rugosa e limpa face
Macios beijos das trementes ramas,
Que as margens lhe embelecem de verdura!
Que sons tão meigos! – que trinados ternos!
São canoros cupidos (11) que saudosos
Despedem-se da tarde que se ausenta.
E lá voa também a parda rola (12)
Do movediço galho do mofumbo,
Que deixou de gemer neste momento;
E vai no interior, talvez, da selva
Em procura do esposo que ela adora.

V

Horas propícias, horas de repouso,
Em que o duro trabalho abandonando
O rude camponês, fruir vem mimos
Da linda esposa que na porta espera
E graças infantis, travessos brincos
De tenra prole, que sentada em torno
Da carinhosa mãe, lhe pede um conto,
Uma história de fadas, de Trancoso, (13)
Onde falem pombinhas e outras aves,
A piaba, (14) a sardinha, outros pescados,
E a quem um beijo, uma promessa ilude,
Convidando a dormir – tão crente e pura.
Ó horas de repouso, eu vos saúdo!

VI

Talvez, agora mesmo, além vogando,
Garbosa como um cisne, uma barquinha
Conduza sobre o mar sereno e quedo
Ditoso amante porque aos lares volta,
Depois de haver em doce amigo abraço
Afogado a saudade que o pungia
Ou pode ser que alguém... (talvez que um bardo) (15)
Infeliz chore a perda irreparável
Da prenda que o amava e que constante
Amor lhe merecia do imo (16) peito.
Talvez, que agora mesmo, sobre a laje,
Que dela cobre os restos preciosos,
Ensine, soluçando, às mansas brisas,
Tristes endechas, (17) suspirosas nênias! (18)

VII

Tarde, tarde de amor, que som penoso
Te quebra a placidez do almo remanso,
Prenhe d’inspirações que infudem n’alma
Um sentir que nos lembra a Eternidade?
É o toque do sino que anuncia
A hora angelical: (19) eia... rezemos;
Um momento, sequer, aos céus divinos
Nossa mente se eleve em santo arroubo!
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Só tu, ó tarde, encerra tais encantos!
Ó tarde mais gentil que a manhã bela!

VIII

Já por outro hemisfério o sol radia!
E mal no ocaso seu fulgor vislumbra.
A noite já desdobra sobre a terra
Sombrio véu que a torna erma e tranqüila.
Já tremulam no céu tíbios luzeiros,
Decorando de brilho a azul esfera, (20)
Já rutila saudosa e meiga lua,
Beijando o vale ameno e a flor do lago!

IX

E a deus, ó tarde meiga, um ai recebe
Deste que te cantou.
Sê formosa como é sempre a bonina (21)
Que em ti desabrochou.

Como a virgem que ardente o bardo adora,
Que em teu seio chorou;
Que gemeu, por não vê-lo em teu regaço,
Que tanto suspirou.
E adeus mais outra vez, ó tarde amiga,
Tarde do coração;
Dá-me sempre de amor saudoso pranto,
Dá-me consolação.

Em ti, somente em ti penso nos dias
Passados – que lá vão...
Contigo e só contigo os males choro
Do triste coração.

E adeus, terceira vez, tarde querida,
Meu inocente bem
Outros bardos inspira e prende meiga
Por onde vais – além.

Sem teus amores e perfumes castos
Que gosto a vida tem?
Adeus! – té amanhã: sentidos versos
Sempre inspirar-me vem.

Comentários
1) Arreia. Verbo arrear, ornamentar, enfeitar.
2) Listões. Palavra já comentada.
3) Levantino. Relativo ao Levante (o mesmo que leste).
4) Somenos. Adjetivo. De qualidade inferior.
5) Se a natureza ri-se. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: se a natureza se ri ou se se ri a natureza.
6) Proscrito. Observação neste local deste livro.
7) Em dor se fina. Verbo finar-se, morrer.
8) Extático. Enlevado, maravilhado. Não confundir com estático (que está em repouso, parado).
9) Soidosos. Forma antiquada de saudoso.
10) Poti. Já observado noutro local.
11) Cupidos. Personificação do Amor. Amantes. Não confundir com cupido.
12) Rola. Já observada a palavra noutro local.
13) Trancoso. Aparece na expressão “História de Trancoso”. Afrânio Peixoto escreveu nas notas ao seu romance “Bugrinha”: “Outro livro que Portugal e o Brasil conheceram e vão esquecendo injustamente, “Contos de História e Proveito e Exemplo”, muito popular em tempo, entre as nossas populações rústicas. Além de livro de leitura e edificação, trazia, apensas, regras de urbanidade e polícia moral, com que educava nas boas maneiras. Várias vezes ouvi, na minha infância o ditado: - São histórias de Trancoso – como cousa difícil de ser acreditada, pela piedade e bom regimento, ironia do povo ao ingênuo autor que lhe encantou e sujeitou a infância, contando-lhe aventuras para proveito e exemplo, para os fazer pessoas prudentes e graves, o que é sempre aborrecido e molesto. Ao bom Gonçalo Fernandes Trancoso deu recente e merecida ressurreição o mais formoso volume da “Antologia Portuguesa”, que dirige o sábio Agostinho de Campos (Lisboa, 1921)”. (“Bugrinha) – pág. 350).
14) Piaba. Peixe de água doce. Peixe pequeno.
15) Bardo. Poeta.
16) Imo. O mais profundo.
17) Endechas. Palavra comentada noutro local.
18) Nênia. Palavra comentada noutro local.
19) Hora angelical. Angelical é o mesmo que angélico. Relativo aos anjos. Hora angelical é a hora do ângelus, oração em honra ao mistério da Encarnação. Toque do sino que indica aos fiéis o momento de recitar tal oração, no fim da tarde.
20) Azul esfera. O firmamento.
21) Bonina. Planta dos prados.


A Rola e o Gavião

Estava a rola em seu ninho,
Quando aponta um gavião, (1)
Que já tinha um borrachinho (2)
Roubado a seu coração.
“Que vem ver, ave inimiga?
Não basta o que sofri eu?
Talvez mui (3) breve se diga:
A triste rola morreu!”

- Rola – lhe diz o tirano,
Dá-me esse pobre pagão; (4)
Ficarás em paz este ano,
Todo o resto da estação – (5)
Diz-lhe a rola: “Ave inimiga,
Dize: que mal te fiz eu?
Talvez mui breve se diga:
A triste rola morreu!”

- Dá-me, inocente, mesquinha,
Dá-me teu filho, se não (6)
Eu juro comer asinha (7)
Filho e mãe sem distinção –
“Paciência, ave inimiga,
Foi este o destino meu!
Talvez mui breve se diga:
A triste rola morreu!”

E a cruel ave despreza
As queixas que ouvia em vão:
Filho e mãe faz sua presa,
Come-os com sofreguidão
E voando a ave inimiga,
Pra sempre o ninho esqueceu!
Porém há tanto quem diga:
A triste rola morreu!

Comentários
1) Gavião. Ave de rapina.
2) Borrachinho. Diminutivo de borracho. Diz-se de borracho do filhote do pombo. José Coriolano empregou a palavra como filhote da rola. Silveira Bueno leciona que borracha, latim burrago, burraginis, derivado de burra, pele, era vasilha para líquidos, garrafa. Mas na borracha também se colocava vinho e daí se chegou a noção de bêbedo que se vê em borracho: cheio de vinho. O filhote de pombo – borracho – se prende a burra, pele, “mas sobre outro aspecto, sob o aspecto da cor: a pele nova é vermelha e a lã avermelhada, não clara, também era chamada burra. O borracho então, filhote de pombo, tem tal nome já pela cor da pele e também porque, em geral está gordinho, cheinho”. (“Questões de Português” – 1ª série – 68, 69).
3) Mui. Já observado noutro local.
4) Pagão. Empregado no sentido em que não tem padrinho, desprotegido.
5) Estação. Cada uma das quatro partes do ano, diferentes pelas condições de temperatura (primavera, verão, outono e inverno).
6) Se não. Separados os dois elementos quando significa caso não, como no texto.
7) Asinha. Não se trata de diminutivo de asa, mas do advérbio depressa, sem demora, antiquado.

A Morena

Estende no cavalete (1)
O pintor a branca tela,
Já lhe transborda a paleta (2)
De alambre, (3) jambo (4) e canela. (5)
Não é a Vênus (6) dormindo,
Nem também do mar saindo,
Que o quadro vai animar:
É a morena mimosa,
De face tão setinosa,
De tão mavioso olhar!

Dá vida, pintor, à tela,
Empunha, poeta, a pena:
Ei-la! Que moça tão bela!
Que encantadora morena!
Não sombreiam suas faces
Rubim e corais (7) vivaces (8)
Sobre um tez de marfim;
Mas nas faces tem a musa (9)
O garbo de uma Andaluza, (10)
As graças de um Serafim.

Painel soberbo! – nas aras
Profanas de tempo adusto,
Belezas assim tão raras
Valem mais que heróico busto.
Marca o guerreiro o nome
No batalhar que o consome
Entre lagos de cruor;
A tua glória, morena,
É perfumosa e serena
E grata como a da flor.

Sobraçara Homero (11) a harpa (12)
Para tecer-te odisséias, (13)
Te invejara a breve charpa
Essa mãe do pio Enéas, (14)
Ossian (15) no seu alaúde
Te consagrara não rude
Um belo canto escocês; (16)
E até das azuis campinas
As plêiadas (17) peregrinas
Te cobiçaram a tez.

De alambre, jambo e canela
Extrata, (18) pintor, as tintas,
Extrata, e anime-se a tela
Com essas cores distintas.
Na tela o pincel, na história
Do bardo a pena, - que glória!
Vão-te a cor eternizar:
Tu es na terra, morena,
Fadada, como a Sirena (19)
Nos régios paços do mar.




Comentários
1) Cavalete. Armação de madeira, que lembra o cavalo.
2) Paleta. O mesmo que palheta. “Tabuinha delgada, geralmente oval, com abertura para o polegar da mão esquerda, utilizada pelos pintores para dispor e combinar as tintas” (Nascentes).
3) Alambre. É o âmbar. Resina fossilizada. Cor amarela.
4) Jambo. Fruto. De cor loura, esbranquiçada, ou tirante a cor da gema do ovo.
5) Canela. Árvore e especiaria. Cor alourada.
6) Vênus. Da mitologia. Deusa da beleza e do amor, nasceu da espuma do mar.
7) Corais. Concreção calcária e ramosa, geralmente vermelha.
8) Vivaces. O mesmo que vivazes. Vivace é forma antiquada.
9) Musa. Emprego no sentido de mulher inspiradora de um artista.
10) Andaluza. Mulher da Andaluzia, capital Sevilha, na Espanha. As mulheres andaluzas são atrativas, têm algo secreto nos olhos, nos gestos, na personalidade. Inspiraram grandes pintores.
11) Homero. Poeta épico grego cuja vida, desde o século VI a.C., tem sido assunto de lendas. Diziam-no cego. A ele são atribuídas as duas grandes epopéias “Ilíada” e “Odisséia”.
12) Harpa. Instrumento musical de cordas, forma triangular.
13) Odisséia. Título da epopéia de Homero. O poeta empregou odisséia como viagem cheia de aventuras extraordinárias.
14) Enéias. Príncipe troiano, filho de Vênus e de Anquises, herói do poema “Eneida”, de Virgílio. Combateu corajosamente os gregos durante a guerra de Tróia. Aportou ao Lácio, território dos latinos. Daí nasceram Roma e a Itália.
15) Ossian. Herói e poeta da Escócia (século III).
16) Escocês. Natural da escócia. A mais setentrional das três partes das Ilhas Britânicas, ao norte da Grã-Bretanha.
17) Plêiadas. Também plêiades. Designação geral das sete filhas de Atlas e de Plêiona. metamorfoseadas em estrelas.
18) Extrata. Verbo extratar, extrair.
19) Sirena. É o latim sirena, que, pelas transformações fonéticas normais, passou a sereia, ser mitológico, gênio feminino malfazejo, representado geralmente na forma de peixe, com cabeça e peito de mulher. Os primitivos navegadores acreditavam que a sereia, que diziam ter canto mavioso, atraía os marujos para o mar, onde morriam afogados.

A Canção do Serrano (1)

Deus Senhor compadecido
Nossas preces atendeu;
A seca que ameaçava.
Dentre nós despareceu. (2)
Graças a Deus, temos chuva!
Graças a Deus já choveu!

Eia, meus filhos, partamos,
Vamos à serra plantar,
Vamos as perdas passadas
Este ano recuperar:
Milho, arroz, feijão, farinha,
Teremos tudo a fartar.

Agora a seca arrebenta,
Coragem! Meus filhos, fé!
Teremos bastante chuva,
Boa safra de café.
Graças à Virgem Maria,
Louvores a San’José. (3)

Esta noite ouvi a porta
Muitas vezes estalar;
Esta noite a rã esteve
Constantemente a raspar... (4)
São sinais de bom inverno:
Vamos, rapazes, plantar.

Também reparei que à noite
Esteve a relampejar
Para as partes do nascente, (5)
Toda noite num cortar!
É sinal de bom inverno:
Vamos, rapazes, plantar.

Vamos, que a vida da serra.
Tem primores que mais não!
Nosso peito se dilata,
Bate alegre o coração
Quando chega o fresco inverno
E foge o quente verão.

É belo à tona da terra
Ver-se o legume brotar;
É belo vê-lo ir crescendo,
Crescendo até se fechar;
É belo em manhã serena
Na roça se passear.

E quando o milho começa
No roçado a pendoar, (6)
E depois de pendoado,
Principia a bonecrar, (7)
E as vberdes, lindas bonecas
Começam d’encabelar... (8)

Oh! que então nada no mundo
Eu jugo tão belo assim!
Pode ser lá para os outros,
Mas, não é cá para mim;
Nos gostos não há escolha:
Não há nada bom, nem ruim.

Disse, digo e direi sempre:
Nada me sabe agradar
Como a vista deleitosa
D eum roçado a verdejar!
E como as loiras espigas (9)
Ao lume assando a estalar!

Quando um atilho (10) de espigas
De milho trago na mão.
Ou no ombro atravessado,
Julgo-me mais que um barão! (11)
Não troco a vida da serra
Pelo viver cortesão.

Não invejo o pão das praças,
Pois temos a nossa aipim; (12)
Não há nada tão gostoso
Como o nosso gergelim, (13)
Como a nossa tapioca (14)
E o beiju (15)co’o mondobim. (16)

O queijo também o temos;
Que nos vem lá do sertão;
Nada nos falta, meus filhos,
Temos tudo em profusão,
Não troco a vida serrana
Pelo viver cortesão.

Socorro-nos Deus com chuva,
Que tudo vai bem assim:
Pra completar nossos gozos
Vem a moagem (17) por fim,
A rapadura, (18) a batida (19)
E o enroscado (20) alfinim. (21)

Não invejemos a vida
Que desfruta o cortesão:
Somos aqui poderosos,
Somos nobres que mais não:
Temos a enxada por cetro, (22)
O machado por brasão. (23)

Eia, meus filhos, partamos,
Vamos à serra plantar,
Vamos as perdas passadas
Este ano recuperar:
Pois que o timbre do serrano
Consiste no trabalhar.




Comentários
1) Serrano. Pessoa que habita as serras.
2) Despareceu. O mesmo que desapareceu.
3) São José. Esposo de Maria, mãe de Jesus. Ocupava-se no ofício de carpinteiro. Viva em Nazaré. Parece que morreu antes da crucificação de Jesus, pois não se houve falar dele em companhia das mulheres que estavam junto à cruz do Calvário. Também Jesus não teria recomendado sua Mãe aos cuidados do apóstolo João, se José ainda vivesse.
4) A rã esteve a raspar. Penso que raspar aqui está como sinônimo de arranhar, tocar mal, causar sensação desagradável ao ouvido.
5) Nascente. Ponto do horizonte donde parece surgir o sol.
6) Pendoar. O mesmo que apendoar, guarnecer de pendões. Botar pendão (o milho).
7) Bonecar. Derivado de boneca, espiga de milho em flor.
8) Encabelar. Criar cabelos. Referência aos cabelos da espiga de milho.
9) Espiga. É a parte do milho que termina o colmo e contém os grãos. Latim spica.
10) Atilho. Feixe de espigas de milho.
11) Barão. Título dignitário. Homem ilustre.
12) Aipim. Dos tipos de mandioca (raiz de Jatropha Manihot Euphorbiacea, da qual se faz a respectiva farinha). Dois tipos são comestíveis: a mandioca amarga (Manihot uitilissima), com que se fabricam a farinha de mandioca, beijus, polvilho etc, e o aipim ou aipi (mandioca doce, mandioca mansa ou macaxeira), que se usa cozido, assado ou frito, em bolos etc.
13) Gergelim. Já por variada forma se grafou este nome: gerzelim, zirgelim, gingilim, girgelim,jingeli, gegeri. Fixada a grafia gergelim. Planta da Índia. Bem secas as sementes, torradas, socam-se no pilão com farinha de mandioca, sal e açúcar, ou só farinha e sal, “e dão um prato de cheiro e gosto deliciosos”.
14) Tapioca. Alteração de tipioca. De tipiog (tipioca) em Batista Caetano. Trata-se da farinha de tapioca, que é a goma de mandioca umedecida e preparada, e que fica granulosa.
15) Beiju. Também beju, biju. Há muitos tipos de beijus. É o bolo de massa de mandioca ou da tapioca. Do tupi mbeiú, o enroscado, o enrolado.
16) Mudubim. Na classificação de Lineu, arachis hippojoea. As sementes são comidas cruas ou torradas. Acreditam-se que sejam afrodisíacas. Fornecem óleo para uso culinário e farmacêutico. Leio em Macedo Soares: “A sua celebridade consiste no seguinte: depois de fecundado o ovário, o pendúnculo da flor dobra-se procurando a terra, crescendo até penetrar no chão, onde o fruto desenvolve-se e amadurece”. José Coriolano grafou mudubim, mas a palavra tem variada grafia: mandubi, mendubi, mendobi, mendobim, manobi, mundubi e outras. Fixou-se amendoim, por intercorrência de amêndoa. A palavra provém do linguajar indígena: mandubi ou manduí.
17) Moagem. Ato de moer. O autor faz referência à época de moagem da cana-de-açúcar.
18) Rapadura. Açúcar de tipo inferior, produzido sob a forma de tijolos ou blocos de qualquer formato.
19) Batida. Tipo de rapadura, alvo, não em forma de tijolos.
20) Enroscado. O mesmo que enrolado. Dobrado em roscas.
21) Alfenim. No vocabulário de Mario Sette (“Arruar”) está alfenim com esta definição: “Substantivo masculino. Confeito alvíssimo, sólido mas delicado e quebradiço, muito agradável ao paladar, preparado com melado, que se deixa ao fogo até atingir um ponto especial, quando, então, se retira a massa do fogo, estendendo-se sobre um mármore ou qualquer outra superfície fria. Depois de parcialmente esfriada, puxa-se a massa com as mãos polvilhadas de goma, até alvejar e solidificar, podendo-se antes, dar-lhe as mais variadas formas”.
22) Cetro. Bastão de comando – uma das insígnias da realeza. Poder soberano, Coriolano empregou cetro em sentido figurado.
23) Brasão. Conjunto de insígnias que compõem o escudo de armas de um país, de uma cidade, de uma corporação, de uma família. Honra. Empregado em sentido figurado.

Mudanças

Mudou-s o sol que despontava rindo,
Desmereceu-lhe a luz, perdeu o brilho,
Embaçado por grossas, pardas nuvens,
Já não difunde raios!

A meiga aurora já não tem primores,
Matiz os campos, nem frescura os vales,
Murcharam as belezas d’outro tempo,
Que os olhos atraiam!

Não é mais estrelado o céu da noite,
Por crepes (1) nebulosos sempre envolto,
Não mostra mais em tela acetinada
Da lua o branco disco!

Sob o manto sombrio da tristeza,
Só quebrando a soidão (2) piar sinistro
D’aves mil (3) agoureiras, (4) são as noites,
Meu Deus, tão merencórias!

Já não cicia no arvoredo a brisa,
Nem além rumoreja o bosque espesso,
Já não serpeiam límpidos regatos
Nem sussurra a cascata!

Deixaram de trinar os passarinhos,
Secaram colos (5) e vergéis e prados,
Tudo, tudo mudou-se, a natureza
Vai regressar ao nada!

Já balouça o vento as verdes copas
As flores não disparsem mais perfumes!
Quem uma tal mudança produzira,
Eu bem saber quisera!

Mas, ah! nada mudou-se (6)– eu só me iludo!
Meus olhos, sim, mudaram-se de tristes:
Tudo existe no estado primitivo:
Eu somente mudei!

Ainda fulge o sol e do levante
Surgindo, ri donoso e luz do mundo,
É a aurora serena, e meiga ainda,
Os horizontes doura.

De estrelas coruscantes é juncado
Ainda o céu de anil, onde passeia
A branca lua, que um lençol de prata
Estende sobre a terra.

São as noites tranqüilas, não as cobrem
Tristes mantos que induzam tristes cismas: (7)
Sob a mangueira lá suspiram langues
Dois amantes felizes.

A brisa no arvoredo ainda cecia,
Ainda rumoreja o bosque espesso,
Serpeiam os regatos com doçura,
Ainda rui a cascata.

O vento ainda balança as verdes copas,
As flores ainda exalam seus perfumes,
Tudo existe no estado primitivo,
Eu somente mudei-me!

Ainda as aves docemente trinam,
Só meus olhos de triste se mudaram,
Vendados da incerteza nada enxergam,
Lânguidos sem vida!

Desgraçado de mim que tudo vendo,
Da paixão ofuscado nada vejo;
Se a brisa me bafeja murmurosa,
Rijo tufão concebo!

Ah! triste condição é do amante
Que, vendo, nada vê de quanto o cerca,
Embora tão patente como o lume
Que o sol derrama a pino!

E assim vivo, ó meu anjo, ó doce amada,
Deslumbrado co’a luz desses teus olhos,
Que rompendo a amplidão imensa e vasta,
Minha razão ofuscam!

Comentários
1) Crepes. Emprego em sentido figurado: cor negra.
2) Soidão. Solidão. Já observada noutro local a palavra.
3) De aves mil. Mil, quando proposto, indica grande quantidade.
4) Agoureiras. Agoureiro; que faz mau agouro. Agouro é predição supersticiosa.
5) Colos. Observação noutro local deste livro.
6) Nada mudou-se. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.
7) Cismas. Receio supersticioso. Meditação. Neste sentido é feminina. Cisma no masculino significa desacordo, desunião. Rebelião pela qual as pessoas se separam da sua religião.

Eugênia Belém

E

Narciso Cordo

Na primavera dos anos
Era Eugênia tão formosa
Como a branca estrela d’alva,
Como a redolente rosa.

Seu casto peito era templo
Desses singelos amores,
Que o doce lar perfumando
Se matizam de mil cores.

A núbil, formosa virgem
Era a fadinha (1) do campo,
Colhia flores de dia,
E de noite o pirilampo. (2)

Nunca a paz lhe pertubaram
Aflições, nem dissabores,
Nem as faces setinosas
Envergonhados rubores.

Antes de pegar no sono
A menina encatadora
Inocentinha, arroubada
Se encomendava à Senhora. (3)

E descuidosa e indolente
Andava pela campinas
A perseguir borboletas,
A colher sempre boninas.

Mas eis que topa com ela
Apaixonado Narciso;
Vê-la, amá-la, desposá-la
Foi todo o seu paraíso.

Contava Eugênia três lustros, (4)
E quatro seu belo esposo;
Que vida cheia de encanto!
Que lindo par venturoso!

Dois meses eram passados
Depois da celebração
Das bodas (5) afortunadas,
De tão ditosa união.

Quando o déspota Solano (6)
Contra o Brasil move a guerra, (7)
E do par que jubilava
Toda a ventura desterra.

Não! que no peito do esposo
Pulsa um coração ardente,
Que geme da pátria amada
O mal, o p’rigo (8) iminente.

Ei-lo, la vai para a guerra
Viver vida amargurada;
Que despedida custosa!
Que dura ausência chorada!

Voluntário! Deus te escute
Nesses campos pantanosos,
Que voltes ao lar querido
Trazendo troféus honrosos.

________

Bem poucos meses são idos
Depois que partiu-se o bravo,
A granadeira (9) troveja
E já prostra tanto escravo!

Que soldado ali peleja
Nesse ardido atrevimento?
Co’o a baioneta calada (10)
Vale mais que um regimento!

Quem há de ali, senão ele,
Batalhar com ar de riso
E dando vivas à pátria,
Quem há de, se não Narciso!

Sibilam, zunem-se as balas,
Sem a fronte lhe ferirem,
Outras sente desdenhoso
Aos pés – humil (11)– caírem!

Porém que Narciso é este
Que assim às balas sorri?
- Um voluntário da pátria
Das margens lá do Poti.

Belicoso campesino,
Quem te instruiu nas batalhas?
Quem nos lábios debuxou-te
Este desprezo às metralhas?

Nunca um passo recuaste,
Nunca temeste o inimigo!
Quem pela pátria combate,
Não teme, arrosta o perigo.

É que por ti uma santa,
Tua esposa noite e dia,
Reza de joelhos chorosa
À Virgem Santa Maria.

Reza, reza, boa Eugênia,
Pela pátria e pelo esposo;
O céu nem sempre é nublado,
Nem sempre o mar tormentoso.

Espera, que a fé é base
Da consoladora esp’rança; (12)
Espera! À negra procela
Que vez sucede a bonança!

Que nação há aí possante
Que na sua juventude
Haja ceifado iguais louros
Com tanto garbo e virtude?

Minha pátria, o mundo culto
Para vós se volta atento,
Pasma! Admira a vitória
Dessa batalha incruenta.

Por terra e mar que triunfos!
Quanto é sublime e quão belo
Ver Pedro (13) em Uruguaiana, (14)
Barroso (15) em Riachuelo! (16)

Heróis já tão conhecidos
Nas matas de Tuiuti, (17)
Como Curuzu (18) tomaram,
Tomarão Curupaiti. (19)

A aurora lá se apavona,
O dia bem perto está
Em que render-se há por força,
Ou por vontade Humaitá. (20)

Há de ser nossa a vitória
De Francia (21) vergôntea ímpia!
Tão certa, oh sim, como a aurora
Ser precursora do dia!

__________

- É meia noite! ela dorme
Na rede sosinha ali...
Nem sonha ver-me disforme...
E eu dela tão perto - aqui!
Dorme talvez descançada,
De um doce sonho embalada,
Que lhe sorri traiçoeiro
Como a brisa suspirosa
Que sussurra perfumosa
Nas ramas do pequizeiro. (22)
Oh sina mesquinha, avara
Para a pátria e para mim!
Quando ela nunca pensara
De me ver voltar assim!
De não lhe dizer na volta:
“Eugênia, engrinalda a fronte,
Teu riso angélico solta,
Saúda o novo horizonte!
Caiu sob o gládio invicto
Da tríplice – ultriz aliança (23)
Esse tirano maldito,
Novo Rosas (24) na pujança.”
Mas quanto o mortal se ilude!
Tudo lhe sai ao contrário!
Real somente a virtude.
É toda mágua e fadário
Este pélago (25) profundo
De Circes (26) cheio – este mundo!
São fados – quem lhe resiste?
Fortuna... sorte... destino...
Nume impiedoso e ferino,
Para mim nunca sorriste!
Hoje alegre? – amanhã triste...
Depois feliz? – mais adiante
Liba-se o cálice feleo, (27)
E o lábio que não repele-o,
Traga-lhe o amargor num instante!
Mas porque gemo queixumes,
Quando já libo os perfumes
Deste lar que é todo meu?
Inválido! – Embora. E ela...
Tão meiga, tão pura e bela...
Quem sabe quanto sofreu! –
________
Guerreiro que te bateste
Nos campos do Jatai, (28)
Que as hostes bravo venceste
Nas matas do Tuiuti,
Que o braço esquerdo perdeste
No ataque a Curupaiti,
Esta demora é funesta
A ela e fatal a ti.

______

- Pan, pan, pan!
- Meu Deus, quem bate
Tão tarde, a tal hora aqui!
- Pan, pan, pan!
- Já meia noite
Gemeu o meu Jacamim! (29)
- Pan, pan, pan
- Acorda, Firma,
Vem te deitar junto a mim.
Ouviste bater lá fora?
Alguém perdeu-se n aestrada.
Ó lá de dentro, (30) pousada
Ao pobre infeliz perdido!

- Meu Deus, bater-se a tal hora,
Depressa, Firma, o vestido,
Oh! vamos, é dever nosso
Dar pousada ao peregrino,
Vamos, negar-lh’a (31)não posso,
Repare se dorme Nino.
Dorme, mana, (32) o coitadinho.
Ei-lo! Parece um anjinho!
E o peregrino?... – É verdade!
Lá fora... ao frio... tão tarde!

- Sim, vamos abrir-lhe a porta.

_______

A noite estava sombria
E derramava a luz morta
Da lua que se sumiu.
Abriu-se a porta.
- Senhora,
Não tema sair cá fora,
Bem sei que é fora de hora,
Que a lua além se ocultou;
Não tenha de mim receio;
Honra, dever e virtude
Me foram da vida esteio
Em toda vicissitude,
Meu ser se não transformou.
Nunca fiz mal neste mundo
A ninguém nunca farei;
Voto respeito profundo
Tanto à donzela mimosa,
Como à velhice rugosa;
Se fiz algum mal... não sei!
Se meu coração a fundo
Conhecesse, ah! – saberia
A fada destas campinas,
Destas virentes colinas,
Quanto dó (33) mereceria
Este pobre sem ventura,
Que oscila... gemente aqui!
Que deixou sem sepultura
Lá junto a Curupaiti,
Um braço á bala arrancado!
Senhora, o pobre aleijado
Vem de longe... dessa guerra,
Onde se vê rubra a terra
Do sangue dos nossos bravos
Derramados por escravos
Ao jugo desse Lopes,
Desse déspota e tirano,
Que recrudesce cad’ano,
Que tantos males nos fez,
E que está fazendo aos nossos
Com traições, torpedos, fossos; (34)
Na protérvia, (35) na bruteza
Tigre sangrento e faminto
Do sangue da pátria tinto;
Aborto da natureza!
Reflete no horrido sonho
A satânica (36) maldade
Que do coração ferrenho
Mostra toda a feridade.
Engenho perverso e vil
Tão fatal à humanidade,
E sobretudo ao Brasil!

- Entre senhor, nesta choça
Não se despede ninguém,
Pois é obrigação nossa
Acolher a todos bem.
Dê-me notícias da guerra,
Se é que da guerra vem.

- Venho, senhora, da terra
Que nos tem a paz roubado,
Porém estou fatigado;
Depois que o braço perdi,
Ando tão desajeitado,
Que sinto no andar enfado,
Cousa que nunca senti!

- Perdeu então o seu braço
N’algum encontro, senhor?

Oh sim! voou pelo espaço
No ataque a Curupaiti.
Não tenho dele saudade,
Pois pela pátria o perdi;
E até co’a horrível dor,
(Foi talvez do céu vontade)
Estranho prazer senti,
Prazer de novo dulçor!

________
- Agora que descançastes,
Dizei-me se lá na guerra
Vistes alguém desta terra,
Das margens cá do Poti?
- Conheci, senhora, um bravo,
Filho aqui desta ribeira,
vi-o sempre na fileira
combatendo o guarani. (37)
Era casado, e vi muito
No ardor do márcio (38) conflito
A esposa chamar aflito
E a cara pátria também.
- E o nome, senhor, do bravo
Da esposa o nome também?
- Se acaso bem me recordo...
O dele... Narciso Cordo,
O dela... Eugênia Belém.

______

Eis ali o par ditoso,
Jovem, lindo, afortunado,
Em doce abraço enlaçado,
Em mudo enlevo de amor!
Soluça agora de gozo
A lembrança dessas máguas,
Dessa ausência, dessas fráguas
De fogo tão queimador!
Deixa-los: findo o transporte
Voltarão depois à vida;
Que meiga fase sentida
Dos lábios lhes brotará!
Das saudades a coorte (39)
Dos suspiros na vanguarda
Desertaram desta quadra, -
Onde o amor só reinará.

_______

- Vês, Eugênia, este maneta (40)
Tão feio que causa dó,
Mas não se parece ainda
De Eugênio co’o Manquitó. (41)
Perdeu pela pátria o braço,
Feliz por perde-lo só,
Feliz por ti, por mim nunca,
Pois fora melhor morrer
Para salvar nossa pátria,
Do que vê-la ainda sofrer.

- Amigo, eu sinto que a bala
Te houvesse o braço levado;
Porém Deus, que é previdente,
Que cura o mal que pressente,
Nos há bem recompensado:
Por um braço que perdeste,
Dous braços, Narciso, achaste!
Vem cá, - vês este menino?
Repara – quanto é celeste!
- Tão belo!
- Se chama Nino.
Dous braços nele encontraste;
Se a bala um dos teus roubou-nos,
Com dous o céu compensou-nos!

- Te lembras? – quando partiste
Me deixaste de esperanças...
Entre dores e lembranças...
E o amargo pranto, tão triste!
O pobre Nino nasceu!
Dous anos breve (42) completa;
Narciso, é a tua imagem!
Sabido! A sua linguagem
Já parece desse atleta
Que à cara pátria volveu!

- Oh! quanto sou venturoso
Por tanta felicidade!
Do amor da cara metade (43)
Encontro o melhor penhor!
Cresce, meu anjo formoso,
Cresce meu futuro bravo;
Livrarás – quem sabe? – o escravo
Das mãos do cruel senhor.

- Cresce, cresce, meu menino,
Cresce, cresce para o bem;
Vale Deus em teu destino
E teus pais Cordo e Belém.

_______

- Amado, meu bem Narciso,
Como é bele esta deveza!
Repara na natureza,
Mais graça nela diviso!
A precursora do dia!
Nas novas galas que muda,
Que pompas, que louçania!
Como a flor é mais cheirosa!
Como alegre o passarinho
A meiga aurora saúda
Cantando sobre o raminho!

- Minha Eugênia, esta ventura
Só Deus a fez para os pobres,
Pois no torreão (44) dos nobres
Reina a soberba e o festim,
Mas aqui nesta fragura,
Onde demora a cabana,
Para Deus temos hozana!
Perfumes tem o jasmim.
- Quando com a foice aguçada
Descer o anjo à cabana
Montado no seu corcel,
Não chores por mim amada,
Mas antes entoa hozana
Ao santo Deus de Israel. (45)

- Lá onde tudo é doçura,
Onde tudo é poesia,
Onde se goza a ventura
Sem mescla de desprazer,
Lá nos veremos um dia
Nessa região feliz,
Onde se vai reviver!
Lá unirei o meu peito
O bravo Francisco Luiz; (46)
Herói, Eugênia, perfeito,
Filho deste Piauí, (47)
Onde nasceste e nasci.
Morreu de balas passado
A vinte e dous de setembro,
O corpo todo crivado...
Sem ter inteiro um só membro!
Outro mais bravo não vi!
Saudades à sua memória!
Foi neste ataque intentado
Sem fruto a Curupaiti,
Porém famoso na história,
Onde também teu Narciso
Perdeu o seu braço, - glória
Para nós, - pra outros risos!

- Eu e tu e o nosso Nino,
Firma também, nossos pais,
Nossos parentes e amigos,
Lá nos céus seremos tais!
Lá se goza de uma vida
De delícias sem iguais!
A vida lá tem prazeres,
Que não desfrutam mortais!
Ame-se a pátria, a virtude,
Que gozos lá perenais!

- Mas em quanto o alto destiono
Nos não desviar da rota...
Façamos do nosso Nino
Um guerreiro, um patriota.

- Cresce, cresce bom menino,
Cresce, cresce para o bem,
Vele Deus em teu destino,
E teus pais Cordo e Belém.


Comentários
1) Fadinha. Diminutivo de fada, que é ente sobrenatural com o poder de predizer destinos e fazer encantamentos. Por extensão, mulher formosa, assim empregado pelo poeta.
2) Pirilampo. Do grego piro, fogo, e lampo, facho, do verbo lampein, brilhar. Pirilampo, que brilha como fogo. O mesmo que vaga-lume. Melhor seria pirolampo, pois o o é a vogal de ligação de elementos gregos, mas entrou no hábito da coletividade pirilampo.
3) Senhora. Nossa Senhora.
4) Lustro. Período de cinco anos.
5) Bodas. Casamento, núpcias.
6) Solano. Solano Lopez, ditador do Paraguai.
7) Guerra. Referência à Guerra do Paraguai, que principiou em 1864.
8) P’rigo. Perigo. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
9) Granadeira. Conjunto de granadas. Granada é explosivo.
10) Baioneta-calada. Baioneta é arma de aguda ponta que se adapta à extremidade do cano da espingarda, do fuzil. Muitos dicionaristas apontam como origem o francês bayonnette. Tirado da cidade francesa de Bayonne, onde a arma foi fabricada pela primeira vez. Baineta-calada: posta em posição para investir contra o inimigo.
11) Húmil. O mesmo que humilde.
12) Esp’rança. Esperança. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
13) Pedro. Pedro II, imperador do Brasil, que chegou a Uruguaiana em 11-9-1865.
14) Uruguaiana. Cidade ocupada por tropas paraguaias (Rio Grande do Sul). Uruguaiana foi cercada por tropas brasileiras e uruguaias. As tropas paraguaias renderam-se.
15) Barroso. Almirante Francisco Manuel Barroso da Silva, comandante da esquadra brasileira na Batalha do Riachuelo (Guerra do Paraguai).
16) Riachuelo. Arroio Riachuelo. Batalha do Riachuelo ganha por Barroso (11-6-1865 – Guerra do Paraguai).
17) Tuiuti. Ganha batalha ganha pelos aliados (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai (24-5-1866).
18) Curuzu. Pequena fortaleza paraguaia tomada pelos brasileiros no dia 3-9-1866.
19) Curupaiti. Batalha de Curupaiti. Primeira derrota de argentinos ,brasileiros e uruguaios na guerra do Paraguai. Setembro de 1866).
20) Humaitá. Doze meses de duração as lutas pela posse de Humaitá na Guerra do Paraguai. Foi ocupada pelas tropas aliadas.
21) Francia. José Gaspar Rodriguez Francia, chamado Dr. Francia. Fundador da independência do Paraguai. Ditador. Nasceu em 1776 e faleceu em 1840. Ditador vitalício. Alcunhado El Supremo, governou até morrer. Grande estadista e déspota intransigente. Fortaleceu a economia paraguaia.
22) Pequizeiro. Veja pequi, noutro local deste livro.
23) Da tríplice – ultriz aliança. Referência à aliança do Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, na Guerra do Paraguai. Ultriz quer dizer que vinga. Aliança vingadora.
24) Rosas. José Manuel Rosas (1793 – 1877). Soldado e trabalhador em fazendas de gado. Com o tempo e depois de muitas lutas tomou conta do governo de Buenos Aires. Deixou o governou e foi a ele chamado novamente.o seu poder foi ratificado por um plebiscito. Passou a governar despoticamente. Muitos foram fuzilados. Vários paises assumiram posições contra ele Buenos Aires foi bloqueada. Derrotado pelos brasileiros na batalha de Monte Caseros.
25) Pélago. Veja pego noutro local.
26) Circe. Feiticeira que transformou em porcos os companheiros de Ulisses, quando este aportou à sua ilha, para que o herói permanecesse mais tempo junto dela. Por vezes se faz referência a essa transformação para aludir a pessoas que embruteceram ou perderam as boas maneiras.
27) Féleo. Relativo a fel. De fel.
28) Jataí. Combate de Jataí. Encontro da Guerra do Paraguai (17-8-1865), decisivo para a sorte do general Estigarribia. Argentinos, brasileiros e uruguaios derrotaram o Paraguai.
29) Jacamim. Também jacami. Ave dos campos, de canto singular. Do tupi já-acan-mim, o que tem cabeça pequena, ou já-acan-mii, aquele que move a cabeça.
30) Ó lá de dentro. Modo, no interior, de chamar alguém.
31) Negar-lha. O lha é combinação dos pronomes lhe e a: negar a ele (lhe) a pousada (a).
32) Mana. O mesmo que irmã.
33) Quanto dó. Como compaixão, tristeza, dó é palavra masculina.
34) Fossos. Empregaod no sentido de fortificação, entrincheiramento.
35) Protérvia. Insolência, desaforo, desavergonhamento.
36) Satânica. Derivado de satã, o mesmo que satanás, diabo. Satanás em hebraico é satan.
37) Guarani.de guá igual a guá (hár), o guerreiro, e rani igual a rini,os que guerreiam ou estão guerreando. Primitivamente – lembra Romão da silva – aplicou-se este nome a um dos grupos avançados da grande família lingüística americana, que ocupava o delta do rio Paraguai, e com que primeiro estabeleceram contato e comércio os conquistadores. Mais tarde passaram a chamar assim todos povos afins da bacia do Prata (veja “Denominações Indígenas na Toponímia Carioca” – 138). Guarani é o mesmo que paraguaio.
38) Márcio. Derivado de Marte, deus da guerra, na mitologia.
39) Coorte. Porção de gente armada. O poeta empregou figuradamente como grande quantidade.
40) Maneta. Que não tem um braço.
41) Manquitó. Que manqueja. Coxo.
42) Breve. Adjetivo empregado como advérbio: brevemente.
43) Cara-metade. A esposa com relação ao marido. A palavra cara, na expressão, vale querida, amada. O povo, porém, vê cara como dispendiosa.
44) Torreão. Torre larga e ameada sobre um castelo (Aurélio).
45) Deus de Israel. Israel foi a designação das tribos que se separaram de Judá, formando um dos dois reinos após a morte de Saul. Israel: nome do reino das dez tribos. Deus de Israel é o criador de todas as cousas, inclusive do homem e da mulher. Cristo é o filho de Deus de Israel.
46) O bravo Francisco Luís. Monsenhor Joaquim Chaves transcreve documento de que copio: “No dia 4 de maio, pelas cinco horas da tarde, fez em Teresina sua entrada o contingente de Voluntários da Pátria fornecido pela vila de Barras, em número de 52 praças e 2 oficiais. Aos esforços do Capitão Luís Francisco Pereira de Carvalho e Silva, que foi o primeiro a inscrever-se no alistamento e o primeiro a procurar com o poder de persuasão e do estímulo fazer-se acompanhado de tantos cidadãos, muito se deve pela aquisição de tão importante número de voluntários”. (O Piauí na Guerra do Paraguai” – 17). E adiante, pág. 38: “Em Corrientes, no Estado argentino, faleceu no dia 7 de outubro último (1866), Francisco Luís Pereira de Carvalho e Silva, em conseqüência do ferimento de uma bala que lhe penetrou no peito direito, no ataque de Curupaiti, a 22 de setembro. Natural da cidade de Oeiras e residente na vila de Barras, onde se dava à vida pacífica da advocacia, apenas a Pátria pôs em prova a dedicação de seus filhos, o capitão Francisco Luís apresentou-se voluntário e seguiu com o 1º Corpo que desta Província partiu para o teatro da guerra. Não lhe obstaram o propósito a cara esposa e os ternos filhos, que oram ficam na viuvez, orfandade e pobreza. Fez a campanha de Uruguaiana. No combate de Curuzu o nobre piauiense portou-se heroicamente” (documento citado por Monsenhor Chaves”).
47) Piauí. Nome indígena. De piau (o pele manchada, peixe) e i (rio) – o rio dos piaus,isto é, dos peixes de pele manchada.

O Avarento

Quid juvat immensum te argenti pondus et auri
Furti defossa timidum deponere tura?
(Horácio – Sat.)

Vede o pobre ancião na humilde choça
Os tíbios olhos para os céus erguendo:
Seus lábios trêmulos se dirigem súplices
Aos pés do Eterno, desferindo graças...

Certo despreza deste mundo as pompas;
Dizem-nos os anos e a cerviz (1) pintada:
Apalpa as contas que rolando descem
No grosso fio; (2) só nos céus medita...

Ele é ditoso, que a virtude é dita.
- Vede o pobre ancião na humilde choça!

________

Seus dias correm como os sons queridos
Da fresca brisa que desperta as folhas;
Correm serenos como os sons da flauta
Que acorda as trevas do dormir profundo.

Na pobre mesa não se estendem lautos,
Gordos manjares que derramam n’alma
Torpor e tédio: na frugal (3) comida,
Bem mostra, sóbrio, que abomina a gula.

Ele é ditoso, que a virtude é dita.
- Vede o pobre ancião na humilde choça!

_______

Seus dias correm como os sons queridos
Da fresca brisa que desperta as flores
Correm serenos como os sons da flauta
Que acorda as trevas do dormir profundo.

Na pobre mesa não se estendem lautos,
Gordos manjares que derramam n’alma
Torpor e tédio: na frugal (3) comida,
Bem nostra, sóbrio, que abomina a gula.

Ele é ditoso, que a virtude é dita.
- Vede o pobre ancião na humilde choça!

______

Não tem mobília no seu tosco albergue.
Apóstolo fiel da caridade,
Repele o luxo que arruína os povos,
E socorre, propício, aos desgraçados.

Vede-o – levanta-se, e com passo incerto
Passeia – olhando para certo lado
Da humilde estância... aonde (5)os dias passa
Puro – distante do viver da corte. (6)

Ele é ditoso, que a virtude é dita.
- Vede o pobre ancião na humilde choça!

_______

Mas estudai-lhe do semblante lívido
Todos os traços, estudai-lhe os olhos
Baços, (7) erguidos para os céus, e os lábios
Que a Deus parecem desferir (8) mil graças...

Sim, estudai-o ... Dir-vos-a seu rosto,
A cerviz branca, seus olhares baços,
Que aos céus se elevam e depois se abaixam, (9)
E vão pregar-se, vão morrer num canto.

É desgraçado - que a vareza torpe
Faz a desgraça do mortal que a nutre.

_________
Oh! Não! Como é possível que a maldade,
Que a torpe hipocrisia se rebuce
Nas brancas roupas que a virtude veste?
É possível, meu Deus, tanta impostura?
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
________
É ele nada menos que um avarento!
Prata e oiro conserva sob a terra:
Um só real (10) não passam os seus gastos
Dos juros extorquidos aos que presta (11)
Dinheiro, cujo prêmio desejara
Ao mês fosse de mil ou mais por cento!
Porque julga o de dous, de três ou quatro
Incapaz de dar pasto à vil cobiça
E à sede de metal (12) que lhe devora
O peito que se afez a torpes crimes!
- É de tanto capaz um avarento!
E assim vive já próximo da campa, (13)
Sem que a fome remova ao mendigo;
Sem que ao despido corpo do indigente
Uma vara (14) ministre de fazenda;
Sem que atenda o gemer do pobre infante
Que vive a tiritar de frio e fome
E com a voz da inocência o pão esmola; (15)
Sem que a sede sacie ao que a suporta,
Pois que até lhe é penoso um gole d’água
Dar a quem lh’o (16) suplica sequioso!
- É de tanto capaz um avarento!

A prole, triste dela! – mal curada,
Apenas tem por mestre a consciência!
“Meus filhos, assim diz, viver só devem
Esta vida qual eu vivido tenho.”
E os míseros escravos que se afanam (17)
No contínuo lidar – nus e famintos –
No horror do desespero aos céus dirigem
Maldições, maldições contra o tirano
Que os dias amesquinha-lhes... que as carnes,
Lhes despe – em tiras – do mirrado corpo!
- É de tanto capaz um avarento!

Malvado! – que ensurdece ao grito infausto
Da miséria! – nem sabe-lhe propicio
Mitigar o sofrer um só instante!
Coração mais ferino que o do tigre!
Mais duro do que a rocha! Oh! vede o monstro:
- Ao pobre que reclama o pão do dia,
Ao cego, cuja indústria lhe é vedada,
Ao mísero aleijado que o trabalho
Não pode manejar, diz, feio e torvo:
“Todos vós sois vadios – que trabalhem...
- É de tanto capaz um avarento!

Em que pensa o avaro? o qu’ele sonha?
- Pensa e sonha chupar o sangue humano!
Ao crime negro e vil oblações rende!
A virtude, profano! – olvida e cospe:
À viúva que vê envolta em trapos,
Tendo ao seio apertado o orfãozinho,
E que uma esmola, lacrimosa, pede;
Embora honesta seja, diz-lhe: “Vai-te,
Mulher torpe, que as cinzas do finado (18)
Desonras com os teus nefando vícios.”
- È de tanto capaz um avarento!

Porém, ei-lo que jaz na cama enfermo,
Já sentido da morte o golpe extremo;
Seus filhos que da morte o leito imundo,
Pranteando-o, circundam, na desgraça
Com a decrépita esposa hão de famélicos
Morrer a míngua... Mas, no que ele cuida
Que, mesmo agonizante, os frouxos olhos
Não desprega de um lado... de um somente!
- é que ali enterrada a prata, o oiro,
Permanecem, que são “seu deus, seu tudo!”
- É de tanto capaz um avarento!

E muito embora à cabeceira tenha
Do Senhor o ministro (19) que o exorta,
A ninguém os tesouros seus descobre!
As verdades do céu são-lhe fantasmas
De feio aspecto, que o sofrer lhe agravam.
Se os olhos cerra, (20)novo mundo encontra
De tétricas visões que lhe torturam
Os instantes cruéis que ao mundo o prendem!
E sem restituir quanto usurpara,
Impenitente morre e condenado!
- È de tanto capaz um avarento!

Comentários
1) Cerviz. Emprego como cabeça.
2) Fio. Cabelo.
3) Frugal. Emprego no sentido de sóbrio, parco.
4) Albergue. Asilo para pobres. O poeta empregou como habitação pobre.
5) Aonde os dias passa. Hoje se diria: onde os dias passa. Emprega-se aonde com verbos dinâmicos, de movimento: aonde vais.
6) Corte. Emprego no sentido de capital, centro do governo do país.
7) Baço. Sem brilho. Escuro.
8) Desferir. Lançar, atirar.
9) Abaixam. Excelente emprego. É melhor abaixar quando existe objeto direto: abaixe os olhos.
10) Real. Singular de réis. Mil réis era, até 1942, a unidade monetária brasileira.
11) Presta. Do verbo prestar, o mesmo que emprestar.
12) Sede de metal. Metal aqui vale dinheiro.
13) Campa. Emprego no sentido de sepultura.
14) Vara. Antiga medida de comprimento (1,10m).
15) Esmola. Verbo esmolar.
16) Lho. Combinação dos pronomes lhe e o: suplica a ele o, isto é, o gole d’água.
17) Afanam. Verbo afanar-se, cansar-se, fatigar-se.
18) Finado. Defunto. Que morreu.
19) Ministro. Sacerdote. Padre.
20) Cerra. Verbo cerrar. Fechar.

Consulta e Resposta

Bom dia, senhor Doutor!
“Bom dia, senhor Soares!
D’onde vem? “ – Dos pátrios lares,
Desse sertão sedutor:
Eu venho do Piauí.
Trousse cento e tantos queijos
Saborosos como os beijos
Das mulatas (1)do Poti; (2)
Porém, por desgraça minha,
Fui ter a certa covinha...
Que não direi ser de Caco, (3)
Pois Caco já não existe.

Onde infelizmente assiste, (4)
E onde tudo abarca e vende,
Sem dar o menor cavaco, (5)
Um certo atravessador. (6)
Por fim de contas, entende
Que, por ser grande senhor,
Deve ao credor, bom ou mau,
Responder sempre: babau! (7)

Vendi-lhe, senhor Doutor,
Os queijos por atacado,
Só por trezentos mil reis; (8)
Venceu-se o prazo marcado,
Fui cobrar do comprador,
Insultou-me, - nem dez reis!
Agora, o que hei de fazer
Para os cobres (9) receber?

O letrado empavonou-se
Na cadeira de balanço,
Tossiu, cuspiu, asseou-se,
Depois de breve descanso,
Riscou estalante fósforo, (10)
Acendeu louro charuto,
E respondeu sem mais prólogo, (11)
Em som grave e estilo arguto:
(Soares reprime o fôlego
e prega e concentra a vista
na boca flórida, antíloqua
do grande e Sábio jurista:
vai ouvir na voz harmônica
a resposta salomônica.) (12)

“Senhor soares, o caso
Não me parece tão leve,
Pois não o li no Parnaso, (13)
Nem no afamado Vanguerve: (14)
Porém, deixando de parte,
Mais perluxas (15) citações,
Dir-lhe-ei com engenho e arte,
Sem Pandectas, (16) sem Lobões, (17)
Que presto (18) e presto demande
O tal brejeiro e malsim, (19)
À casa citá-lo mande
Por esperto beleguim, (20)
E citar com hora certa;
Pois, se ele vir não o encontra:
Mergulhará como a lontra (21)
Do caçador descoberta.”

Mas onde, senhor Doutor,
Mergulhará, pois é fama
Não há lá rio ou açude?
“Aí em qualquer palude, (22)
Ou nessa fétida lama
Do brejo (23) do tal senhor.”

Bom dia, senhor Doutor!
“Bom dia senhor Soares!
Como vai co’o devedor?”
Em róseos, serenos mares!

Todos dizem com razão,
Com sentimento ou vergonha
Não há mais na carantonha (24)
De tão velhaco truão. (25)
Inda usou de escapatório, (26)
Inda tentou mergulhar,
Ou quem sabe? – mergulhou...
Mas o sujeito é finório:
Julgou prudente pagar
Os queijos que me comprou.

Certificou o meirinho (27)
Que ele se havia ocultado
Para não vir a audiência;
Mas, sabendo de caminho
Que já tinha advogado,
Concordou co’a consciência.

“Agora, já que sou velho,
Quero lhe dar um conselho:
Quem usa vender fiado,
Logrado bem pode ser;
Mas se fugir do tratante,
Avante, pode vender.

Tem o tratante na cara,
Cousa rara! Certo quê, (28)
Ferrete que o experiente
Logo sente, logo vê.”

Sim, Doutor, para o futuro
Protesto andar mais seguro.
Quanto lhe devo, doutor?

“Eu não recebo dinheiro
por consulta de credor
feita contra caloteiro, (29)
ou contra mau pagador.”

Muito obrigado, Doutor.
Comentários
1) Mulatas. Os dicionários ainda acolhem a significação de mu, mulo de pouca idade. Mulo é o mestiço de cavalo com besta, ou de burro com égua; mestiço de jumento com égua. Nascentes admite que se tenha derivado de mulo e sufixo ato – e acrescenta: “para o mestiço humano houve comparação com o híbrido animal”. Sá de Miranda, velhíssimo escritor português, empregou mulato como sinônimo de mulo: “Que possa livre quem queira / Cantando ir de noite à feira, / Ou domingo no mulato”. A. J. de Macedo soares indica, no Dicionário, o étimo latino moratus (fusco), italiano morato, espanhol mulato, francês mulâtre – e diz que é a etimologia mais natural. Comumente se emprega mulato como filho de branco com negro ou de negro com branca. Mestiço com sangue negro.
2) Poti. Afluente do rio Parnaíba. Banha a cidade de Teresina. Nome tupi: as fezes. Poti também é camarão.
3) Caco. Personagem da mitologia. Habitava nas imediações do Monte Aventino. Roubava os bois de Hércules e os conduzia para a sua cova, fazendo com que eles caminhassem de costas, a fim de que não fossem achados. Mas um deles berrou e Hércules arrombou a porta da caverna e matou o ladrão a bordoadas. Cova de Caco emprega-se como covil de larápios.
4) Onde infelizmente assiste. Excelente emprego do verbo assistir na acepção de morar, residir.
5) Cavaco. Emprego no sentido de prosa, conversa.
6) Atravessador. Empregado no sentido de monopolizador, açambarcador (de gêneros)
7) Babau. Interjeição indicativa de que uma cousa se acabou irremediavelmente.
8) Mil-réis. Antiga moeda brasileira. Em 1942, passou a cruzeiro (Getúlio Vargas).
9) Cobres. Dinheiro: “Em primeiro lugar pagarei aqueles cobres que devo...” (Artur de Azevedo – “Contos Efêmeros” – 61)
10) Fósforo. Composto grego. Phos (fos), photo (foto) é luz; phoro (foro), do verbo phorein (forein), que produz.
11) Prólogo. O que antecede, o que precede.
12) Salomônica. Adjetivo referente a Salomão, nascido em Jerusalém, filho de Davi. Rei. Salomão significa pacífico. Começou a reinar no ano de 970 a.C., com 20anos. Pediu a Deus que pudesse sempre discernir entre o bem e o mal. Tornou-se célebre pelas suas decisões. Cultivou as artes e as ciências. Aumentou a riqueza pública. Sábio. Reinou 40 anos. Dois graves erros praticou: estabeleceu um harém com mil mulheres, que lhe perverteram o coração, e praticou enormes despesas na corte. Foi castigado.
13) Parnaso. Do grego parnassós, parnessós, parnasós. Maciço montanhoso da Grécia. Antigo monte de Fócida, onde os gregos colocaram a morada de Apolo e das musas. Designa, simbolicamente o lugar habitado pelos poetas e, figuradamente os poetas em geral e a poesia. Dá-se também o nome a coletânea de poesias, a antologias poéticas e ao movimento literário chamado parnasianismo.
14) Vanguerve. Penso que se trata do famoso jurisconsulto alemão Von Ihering.
15) Perluxas. Presumidas.
16) Pandectas. Ou Digestos de Justiniano. Do latim Pandectae – uma das partes principais da codificação de Justiniano, consistente numa coletânea metódica de fragmentos tirados das obras dos jurisconsultos romanos, e cuja redação foi confiada a uma comissão de 16 membros, dirigida por Triboniano.
17) Lobões. Referência a Lobão, celebrado jurisconsulto de Portugal.
18) Presto. Palavra comentada noutro local.
19) Malsim. Tenho que o poeta empregou malsim no sentido hebraico da palavra: malfeitor.
20) Beleguim. Agente de polícia. Meirinho.
21) Lontra. Animal mamífero.
22) Palude. Forma latina. O mesmo que paul.
23) Brejo. Terreno alagadiço, pantanoso, inculto.
24) Carantonha. Cara feia, carranca.
25) Truão. Palhaço, bobo.
26) Escapatório. Hoje se emprega mais o feminino escapatória. Morais registrou escapatório: Meio, ou destreza para sair de um embaraço e dificuldade, subterfúgio, tergiversação.
27) Meirinho. Oficial de Justiça encarregado de diligências.
28) Quê. Usado como substantivo.
29) Caloteiro. Que passa calote, que é a dívida não paga. Palavra vinda do francês.

A Tempestade

De uma parte do horizonte
Pouco a pouco mostra a fronte
De nuvens um torreão.
O sol no mar sepultou-se,
Da lua a face turvou-se,
Lampeja tíbio clarão.
Já o mar desperto geme,
Já no bosque o vento freme,
Retumba ao longe o trovão!

Já negreja no horizonte,
Já minaz (1)ostenta a fronte
De nuvens o torreão.
De todo a noite fechou-se,
O ar medonho nublou-se,
Fuzila crebro clarão!
O mar furioso ronca,
Rouqueja na gruta bronca
O vento e perto o trovão!

Outro ponto negreja,
Como à porfia a chameja
O raio, e estoura o trovão!
Dos bosques se humilha a coma,
Estruge, sibila, assoma
Turvo, iroso o furacão! (2)
No ar se cruzam os raios,
Os trovões causam desmaios,
Horroriza a confusão!

Rasgam-se as nuvens pejadas,
Grossas bombas despenhadas
Rojam, alagam o chão.
Cresce a chuva em cataratas,
Sossobram-se mil fragatas,
Retumba sempre o trovão!
Dos cumes mil seixos rolam
As águas prostram, assolam
Os bosques em borbotão!

Qual aqui a Deus invoca,
Qual ali os céus provoca
Com lastimosa oração!
Vacila o teto e se abate
Ao duro, ríspido embate
Da chuva solta em cachão! (3)
Mil gritos o ar atroam!
Mil gemidos aos céus voam!
Deus se move à compaixão.

Já menos caem as águas,
Menos cintilam as fráguas,
Menos estala o trovão.
Pouco a pouco o ar serena,
Inda a cheia corre plena,
Mas cessou o turbilhão.
O mar no leito descansa.
Perto já vem a bonança
Ao cessar do furacão.

Em fim, a chuva extingui-se,
O puro céu descobriu-se,
Cessou de todo o trovão.
No bosque a brisa cecia,
O mar, que em fúria bramia,
Quedou, quedando o tufão.
No mar a lua de prata
Já sua face retrata
E esparge meigo clarão.

Comentários
1) Minaz.termo poético: ameaçador.
2) Furacão. Vento impetuosíssimo.
3) Cachão. Borbotão.

A Lua

A lua donosa lá surge fagueira
Por trás da mangueira que ao vento murmura
Por entre a folhagem mil círios (1) rutilam,
Mil tochas cintilam da luz que fulgura.

Já toda se mostra ridente e formosa,
Luzindo saudosa da esfera anilada,
Suspiram poetas ao ver seus fulgores,
E a virgem de amores é logo assaltada.

Não crestam, não queimam seus lânguidos raios,
Não causam desmaios às plantas nascentes.
Não são como os raios solares que abrasam,
Desecam, arrasam as plantas virentes.

Oh! como de casta na esfera azulada
A face argentada (2) no vê transparente
De cândida nuvem oculta medrosa.
E logo donosa se mostra ridente!

Assim faz a virgem que escuta do amante
A fala anelante que amores lhe jura,
As frases mimosas, que dizem carícias,
Que exprimem blandícias de um’alma que é pura.

E como ela brilha donosa e fagueira
Na verde mangueira que ao vento se embala!
E como na mente que sofre e delira
Um sonho me inspira que as dores me cala!

Agora lembrei-me (3) da terra querida,
Em que minha vida passei noutra idade...
Do anjo eu amava até mesmo esquivanças...
Que doces lembranças! Que terna saudade!

No céu entre estrelas teu rosto flutua,
Tu és, branca lua, da noite a rainha;
Mas ah! No teu seio que lágrimas chora
A virgem que ora, que geme sozinha!

Contigo o que sofre, resfolga, respira,
Contigo suspira quem vive ditoso,
Tu es meu santelmo nos tristes momentos
Eu que meus tormentos deploro saudoso.

E agora lembrei-me da pátria querida,
Em que minha vida gozei noutra idade
Do anjo eu amava até mesmo esquivanças...
Que doces lembranças! Que ternas saudades!
Comentários
1) Círio. Círio é vela grande de cera. O poeta empregou a palavra como brilho.
2) Argentada. Prateada. Do latim argentu, prata.
3) Agora lembrei-me. Na época em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.

Noite de São João (1)

Radioso assoma o dia
Festival de San’Joçao,
Já se apavona (2) a alegria
Nas asas da predição. (3)
O bolo no forno estala
Entre o cheiro que trescala,
Que o olfato ferir nos vem;
O pão-de-ló, (4) a cangica(5)
Pelo olor também indica
O gosto, o sabor que tem.

Já se ajunta a verde lenha,
Já crepita a combustão;
Venha o velho, o moço venha
Às sortes (6) de San’João.
O velho aspira à mor (7) vida,
O moço à posse querida
Daquela que é seu amor.
As belas têm seus segredos,...
Tremem-lhe’as sortes nos dedos...
Abrem-n’as... Deus, que palor!

Porém aquela sorri-se...
São coisa do coração;
O que foi? – (8) ela não disse,
Só ela o sabe e San’João.
Mas esta – aqui – entristece;
Pois de repente enlanguece
Aquele brilhante olhar!
O que seria?! Donzela,
Nesta palidez tão bela
Quem te pode transformar?
E ela diz: “Não creio em sortes
Em noite de San’João.”
E a outra diz: “Pois são fortes
Mistérios de predição.”
Aquela triste indolente,
Machuca a pobre inocente,
Que ao virgem seio pendeu.
Esta afaga a flor mimosa,
Que recende deleitosa
No peito que a recebeu.

A feliz não satisfaz-se, (9)
Não creu, talvez, em San’João;
Em ais a outra desfaz-se
Nascidos do coração.
Da desdita ou da ventura
Ei-las de novo em procura
De trás da porta a escutar
Um nome... um nome querido,
Que seja o primeiro ouvido
Para a bochecha soltar.

Júlia, a feliz, sufocava
No peito a respiração;
Lúcia, a triste, só pensava
No rigor de San’João.
Júlia quer ouvir um nome...
Coitada! em vão se consome!
Lúcia, sim, sorriu, corou!
São revezes – que este mundo
É um mar turvo e profundo:
Quem sempre em calma o sulcou?

Quantos rostos confrangidos,
De prazer quanta explosão,
Se mal ou bem sucedidos
Nas sortes de San’João!
Um aqui nota a galera (10)
Que lhe assinala uma era
De glória, de mil troféus!
Já outro um palácio nota
De uma estrutura ignota
Que vai topetar (11) co’os céus!

Que aqui na lisa fonte,
Em noite de San’João,
Inclinado mira a fonte,
Que há de ver outra estação;
Qual o ramo emurchecido
Aguarda reverdecido
Pela madrugada ver;
Qual, por fim, anda nas brasas,
Porém suspenso nas asas,
Que um anjo quis-lhe (12)estender.

E o busca-pé (13) cabriola (14)
Em noite de San’João,
E pelo ar caracola, (15)
Lá ruge como um vulcão!
Lá vai chiando raivoso,
Faiscando, estrepitoso,
Fazendo tudo correr!
Ouvem-se gritos, risadas!
Oh meu Deus, que matinadas (16)
Um busca-pé faz nascer!

Porém o mais pitoresco
Em noite de San’João,
É, por certo, o compadresco, (17)
Isto, sim, tem seu condão! (18)
Que mal faz? – brinco inocente,
Que estreita, que liga a gente
Por laços santos assim!
Ser-se compadre da bela
Por gosto e vontade dela,
Não é bom? –acho que sim.

Comentários
1) São João. Áspero pregador. Degolado na Palestina, por volta do ano 31 da nossa era. De noite comemora-se a data com farta alimentação, danças, bebidas, adivinhações para casamento e morte, e acendem-se fogueiras, e soltam-se balões, e tocam-se fogos de artifício, bombas, traques, e dançam-se quadrilhas. Festa tradicional na Europa, notadamente em Portugal, e no Brasil, aonde chegou trazida pelo colonizador lusitano. Conta a tradição que o santo adormece durante o dia, no seu aniversário natalício. E à noite, ao enxergar o clarão do fogaréu aceso para homenageá-lo, desce dos céus e acompanha a oblação popular.
2) Apavona. Verbo apavonar. O mesmo que empavonar. Envaidecer-se como o pavão.
3) Predição. Ato de predizer. Profecia. No São João os pares namorados buscam adivinhar a sorte, na prática de adivinhações: duas agulhas numa bacia d’água revelarão casamento, se no fundo se ajuntam.
4) Pão de ló. Bolo leve e fofo, feito de farinha de trigo, ovos e açúcar. No plural, pães-de-ló.
5) Canjica. Iguaria feita de milho verde, leite e açúcar, muito usada no São João.
6) Sortes. Veja nota 3.
7) Mor. Forma reduzida de maior, mais longa.
8) O que foi? Em frases interrogativas, alguns condenam o o antes do que. Mas muitos o admitem. Pode-se dizer corretamente: que foi?
9) Não satisfaz-se. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: não se satisfaz.
10) Galera. Palavra italiana. Embarcação.
11) Topetar. Atingir. Subir às alturas de.
12) Que um anjo quis-lhe. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Colocação moderna: que um anjo lhe quis estender ou que um anjo quis estender-lhe. No caso, a primeira estaria de conformidade com a rima.
13) Busca-pé. A tradição quer que o São João seja festivo e zoadento. Não devem faltar-lhe o foguetório e os busca-pés. O busca-pé é “produto pirotécnico que, posto no chão e incendiado, arde volteando rapidamente de um lado para outro dando um estouro no fim” (Nascentes).
14) Cabriola. Verbo cabriolar, saltar.
15) Caracola. Verbo caracolar; mover-se em espiral.
16) Matinadas. Empregado com estrondo, algazarra.
17) Compadresco. Relativo a compadre. No São João as pessoas se tornam compadres de fogueira.
18) Condão. Poder sobrenatural. Dom. Prerrogativa.

A Noite

Mostra-me, noite, os arcanos,
Os altos segredos teus;
Vejam meus olhos profanos
O que só sabes e Deus.
Tu que inspiras tantos gozos,
Que a tantos fazes ditosos,
Cede, ó noite, aos fervorosos,
Anelantes rogos meus.

Sob uma mangueira altiva
Terno amante adormeceu,
Mas antes da bela esquiva
Puros favores colheu!
Dessa tão meiga donzela,
Tão formosa, tão singela,
Que de dia jamais dela
Um só favor mereceu!

Como roubas, noite, o pejo
De virginal coração?
Mas ah! tu serves de ensejo
Também ao crime, à traição!
Noite, noite! os teus arcanos (1)
Não podem olhos profanos,
Não podem olhos humanos
Perscrutar, não podem, não!

Embuçado, numa esquina,
Na mão sustenta o punhal,
Ou cinge, torvo, a clavina (2)
Perverso gênio do mal.
Na mente o crime medita,
Outros novos premedita,
Em Deus, em nada acredita,
Se não no ferro fatal!

E por que, noite, ao tirano
Asilas no teu seio?
E tu por que, desumano,
Profanas o grêmio seu?
Mas aí! O fuzil lampeja!
Um tiro!... o punhal alveja!
Em balde o mis’ro forceja...
Gemendo, caiu... morreu!

Porém ah! És inocente,
Es mãe da consolação;
Nos teus braços docemente
Esquece o triste a aflição
Em ti – na pedra gelada –
Que cobre o amante, a amada,
Sufraga-se soluçada,
Mesta, carpida oração.

Ó noite, não tens horrores,
Espectro, fantasmas, não;
Oh! que lindos resplendores
Lá no céu! – estrelas são.
Que luz propícia tão grata!
- É dessa lua de prata
Que na fonte se retrata,
Que tem tão meigo clarão!

Sim, não tens, não tens horrores,
Espectros, fantasmas, não;
Oh! que sons cheios de amores
Quebrando tua soidão!
- É da flauta o som mavioso
Que fende o ar saudoso,
Seguido de harmonioso,
Do sentido violão.

Noite, noite, os teus arcanos,
Os altos mistérios teus
Não vejam olhos profanos,
Saiba-os só tu, saiba-os Deus,
Que importa que inspire gozos
Que a tantos fazem ditosos
Eu cedo dos desejosos,
Anelantes rogos meus.




Comentários
1) Arcano. Já comentado noutro local.
2) Clavina. Arma de fogo. O mesmo que carabina.

Gozemos

Dos lábios teus mimosos, que espargem mel e aroma,
Que o néctar, (1) que a Ambrósia (2) mais doces, mais cheirosos,
Fazei, ó minha amada, fazei-me uma redoma,
Aonde os meus se fartem de amor, de puros gozos.

A vida é transitória, momentos poucos dura,
Convém sugar-lhe o crêmor, (3) enquanto não se esvai,
Que em vindo a feia morte, na fria sepultura
Desfazem-se os prazeres, no espaço como um ai.

Gozemos, minha amada, no mais langue transporte
Do néctar dulçuroso que a vida nos franqueia,
Enquanto nossos corpos não gela a fria morte,
Enquanto ao céu noss’alma não aleia. (4)

A vida é um grande peso de horrível sofrimento,
Se não se suavizasse nas práticas do amor,
Seria um anteinferno (5) de dor e de tormento,
Pior que escuro ergástulo, que acúleo (6) afligidor.

O gozo não é crime se além da natureza
As asas não infecta no lodo da licença;
O gozo puro e santo sublima, dá nobreza,
E não ofende a alma, de Deus centelha imensa.

E pois, ó minha amada, gozemos neste mundo,
Que o gozo puro e santo também é do mortal;
Só no antro das torpezas, no gozo infrene, imundo,
Se ofende os bons costumes e a boa e sã moral.

Comentários
1) Néctar. Bebida dos deuses na mitologia dos gregos e romanos. Bebida deliciosa.
2) Ambrósia. Manjar dos deuses. Manjar delicioso.
3) Crêmor. Cozimento feito com o suco de uma planta (Nascente).
4) Aléia. Verbo alear, antiquado. O mesmo que adejar, voejar.
5) Anteinferno. No composto, há o elemento ante, que indica contrariedade, contrário.
6) Acúleo. Espinho.


Quadras (1) à Meia Noite

Se um momento eu penso nela,
Por isso cometo um crime?
Quem a beleza despreza?
Quem de seus ferros se exime?

Juro que sou inocente,
Pensando no corpo dela,
Inocente como o cisne, (2)
Como no leito a donzela.

Que mal faz que em minha mente,
Onde se asila a candura,
Consagre uma idéia virgem
Àquela visão tão pura?

Acaso ofendo os ditames
Que a santa moral prescreve?
Não, e nem ela o crimina,
Nem a beleza proscreve.

Quem tem coração e olhos,
Quem possui um peito amante,
Não pode ver sem surpresa
Seu perfil meigo, elegante.

Criminem a natureza
Que a fez assim tão garbosa,
Mas não criminem minh’alma
Por mostrar-se afetuosa.

Visão! Que de ti nada quero,
Nada, porque quero pouco:
Quisera só que me olhasses,
Depois... me chamasses louco.

Com isso acaso roubavas
Algum dos teus pundonores? (3)
Com isso acaso traias
Teus puros, castos amores?

Por que pois teus negros olhos
Não queres fitar no vate?
Minha mãe não a sentiste
Tremer como o peito bate?

Supõe em mim um perverso
Que olvida as leis da decência?
Supõe em mim o profano
Que esmaga a flor da inocência?

Não, sou por demais caridoso,
Amo, idolatro a virtude,
Detesto as paixões grosseiras,
Abomino o vício rude.

Por isso, fita-me os olhos
Uma só vez, e isto basta:
Não perderás teus encantos,
Nem deixarás de ser casta.

Nem penses que além existe
Quem te roube agora os louros,
Não penses, que ela é mui rica
De adorações, de tesouros.

Não dos que o fogo consome,
Mas desses que só dão glória,
Que a pena do gênio escreve
No grande livro da história.

Por isso fita-me os olhos
Uma só vez e isso basta:
Não perderás teus encantos,
Nem deixarás de ser casta.




Comentários
1) Quadra. Estrofe de quatro versos.
2) Cisne. Ave de muita beleza.
3) Pundonor. Dignidade. Brio.

Com Pouco me Contento

Não quero mais nem desejo
Que aquilo que Deus me deu:
É bem feliz e ditoso
Quem se contenta com o seu.
Tenho uma lira, (1) uma esposa,
Que posso querer mais eu?

Seus mimos me presta a lua,
Sua luz me presta o sol,
Por meu leito tenho a relva,
Tenho a noite por lençol,
Por cortinas tenho as nuvens
Franjadas pelo arrebol.

Não há quem seja mais rico
Do que eu sou vivendo assim;
Que me importam vãs (2) riquezas?
Honras – que valem a mim?
- Sou poeta – é quanto basta,
- Sou de Deus profeta, em fim.

Amo a Deus e os pátrios lares,
E minha pátria, o Brasil;
Amo as belezas brasileiras,
Uma, porém, mais que a mil;
Amo tudo desta terra
Tão formosa – tão genntil.

Não quero mais nem desejo
Que aquilo que Deus me deu:
É bem feliz e ditoso
Quem se contenta com o seu.
Tenho uma lira, uma esposa,
Que posso querer mais eu?
Comentários
1) Lira. Emprego no sentido de poesia.
2) Vãs. Plural de vã, inútil.

Como Te Amei – Como Te Amo

Amei-te quando era jovem
Com esta heróica paixão,
Que nobres afetos movem,
Que brota do coração.

Teu amor, se a pátria minha,
Qual preferira... não sei!
A pátria outros peitos tinha,
Eu outro amor não terei.

Era assim que eu discorria
Por esses tempos d’além;
Em meu peito só cabia
Teu amor, meu doce bem!

Escabrosos, ínvios – serros,
Dos grilhões (1) o estridor,
Tudo fráguas, duros ferros,
Sofrera por teu amor.

Por teu amor, minha amada,
Eu dera a vida também,
Hoje bela, afortunada,
Mais feliz que a de ninguém!

Como te amei nessa idade,
Não sei, não te ouso dizer!
Perguntai-o à imensidade,
Ou a um vulcão a ferver.

Era amor ardendo em chamas!
Não te lembras? – Era assim!
Mas eram meigas as flamas...
Porque sorrias pra mim.

Pois olha, escuta-me crente,
Escuta, meu doce bem:
Inda te amo intensamente
Como nos tempos d’além!

Apenas sinto no peito
Mais pura a chama do amor,
Da amizade santo efeito,
Dos anos doce langor. (2)
Comentários
1) Grilhões. Laço, cadeia.
2) Langor. Desfalecimento.


O
Touro Fusco



“Vês aquele boi que rumina ali deitado
sonolento na relva? Talvez seja um
filósofo profundo que se ri de nós.
A filosofia humana é uma vaidade.”

(Álvares D’Azevedo)


Canto Primeiro

Argumento


Assunto deste poemeto – invocação – nascimento do touro fusco – sua beleza física – sua primeira briga com o touro de nome lavrado – sua nomeada – ódio nascente contra o valeroso touro.
I

Não vou cantar heróis, nem esses feitos
Que adornam os anais da humanidade;
Nem incensos (1) queimar, nem render preitos
À precária e terrena potestade:
A um bruto vão meus versos feitos.
Pois que aos brutos deu vida a Divindade;
E eu, louvando do bruto o fino instinto,
Mais amor e respeito por Deus sinto.

II

Ó minha doce infância suspirada,
Que o tempo estragador levou consigo;
Terna lembrança dessa vida amada,
Que há de sempre viver, morrer comigo;
Campos em que brinquei, onde fadada
A vida me pulava sem perigo,
Fazei que, embora pobre, o meu assunto
Seja do meu sentir fiel transunto.

III

No belo Crateús, (2) sertão formoso,
Obra sublime do Supremo Artista, (3)
Num terreno coberto de mimoso, (4)
Está sita a Fazenda Boa Vista”;
Do Príncipe Imperial, (5) pravo e rixoso,
Vila do Piauí, (6) seis léguas (7)dista:
Ai, num massapé (8) torrado e brusco, (9)
Nasceu o valoroso “touro-fusco”. (10)

IV

Em certo ano do século dezenove,
Além de peste e fome assoladora,
No pobre Crateús nem se quer chove,
A seca é por demais abrasadora.
Um aqui jaz faminto – nem se move!
Outro ali, ante (11) a Imagem da Senhora, (12)
Pede, em pranto banhado, ao bento Filho (13)
Chuva, arroz e feijão, farinha e milho.

V

Foi neste ano de peste e de carência
Que o fusco neste mundo foi botado; (14)
Mas da seca terrível a inclemência
A mãe-vaca matou-lhe: ei-lo enjeitado! (15)
Porem dele tratou com diligência
O bom do criador, com tal cuidado
Que, embora magro e feio e cabeludo,
Foi crescendo o bezerro barrigudo.

VI

Já era garrotinho, inda a bariga
Parecia querer romper-lhe o couro;
Quem olhava o infeliz – dava-lhe figa, (16)
Dizendo: este nunca há de ser touro!
Quantas vezes, me lembra. Eu tinha briga,
Se barriga chamavam-no de soro
A ponto de chorar, de coitadinho
Chamar o desgraçado garrotinho.

VII

No ano trinta e seis ou trinta e sete (17)
Era pai de curral o belo touro;
As proezas que fez, ainda repete
Quem nunca lhe notou um só desdouro:
Ouvir-lhe as duras brigas terror mete,
Às vezes de prazer rebenta o choro!
Se o fusco fosse gente, ele seria
Mais herói que esse herói de Alexandria; (18)

VIII

Pouco a pouco foi ele endireitando,
Já suas finas pontas amolava
Na dura ribanceira, onde passando,
Uma e outra a seu turno ele enfiava.
Já quando algum garrote ouvia urrando,
Cavando com a mão também urrava;
Te que, alfim, de peloso e barrigudo,
Tornou-se um touro belo e cachaçudo. (21)

IX

Os seus chifres não eram nem espaços, (22)
Nem, combucos (23) também: pouco virados;
Com que garbo gentil movia os passos,
Quando vinha ao curral co’os outros gados!
Era fusco na cor. Mas tinha traços
De liso (24) pelas costas empalhados:
Seu cupim (25) era grande e tão roliço
Como em outro não vi igual toutiço! (26)

X

Quando vinha ao curral, tocando adiante
A manada (27) de vacas que guardava,
Tinha um modo de andar tão elegante,
Tão grave qu’eu com gosto lh’o (28)notava!
Tinha um urro saudoso e retumbante
Que nos vales florido reboava:
Toda a terra do urro estremecia,
E o mato em derredor todo tremia!

XI

Sempre me hei de lembrar da vez primeira,
Em que ele se pegou com outro touro,
Que veio da fazenda Cachoeira,
Era grande e lavrado (29) em todo o couro;
Sempre tinha vencido na ribeira,
Donde vinha alcançar triunfo e louro;
Mas, coitado! – saiu-lhe o ano bissexto, (30)
Como diz o ditado ou reza o texto.

XII

Quando o fusco se viu em pé na frente
Do lavrado inimigo que cavava,
Numa moita amolando a ponta quente,
Com as mãos para o ar o pó lançava;
Mas eis que sério fica e de repente,
Abanando a cabeça, que abaixava, (31)
Contra o fero (32) inimigo ele arremete
De um modo que o pavor em todos mete.

XIII

Trava-se a luta encarniçada e dura,
Grande círculo descrevem na refrega,
Já meia hora que a peleja dura,
O fusco do inimigo se despega;
Mas, de novo, sacode com bravura
A testa, e novamente a luta pega
Co’o lavrado que em pouco urra na ponta
Do fusco que, espetando-o, se remonta.

XIV

Mais de um palmo saiu do oposto lado
Do cachaço do mísero vencido
A ponta com que viu-se (33) traspassado, (34)
Os campos atroando suspendido!
Todo o dia levara pendurado,
Se seu próprio senhor, compadecido,
Não o fosse arrancar do chifre brusco
Do valente e brioso touro-fusco.

XV

Em breve toda aquela redondeza
Só do touro valente se ocupava:
Se um urro, acaso, ouviam na devesa, (35)
Diziam que o fusco quem urrava.
Todos queriam ver sua fereza,
Quando com outro touro ele brigava,
E até vinham de mais de uma fazenda
Muitos e muitos touros de encomenda.

XVI

Dos touros vencedor, nunca vencido,
Era o fusco o terror daqueles campos,
Seu urro, qual trovão, era temido,
Seus olhos fuzilavam, quais relampos. (36)
Era um touro valente e destemido,
Seu valor e denodo não estampo-os: (37)
Tudo quanto disser, é pouco, é nada,
Pra (38) mostrar desse touro a nomeada.

XVII

Não faltava ao curral um só dia,
Por demais era manso e curraleiro;
Só brigava co’o (39) touro que queria,
Mas nunca a procurar foi o primeiro;
Furtar pelos roçados (40) nunca ia,
Embora fosse o pasto mui (41) vasqueiro: (42)
Todavia, lhe andava já na pista
Na fazenda chamada Boa Vista.

Comentários do Canto Primeiro

1) Incenso. Incenso é resina aromática.Substância aromática destinada a servir em atos de culto. Há a incensação – ato de incensar com o turíbulo em algumas funções litúrgicas. O poeta empregou incenso em sentido figurado, como adulação, bajulação.
2) Crateús. Existia no Piauí o povoado de Amarantes, mas os padres de Granja (Ceará), começaram a praticar ali batizados e casamentos, entre outros atos, até que a Assembléia Provincial do Ceará criou ali uma freguesia. Esbulhado o Piauí procurou reivindicar Amarração, porto marítimo. Conseguiu o que desejava em 1880, em troca de dois municípios cedidos ao Ceará: Independência e Príncipe Imperial, que se transformaram no município cearense de Crateús. O município de Amarração tem hoje o nome de Luís Correia. O autor, José Coriolano de Sousa Lima, nasceu (1829) na fazenda Boa vista, da antiga vila de Príncipe Imperial, que, na época, pertencia ao Piauí.
3) Supremo Artista. Deus.
4) Mimoso. Tipo de capim. Acentua Carlos Porto: “Os grandes e extensos tapetes de bromeliáceas do mimoso são típicos do Piauí, não figurando nos demais Estados nordestinos. Coriolano escreve: “É o capim mais delicioso para o gado”. (veja notas do autor).
5) Príncipe Imperial. Veja nota 2.
6) Vila do Piauí. Referência à vila de Parnaíba, Piauí, hoje cidade.
7) Légua. Seis mil metros. No sertão, há léguas grandes, léguas pequenas e léguas de nada (Koster). Também a légua de beiço, anotada por Aurélio: “Indicação vaga dos sertanejos, feita com o beiço inferior distendido na direção que se deve percorrer: daqui até lá pode ter uma légua (é sempre muito mais)”.
8) Massapé. Segundo o autor, terra preta, dura. Também se escreve massapé. Qualidade de terra preta, fina, gomosa. Os estudiosos divergem quanta à origem.
9) Brusco. O autor empregou brusco no sentido de escuro, uma das acepções da palavra em português.
10) Fusco. De pelo escuro.
11) Ante. O mesmo que diante de.
12) Senhora. Referência a Nossa Senhora.
13) Bento Filho. Jesus Cristo
14) Neste mundo foi botado. O verbo botar é de uso extensíssimo no Brasil. Teve o sentido de lançar de dentro para fora, expelir, portanto, parir.
15) Enjeitado. No caso, enjeitado é o animal que se cria sem mãe. Reclama cuidados especiais. Daí porque recebe boa alimentação.
16) Figa. Câmara Cascudo, no “Dicionário de Folclore”, anota: “É um dos mais antigos amuletos contra o mau-olhado... A figa latina, fícus, fica italiana, é a mão humana, em que o polegar está colocado entre o indicador e o médio”. E adiante, citando Furtunée Levy: “A figa esconjura o mal, o contratempo, a inveja, e provoca os bons fados”.
17) 36 ou 37. 1836 ou 1837.
18) Herói de Alexandria. Alexandre o grande, rei da Macedônia. Reinou a partir de 336 a.C. Notável guerreiro. Esteve no Egito, onde fundou Alexandria.
19) Pontas. O mesmo que chifres.
20) Te. Por até. Assinala Silveira Bueno que os textos arcaicos apresentam várias formas da atual preposição e, algumas vezes, advérbio até: ata, ataa, ta, tas, tee, até, te (”A Formação Histórica da Língua Portuguesa” - 181) Na tragédia “Castro”, de Antônio Ferreira, está: “M’acompanhará sempre, té que deixe. O meu corpo c’o teu...” (Sousa da Silveira – Textos Quinhentistas” – 262).
21) Cachaçudo. De pescoço grosso. Derivado de cachaço. Dizia-se porco de cachaço, isto é, de pescoço gordo e grosso. No velho português cacho significou também pescoço grosso. Cachaço é aumentativo de cacho.
22) Os seus chifres não eram nem espaços. Veja as notas explicativas do autor no verbete espaço.
23) Combucos. Chifres combucos. Veja as notas explicativas do autor no verbete combucos.
24) Tinha traços de liso. Liso é a cor vermelha, de cabelo fino.
25) Cupim. Veja a nota explicativa do autor no verbete cupim.
26) Toitiço. Parte posterior da cabeça, cachaço, alto da cabeça.
27) Manada. Rebanho de gado. Do latim minata, de minare, conduzir, levar.
28) Lho. Combinação do pronome lhe com o demonstrativo o. O lhe, aí, tem função possessiva: eu com gosto notava isto (o) dele, seu (lhe).
29) Lavrado. Marcado.
30) Ano bissexto. Ano de 366 dias. Os romanos tinham datas fixas nos meses para a contagem dos demais dias: as calendas, as nonas e os idos. “Acontece, porém, que os latinos, no ano bissexto, não inseriam o dia, que se deve acrescentar, depois do dia 28 de fevereiro, como fazemos nós, mas depois do dia 24, e como o dia 24 era o sextus dies antes das calendas de março, acontecia que o dia intercalado era chamado o segundo dia sexto, ou seja, bis sextus dies” (Napoleão Mendes de Almeida – “Dicionário de Erros, Correções e Ensinamentos de Língua Portuguesa”). Os latinos contavam os dias regressivamente.
31) Abaixava. A forma abaixar é de excelente emprego, notadamente quando há objeto direto, como no texto.
32) Fero. Feroz, cruel.
33) Com que viu-se. No tempo em que José Coriolano de Sousa Lima escreveu, não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: com que se viu.
34) Traspassado. O mesmo que trespassado.
35) Devesa. Quinta ou cerrado com matas, arvoredos. É o latim defensa, proibida.
36) Relampos. Relampo, igual a relâmpago, é forma velha composta de re, no caso prefixo de intensidade, e lampo, em grego facho, do verbo lampein, brilhar.
37) Não estampo-os. Na época em que José Coriolano de Sousa Lima escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Dir-se-ia hoje: não os estampo. Justifica-se não estampo-os como licença poética, por necessidade de rima.
38) Pra. Em lugar de para. Necessidade de contagem de sílabas poéticas.
39) Co’o. Em lugar de com o. necessidade de contagem de sílabas poéticas. Em com o há duas sílabas poéticas, reduzidas a uma em co’o.
40) Roçados. Terreno para cultivo.
41) Mui. Supressão de uma sílaba final de muito, por necessidade de contagem de sílabas. À figura dão os gramáticos o nome de apócope.
42) Vasqueiro. Raro, difícil de obter.

Canto Segundo

Argumento



Segunda briga memorável do touro-fusco com o novilho chamado estrela – caráter e bravura deste touro – seu vencimento e triunfo do fusco – cresce o ódio contra este.
I

Um dia estava o fusco remoendo,
Deitado molemente em seu serralho (1)
Nas formosas novilhas se revendo,
Se pensasse diria: quanto valho!
Mas logo se levanta, atroz gemendo,
Ouvindo d’outro touro feroz ralho:
Era um forte novilho que escumava (2)
De fora da porteira, (3) onde cavava.

II

Dous buracos dos lados tinha feito,
E o lombo estava negro da poeira
Que sobre ele caia: o largo peito
Arfava, já não era a vez primeira.
Uma moita movia, por despeito,
Ou com raiva, talvez de tal maneira
Que na ponta fincou-lhe um ped’ricalho (4)
De um grosso, retorcido e verde galho.

III

Era grande o novilho e mui formoso,
De brancos patacões (5) manchada a pele,
Que era fina e de um preto mui lustroso,
Que a vista a contemplá-la atrai e impele:
Tinha um urro também estrepitoso,
Que mostrava o vigor dos anos dele:
Muitas vezes co’ um (6) urro e uma cornada (7)
O imigo (8) havia posto em debandada.

IV

Tinha ele no meio do negrume,
Que a bela e larga testa lhe cobria,
Uma estrela brilhante como o lume,
Aceso em noite escura, que alumia; (9)
Outr’ora, parecendo a cor que assume
A clara papa-ceia (10) que radia (11)
Lá na esfera celeste: assim, ao vê-la,
Podíeis comparar do touro a estrela.

V

Chamava-o (12) seu senhor “novilho-estrela,” (13)
Já tendo muitas vezes exultado,
Vendo a vítima que ele, ao suspende-la,
Com a ponta cruel tinha varado.
Efêmera ilusão! Teve de vê-la
Em breve tão desfeita como o brado
Que, soando nos amplos do deserto,
Se perde pelo imenso espaço aberto.

VI

Em tanto, o touro-fusco, escavacando,
A lama para os lados espargia, (14)
Tão intensa que, a tudo enlameando,
De lama tudo em roda ele cobria;
E, gemendo e a cabeça maneando,
Contra os fortes mourões, (15) arremetia,
E os robustos mourões, estremecendo,
Às cornadas do touro iam cedendo.

VII

Mas, o bom do vaqueiro, vendo o estado
Em que o touro se achava belicoso, (16)
Adiante se lhe pondo, sossegado
Ficou ele de turvo e audacioso!
Depois, tendo a porteira escancarado,
Por ela sai o touro furioso,
E, sem que o adversário diga: espere,
Acene, geme e parte, chega e fere.

VIII

Tal como sobre o ferro que caldeia
Bate o mestre ferreiro co’o martelo,
E o sulfúreo (17) cascalho que encandeia
Se espadana em faíscas, loiro e belo
Do discípulo ajudado, que maneia (18)
O malho alternativo, sem teme-lo,
Tais soavam dos touros as cornadas,
Faiscando nas duras marteladas!

IX

A terra em derredor ficou revolta,
Como dizem que faz o curvo arado;
Nenhum dos dous recua, noutra volta
O fusco recuou como estafado;
Mas, de novo gemendo, à luta volta,
E em pouco a estrela berra pendurado
Na ponta do sangrento, invicto touro.
Que o sacode no ar: foi mais um louro. (19)

X

Quase exangue, sem vida e palpitante,
Já a um canto estendido o estrelado.
Enquanto, esbaforido (20) e triunfante,
Em pé respira o fusco doutro lado.
O suor que lhe corre gotejante
Debaixo dele um poço tem formado;
Porém o valeroso peito arqueja
Como que ávido ainda de peleja!

XI

Pouco a pouco o vencido, melhorando,
Lança ao fusco um olhar assim d’esguelha, (21)
E, vendo o inimigo em pé, fungando,
Abana tristemente com a orelha;
Mas a custo, por fim, se alevantando, (22)
Correu e se sumiu, como a centelha
Que, atiçar-se a fogueira, transparece
No espaço, e depois logo desparece. (23)

XII

O fusco não o segue; generoso,
Talvez, compadeceu-se do inimigo,
E, entrando no curral, mui jubiloso,
O vaqueiro exultou, sorriu consigo;
E quem sabe se disse: o valeroso,
Deste vasto curral amparo, abrigo,
Se eu fora trovador, (24) a tua glória
No templo gravaria da memória!

XIII

Outros touros em brigas afamados,
Vieram de lugares mui distantes
Medir os seus dous chifres afinados
Do fusco com os chifres perfurantes;
Mas voltavam vencidos e cansados,
Mais fracos e covardes (25) do que d’antes,
Temendo em qualquer touro ver um filho
Do velho lidador, feroz novilho.

XIV

Quando andavam nos campos vaquejando
Os vaqueiros daquela redondeza
Só falavam no touro que, brigando,
Mostrava desmedida, atroz fereza.
Alguns já lhe votavam ódio infando,
Sem causa, baseado na vileza
Do baixo coração, do baixo peito,
Denegrido da raiva e do despeito.

XV

Um daqui, despeitado, assim já fala:
Eu sei como vencer o valentaço:
Se os touros não o vencem, uma bala
Eu hei de lhe meter pelo cachaço. –
Já outro diz dali, da mesma escala:
Eis como poderei tolher-lhe o passo:
Na bebida fazendo uma gangorra, (26)
Depois de engangorrado, ele que corra. –

XVI

Mortais! – se da razão a voz preclara
Não levasse a verdade à vossa mente;
Se Deus, próvido (27) e bom, que nos criara,
Vos não desse “esse juiz reto e ciente:”
Obraríeis pior que a fera ignara,
Que o abutre voraz, que a vil serpente!
Seria a vossa história um feio misto
De horror e de torpezas – nunca visto!

XVII

Enquanto se maquinam negros tramas, (28)
Passa o fusco seus dias satisfeito;
Só cuida no capim e em suas damas (29)
Que têm lugar distinto no seu peito;
Seus olhos o seduzem como as chamas
Seduzem o escravo ao frio afeito;
Nem se lembra de nada, e, ruminando, (30)
Seu viver vai o fusco assim passando.

Comentários do Canto Segundo
1) Serralho. Palácio habitado pelo antigo sultão da Turquia, por príncipes e altos dignitários de estados maometanos, provido de um harém com muitas mulheres. Emprega-se também como casa de devassidão, lupanar. José Coriolano empregou serralho como o curral, em que as novilhas ficam à disposição do touro fusco.
2) Escumava. De escuma, do germânico skuma. Há a forma espuma, do latim spuma, daí sai o verbo espumar.
3) Porteira. Cancela.
4) Pend’ricalho. O poeta suprimiu a vogal u por necessidade de contagem de sílabas poéticas: penduricalho, coisa pendente para enfeitar. Na voz do povo se ouve pendurucalho, corruptela de penduricalho. Acrescente-se que esta palavra quase sempre se usa no plural.
5) Patacões. Aumentativo de pataca. Pataca, aqui tem velha acepção que encontro no Morais: mancha branca redonda.
6) Co’um. Com um. Supressão do m para reduzir duas sílabas a uma por necessidade de contagem de sílabas poéticas.
7) Cornada. Pancada com corno, com o chifre, chifrada. Corno é o mesmo que chifre, latim cornu.
8) Imigo. Por inimigo. Necessidade de contagem de sílabas poéticas. Muitos clássicos da língua empregaram imigo.
9) Alimia. Verbo alumiar. O mesmo que iluminar: “Tochas que mal alumiavam o aposento” (Alexandre Herculano – “Lendas e Narrativas” – I – 89). Conjuga-se regularmente: alumia, alumias, alumia, alumiamos, alumiais, alumiam. No Padre Antônio Vieira ora aparece alumeia, ora alumia. Esta última é a usada (cf. Francisco Fernades – Dicionário de Verbos e Regimes).
10) Papa-ceia. A estrela Vésper. O planeta Vênus quando se avista de tarde; estrela da tarde (Aurélio).
11) Radia. Verbo radiar, do latim radiare: lançar raios, luz ou calor. Do verbo radiar se fez outro – irradiar. O latim radiare deu ainda o português raiar.
12) Chamava-o seu senhor novilho estrela. Na acepção de apelidar, dar nome, o verbo chamar deve ser usado com dativo seguido de predicativo do objeto. Construção mais segura: chamava-lhe seu senhor novilho estrela.
13) Novilho estrela. Melhor estrelo. Estrelo – diz-se do boi que tem uma mancha branca na testa (Aurélio).
14) Espargia. Espalhava.
15) Mourões. Também mourão. “Esteio grosso firmemente fincado no solo, e a que se amarram reses destinadas ao corte, ou, para tratá-las, as reses indóceis” (Aurélio).
16) Belicoso. Disposto para a guerra, para a luta. Derivado de bélico, relativo à guerra, pelo latim belicu.
17) Sulfúreo. Da natureza do enxofre. Pelo latim sulfur, enxofre, e sufixo eo, que exprime semelhante a.
18) Maneia. Verbo manear, o mesmo que manejar.
19) Mais um louro. Louro foi empregado como glória, embora na qualidade de glória adquirida pelas letras, pelas artes ou pelas armas, sempre se emprega no plural – os louros.
20) Esbaforido. Particípio de esbaforir. Composto de bafo, arquejante, fatigado.
21) De esguelha. De soslaio, obliquamente, não em cheio.
22) Alevantando. O mesmo que levantando: “Sobe ao púlpito das igrejas do sertão e não alevanta a imagem arrebatadora dos céus” (E. da Cunha o “Os Sertões” – 147).
23) Desparece. Verbo desparecer, o mesmo que desaparecer. “Mas ambos desparecem num momento” – Camões (Veja – “A Chave dos Lusíadas” – José Agostinho – IV – 75).
24) Trovador. Poeta da Idade Média. Cantava sobretudo o amor integral, o amor puro e o amor carnal. Cristina Leite define-o como poeta compositor de formação acurada (Veja “Canções de Hoje – Canções de Outrora” – 17). Por extensão, cantor.
25) Covarde. Também correta a forma cobarde.
26) Gangorra. Veja, noutro local, as notas explicativas de José Coriolano de Sousa Lima.
27) Próvido. Há próvido e provido. Este último corresponde a prevenido, abastecido; o primeiro significa providente, que provê o futuro. A providência é a própria sabedoria de Deus. 28) Negros tramas. Corretísimo emprego de trama no masculino, correspondente a intriga, ardil (acepção figurada). A trama, feminino, corresponde a tecido: a trama do chapéu.
29) Damas. Senhora, mulher. Do francês dame. O poeta empregou como as mulheres do touro, as novilhas, as vacas.
30) Ruminando. Do verbo ruminar. O boi é ruminante, tem estômago com quatro cavidades pelas quais os alimentos passam sucessivamente, sofrendo entrementes nova mastigação. Ruminar é tornar a mastigar (os alimentos que já estiveram numa das quatro cavidades do estômago). Também se emprega ruminar figuradamente com o sentido de refletir por longo tempo.

Canto Terceiro
Argumento



Reveses do fusco – é levado a brigar fora – vence o inimigo – leva dous tiros – é capado, e assim mesmo ainda é temido – sua morte – conclusão.
I

Outra vez, e foi isso em fevereiro,
O fusco vinha urrando da malhada, (1)
Encontrou-o um tirano fazendeiro,
Que deu-lhe uma tremenda ferroada;
Mas, ao touro tão manso e curraleiro,
Vendo-lhe o dono a pá (2) ensangüentada,
Protestou contra um ato tão tirano,
Praticado por quem se diz humano!

II

Mas, acaso, pensais que a sede humana
Do sangue do inocente saciou-se?
Não pensei-lo: a razão, tão soberana,
Nos escolhos da inveja aniquilou-se!
Inveja! Teu estímulo dimana
Do sórdido egoísmo que chocou-se! (3)
E sofra o pobre que só tem instinto
As iras desse ser nobre e distinto!

III

Outro dia, em que o fusco ia passando,
Saiu a seu encontro um preto-touro,
E, como a ele foi desafiando,
O fusco, sem temer, lhe (4) foi ao couro:
O dono, que de parte estava olhando,
E que do baque (5) ouviu o grande estouro,
Caiu às ferroadas sobre o pobre,
Cuja ação certamente não foi nobre.

IV

O touro, que pra outro era valente,
Não sabia ofender a humanidade!
Entrou em seu curral muito doente,
Corria o sangue em grande quantidade.
Pobre bruto infeliz! E quem não sente
Teu sofrer nessa longa e triste idade?
Que vale ser humano na figura,
Tendo a alma de fera ou penha (6) dura?

V

Faltando ainda sarar de uma ferida,
Foi levado a brigar com um touro estranho,
Mas ele, vencedor em toda a vida,
Aos triunfos juntou outro tamanho.
Supunham que o veriam de corrida,
Vencido do cruel, audaz castanho; (7)
Porém, o seu senhor por fim de contas,
Do fusco inda (8) maldiz as finas pontas.

VI

Entretanto, nas forjas da maldade
Ao fusco se maquinam mais tormentos,
Filhos só da cruel perversidade
De peitos inumanos e sangrentos;
Nem respeitam do bruto a longa idade!
Só cuidam em pascer (9) ódios nojentos:
Sabei, posteridade, qu’eu não minto,
Nem tudo como foi descrevo ou pinto!

VII

E, se quereis saber a que cinismo (10)
Pode chegar o coração humano,
Vede com que crueza e barbarismo
Se trata o pobre bruto veterano.
Desgraçado mortal: teu egoísmo
Tem limites também, homem insano!
Não maltrates um ente tão mofino,
Que é obra, como tu, d’um Ser Divino.

VIII

Era tempo de inverno. O Pai celeste
Que os campos de verdura tapetiza,
Quando o tronco de folhas se reveste,
Quando a várzea de flores se matiza,
Havia dado chuva. Nem a peste,
Nem a fome que a gente atemoriza
Grassava no sertão, onde a fartura
Na colheita enxergava-se futura. (11)

IX

Num campo recamado de mimoso,
Do orvalho matutino rociado, (12)
Pastava o velho touro valeroso,
Sem ter no seu instinto um só cuidado;
Comendo aquele pasto saboroso,
Que o nome mostra ser tão delicado,
Talvez que não soubesse se vivia,
Só podendo-o saber, porque comia.

X

Perto havia um roçado verdejante
De milho, de feijão, de arroz viçoso,
Por causa do bom ano que, abundante,
Tornava o sertanejo esperançoso;
O capim tão gentil, refrigerante,
Era em roda mui grato e copioso:
Eis porque da campina sedutora
Fizera o fusco sua manjedoura. (13)

XI

Viu o touro pastando um bom roceiro,
Que nunca para ele teve um riso,
E, apontando a espingarda, mui veleiro, (14)
Fez-lhe fogo na testa de improviso.
O touro cambaleia... e, prazenteiro,
Ensaia o seu algoz cruel sorriso;
Mas, vendo qu’ele em pé inda ficava,
Quem o crera! – de novo lhe atirava!

XII

A segunda descarga foi mal dada,
Ferindo o velho touro mui de leve,
E, voltando-se co’a testa ensangüentada,
O vaqueiro o tratou, que à morte esteve.
Nunca mais sua voz tão entoada
Nos campos foi ouvida, nem mais teve
O curral por seu pai o touro bravo,
Que viu render-lhe preito tanto escravo.

XIII

Não teve, que o vaqueiro, desgostoso,
Capou (15) o desgraçado que, sentido,
Nunca mais fez ouvir o som famoso
De seu urro saudoso e destemido.
Agora, para um lado, desditoso,
Vive o pobre, chorando entristecido,
E, maior que o leão que a fab’la (16) conta,
Nenhum touro lhe vem, tocar co’a ponta!

XIV

É que todos receiam que ele possa,
Como dizem da fênix, (17) renascendo,
Enxota-los com a ponta, embora grossa,
Estragos nos cachaços lhes fazendo.
E nisso têm razão. Quem uma coça (18)
Uma vez suportou, segundo entendo,
Jamais dela se esquece em toda a vida,
Temendo a mão por quem foi despedida.

XV

Viveu penados anos. Seu cachaço,
Esse belo toutiço, tão forçudo,
Decresceu, já não tendo aquele espaço
Que outrora resumia força e tudo:
Do prazer à desdita há só um passo;
Contra a sorte não vale esforço, estudo:
E da sina quem há que se resguarde?
Há de certa cumprir-se ou cedo ou tarde.

XVI

Morreu o touro-fusco abandonado,
Posto que mui querido do vaqueiro,
Por ter-se para um ermo retirado,
Onde deu seu gemido derradeiro.
E, tendo, felizmente, escorregado
De cima, onde morreu, dum grande outeiro,
Rolando, foi parar nu fundo do abismo,
Defeso (19) do urubu ao barbarismo.

XVII

Possam meus versos rudes, sem beleza,
Entre meus comarcãos (20) erguer um brado,
Nos vales do sertão e n’aspereza,
Fazendo o touro-fusco celebrado;
Possam mostrar a nobre gentileza
Do bruto que entre os seus foi respeitado;
Possam mostrar que quem os brutos canta
Do mundo ao Criador a voz levanta.

Comentários
1) Malhada. Lugar onde comumente se reúne o gado, para ser trabalhado; lugar onde o gado costuma dormir, em lotes (uma das acepções de Aurélio, a nordestina).
2) Pá. Omoplata da rês.
3) Que chocou-se. No tempo em que José Coriolano poetou, ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se escreve: que se chocou.
4) Lhe foi ao couro. Excelente emprego do lhe em função possessiva: couro dele, seu couro.
5) Baque. Queda, choque.
6) Penha. Rocha, rochedo.
7) Castanho. Cor de castanha.
8) Inda. Por ainda. Forma muito velha no português.
9) Pascer. O mesmo que pastar. Na conjugação o verbo pascer não tem as pessoas terminadas em a e o, com exceção da primeira do plural do subjuntivo presente: pasçamos.
10) Cinismo. Empregado no sentido de falta de vergonha. Palavra de origem grega: de Kyon, Kynós, cão. Em cínico há o sufixo iço, relativo a. Na antiguidade, cinismo era o sistema dos filósofos cínicos – aquele que “desprezava as conveniências sociais”. O mais conhecido representante da filosofia cínica foi Diógenes – “rudeza e energia de caráter”. Divisa da escola: “supressão de todas as necessidades sociais”. Pregavam ainda os cínicos: o que é natural não é nunca imoral. Praticavam os atos naturais como os cães – daí cinismo corresponder a falta de pudor, desavergonhamento.
11) Onde a fartura na colheita enxergava-se futura. Ordem inversa. Pura construção imitada de Camões. Entende-se: onde na colheita se enxergava a futura fartura.
12) Do orvalho matutino rociado. No latim vulgar existiu talvez o verbo roscidare, com a significação de cair orvalho. Esse roscidare é a fonte do português rociar, orvalhar, umedecer, e do substantivo deverbal rocio, o mesmo que orvalho. Embora rociado seja também umedecido, penso que a construção é redundante: do orvalho matutino rociado, ou seja, do orvalho orvalhado.
13) Manjedoura. Tabuleiro em que se deita o alimento para o gado. O poeta diz, entretanto, por extensão: fizera sua manjedoura da campina sedutora. O touro comia no campo.
14) Veleiro. Veloz, rápido.
15) Capou. Verbo capar. Extrair ou destruir os órgãos genitais.
16) Fáb’la. O mesmo que fábula. O poeta suprimiu uma vogal por necessidade de diminuir o número de sílabas poéticas.
17) Fênix.
18) Coça. O mesmo que surra.
19) Defeso. Proibido.
20) Comarcãos. Plural de comarcão. Que vive numa mesma comarca, numa mesma região, num mesmo território.

Notas ao Touro Fusco:
Mimoso
É o capim mais delicioso para o gado. O seu mesmo nome está indicando o que ele é.
Massapé
Assim geralmente chamam a uma terra preta e dura (glutinosa quando chove) semelhante à terra que cobre uma lagoa, quando seca.
Espaço
Boi espaço é chamado aquele que tem os chifres muito abertos: daqui o uso vulgaríssimo de se dizer – chifres espaços.
Combucos
Dizem que um boi ou touro é combuco, ou tem as armações ou chifres combucos, quando, descrevendo estes, cada um, uma curva, as duas pontas se ficam olhando ou apontando uma para a outra.
Fusco e Liso
São nomes com que se designam duas qualidades dde cores entre o vacum somente.
Cupim
Assim chamam o toutiço dos touros pela semelhança que tem com esse pequeno morro de terra, levantado ás vezes da superfície do chão, outras do meio de uma moita, ou já finalmente apegado a um tronco, a um ramo, onde residem os insetos do mesmo nome etc.
Lavrado
Touro, vaca, bezerro etc; diz-se somente a respeito do vacum.
Quem Urrava
O relativo latino quis, de cujo acusativo quem se deriva o relativo português – quem, - tem aplicação tanto às pessoas como às cousas; o relativo português porém, se aplica exclusivamente às pessoas. Usando eu dele do seguinte modo: “quem urrava”, tive em vistas o costume que há entre os nossos vaqueiros de urrarem, muitas vezes, nos matos, ou porque se vêm perdidos, ou para darem sinal de que já se acham no ponto de reunião convencionada.
Dos touros vencedor, nunca vencido
Este verso me foi sugerido por Bocage.
Novilho
Sem embargo de significar esta palavra – boi novo, - contudo, ela se dá no sertão ainda mesmo aos touros mais velhos.
Gangorra
É uma espécie de armadilha que se faz para prender os animais bravos, ordinariamente entre estreitos de serra ou boqueirões. Consta de um pequeno curral em roda de uma cacimba, ou aguada, com uma entrada ou porteira por onde facilmente entra o pobre bruto, e com uma saída que importa para ele um labirinto mais enredado do que o famoso de Creta. O animal engangorrado ou se deixar pegar ou terá de romper ou saltar a cerca.
E por que não, se é doce a liberdade, e se já se foi o tempo das Ariadnas?
Castanho
A cor castanha é tão vulgar no cavalar como no vacum.
Aquele que quiser ridicularizar os meus dous últimos versos da primeira oitava:
“E eu, louvando do bruto o fino instinto,
Mais amor e respeito por Deus sinto;”
Ou os dous finais da última oitava:
“Possam mostrar que quem os brutos canta
Do mundo ao Criador a voz levanta,”
lembre-se que o criado é um reflexo de Deus, por isso mesmo que é obra de suas mãos. “Pelos Santos se beijam os altares.” Seja, em fim, mais filósofo, não confunda as cousas, e verá que me sobeja razão. Ao menos a minha intenção foi pura. Deus o sabe.

Olinda, 22 de fevereiro de 1856.

Poesias Inéditas
(do arquivo do bisneto Alexandre Sauly Mourão, em originais escritos pelo próprio poeta)

A Bela Matuta Avarenta


Menina, dize se queres
Que eu seja teu arlequim?
“Vá, Senhor, o seu caminho,
Não bula comigo assim.”

Responde-me, anda: permite
Que eu seja teu campeão?
“Eu não gosto destas graças,
E nem meu pai também, não.”

Valha-me Deus! – quero dar-te
De marido a minha mão.
“Quem sou eu! pobre matuta,
Não zombe da gente, não.”

Mas que importa? – eu tenho posses;
Anjinho, que queres mais?
“Meu Senhor, deixe-se disso,
Tenho medo de meus pais.”

Ora... teus pais, matutinha,
Hão de gostar da união...
“Mas, Senhor, você é rico,
Ou coitado pobretão?”

Menina, tenho no banco
Meus bons continhos de réis.
“Pode dar à sua noiva
Brincos, colares, e anéis!”

No curral anualmente
Mil vaquinhas berram: mom!...
“Eu gosto tanto de queijo!
Meu Senhor, não acha bom?”

Muito bom. E os mil bezerros
Saltando, berrando: beé!...
“Não há nada mais gostoso
Do que leite com café.”
Também as minhas boiadas
Nas feiras vendem-se bem.
“Meu Senhor, que bons vestidos,
Que panos que as praças têm!”

Muito lindos. Também tenho
Cem cativos a lavrar.
“Meu Senhor, é de verdade,
Queres comigo se casar?”

Tenho terras que produzem
Doce cana e frutas mil.
“Meu Senhor, diga uma coisa:
Eu sou feia ou sou gentil?”

Espera! – tenho rebanhos
Que cobrem prados e val.
“Meu Senhor, eu não sou bela,
Quem dera que eu fosse tal!”

Tenho também uma carta
Galardão do meu saber.
“Ai! Doutor, se estes meus lábios
Pudessem risonhos ser!”

Oh! Muito!... Enfim, sou poeta
E canto só versos meus.
“Poeta!... feliz daquela...
Ai de mim! valha-me Deus!”

Mas... que tens? por que suspiras
Mudando de cor assim?
“Que tenho! – sou desgraçada!
Adeus! - coitada de mim!”

Vem cá, minha matutinha,
Contigo eu quero casar.
“Ai, meu Deus, vou ser ditosa!
D’alegre disse a chorar.”
Recife, 1855

A Compadecida

Seus lábios
Purpúreos
Ferinos
Não são;
Se falam,
Proferem,
Desferem
Paixão...
Co’a doce
Voz dela
Que bela
Moção!

Quisera
Tocá-los,
Beijá-los,
Meu Deus!
Quisera
Fruí-los,
Possuí-los
Por meus!
Mas eles
São dela,
Da bela,
Só seus!

Um dia
Toquei-lhe...
Falei-lhe
De amor;
Sorrindo
Me disse
Que eu visse
Melhor:
Mas ela
Fingiu-se,
Traiu-se
Na cor.
No rosto,
Nas faces
Fugaces
De amor,
Sombreados
De leve
De breve
Pudor,
Se acende
Ligeiro,
Fagueiro
Rubor.

Co’a esp’rança
Peguei-lhe,
Toquei-lhe
Na mão;
Me disse
Com fria
Sombria
Expressão:
“Poeta,
Tu mentes,
Não sentes
Paixão.”

Eu minto!...
Pois mudo,
Sisudo
Fiquei
E pranto
Copioso
Penoso
Chorei!
“Que sofres?
(Pergunta
E ajunta)
Não sei!”

De novo
Toquei-lhe,
Falei-lhe
De amor;
As faces
Coraram,
Mudaram
De cor;
Mas ela
Não disse
Que eu visse
Melhor -



Já bate
Seu peito
Do efeito
De amor!
“Sou tua
Te atesto.
Protesto,
Cantor!”
Nem quando
Falava
Mudava
De cor!

Soledade (Recife) 5 de junho de 1855

Fugace = adj. Poético. Ver Fugaz

A Escrava

Já fui feliz e ditosa
Nessas terras de além-mar,
Hoje sou desventurosa,
Vivo a gemer, a chorar!
Ai minha infância mimosa!
Ai vida de tanto amar!

Que vezes sobre um rochedo
Eu via a fonte correr!
Nela plácido e quedo
O meu semblante a rever!
Nessa fonte, onde um segredo
Há de com ela morrer!

Hoje aqui sou desprezada!
Desprezam té minha cor
Tão mimosa, aveludada,
De tanto lustre e primor!
Em cima disto, coitada!
Tenho um tirano senhor!

Minha voz tão maviosa
Como as brisas de além-mar,
Já não é mais sonorosa,
Já nem quando diz – amar –
Parece a brisa saudosa
Na palmeira a ciciar!

Fui livre como as areias
Do meu país livres são;
Cantava como as sereias,
Que a cantar no mar estão;
Nem já me corre nas veias
Hoje o sangue como então!

Allah! Mil vezes maldito
Quem do meu país natal
Roubou-me, erguendo o grito
Que ecoou pelo areal!
Allah! Mil vezes maldito
Esse monstro tão fatal!

Viverei desventurosa,
Viverei sempre a chorar;
Que importa se fui ditosa
Nessas terras d’além-mar!
Ai Allah! Que voz irosa!
É meu senhor a ralhar!...


Recife, 19 de abril de 1855

A Louquinha

Eu vi-te à tardinha
Co’as outras brincando,
E eu lá escondido
Na fresta espiando.

Tu eras tão bela!
Teus almos brinquedos
Que lindos não eram!
Tão simples, tão ledos!

Louquinha, louquinha,
Sorrias, sorrias,
Dançavas, dançavas,
As palmas batias!

Tu eras a fada
Das fadas da festa,
Alfim eu julgava
Te olhando da fresta.

Meu Deus! – que assembléia?
Gentil, galhofeira,
Na quinta encenada
Ao pé da mangueira.

E tu, meu anjinho,
Sorrias, sorrias,
Dançavas, dançavas,
As palmas batias!

Almos = puros
Alfim = afinal, enfim


A Loureira

Eu a vi que divagava
Ao jardim colhendo flores,
E que risonha que estava!

Misturavam-se os odores
Do jasmim, da bela rosa
Com seus suaves olores.

E a louquinha mariposa
Já deixava a flor colhida
Por outra flor mais mimosa.

Era fado tanta lida!
Talvez fosse, mas sua alma
Por minh’alma foi descrita.

Ou era capela ou palma
Que devia ser formada
Em tributo à estação alma?...

Não, que a virgem delicada
Era o símb’lo da inconstância,
Amava como a fragrância
Ama a brisa enamorada.

À Loureira

Linda virgem, de faces coradas,
Que escarneces dos laços do amor,
Estas juras assim refalsadas
Hão de um dia abismar-te na dor...

Não vês borrifadas
Do fel da traição
As vozes fingidas,
Que afetam paixão?

Não dizem verdades, são vozes mentidas,
Que juram perjúrios – não jures assim;
Depois não profiras palavras sentidas
Sem ter mais remédio, não gemas por fim.

No rol das perdidas
Não entres, ai! – não;
Olvida essas falas
Que afetam paixão.

Teu riso enfeitiça, nos prendes, se falas,
Mas todos se julgam amados por ti;
No olor se perfumam que a todos exalas,
E todos apostam que a sorte lhes ri!

No engano te embalas...
Que má tentação
Sorrisos falsários
Que afetam paixão!

Talvez descuidosa, caprichos tão vários,
Um dia te imerjam nas frágoas do horror,
Envolvam te as carnes em rotos sudários
E as faces te sequem da vida no albor!

Tiranos, contrários
Do teu coração
São teus devaneios
Que afetam paixão.

Desdenha esses atos que aos olhos são feios
Da virgem discreta, do mundo e do céu,
Deslustram, profanam poluem-te os seios
Tão puros ainda! Receia o labéu!

Despreza esses meios
De vil sedução,
Que forjam mentiras,
Que afetam paixão.

Não temes os males?... loureira, suspira!
Suspira dos males que encerra o porvir.
Depois não te punjam remorsos que a lira
Te afronta nos males... que podem surgir

Quem é que delira?
Quem carpe-se em vão?
- Quem creu falsas juras,
Que afetam paixão.

Oh! Quão transitórias são essas venturas
Que a mente te escalda! Recua, mulher,
Recua do abismo, que em longas torturas
Aguarda tragar-te... nem julga-as sequer!

Misérias futuras,
Que má tentação!
Te cavam amantes
Que afetam paixão.

Não zombes do mundo; teus olhos brilhantes,
Que tanto seduzem, falando de amor,
Somente se cravem – gentis – fascinantes -
Nos olhos do jovem que amar o pudor.

Despreza inconstantes,
Não jures em vão,
Não crê traficantes
Que afetam paixão.

Recife, março de 1856

Labéo = desdoura, desonra
Refalsado = muito falso, desleal, fingido
Imergir = afundar
Labéu = desdouro, desonra, mancha infamante


À Meia Noite

Salve, horas melancólicas,
Repouso dos mortais;
Em vós o humano espírito
Não dá suspiros e ais,
Nem pensamentos tétricos
Voltejam-lhe fatais.

Oh! Quanto são dulcíficos,
Ó sono encantador!
Os teus efeitos mágicos,
O teu mago torpor!
Oh!Que horas tão propícias
Em que se esquece a dor!

Nem freme o vento alígero,
Nem canta o sabiá;
É paz, tudo é silêncio,
Dormente tudo está;
Somente o poeta estorce-se
Cismando triste já!

Sonhou! Talvez intérprete
De algum cruel porvir,
Viu sobre frescos lábios
Veneno atrós cair,
Que os rubros lábios cândidos
De morte fez tingir.

Vós, horas melancólicas,
Repouso dos mortais,
Que a todos dais carícias
Por que suspiros e ais
Ao bardo marasconia
Somente tristes dais?

Recife, março de 1855

Estocer = debater
Dulcifico= ameno, suave, grato
Mago= mágico
Alígeros = que tem asas, muito veloz

A Pobrezinha Medrosa

Minha mãe, eu tenho frio,
Grande tempo doentio!
Toda a tremer!...
Minha mãe, antes a morte,
Não sei como se suporte
Tal viver!

E se eu que sou tão mocinha
Sinto que a vida definha
Por modo tal;
Ai, minha mãe, seu tormento
Deve em tempo tão friento
Ser sem igual.

Venha em meu seio aquentar-se,
Minha mãe, venha deitar-se
Comigo aqui.
Minha mãe há de ter frio!
Tempo assim tão doentio
Eu nunca vi!

“Como está tão caridosa
Eu já sei, coisa medrosa,
Isso o que é
Não crê que o demo ande à toa
Tentando a gente que é boa
Que em Deus tem fé.”

No entanto, a pobre velhinha
Sai da mísera caminha
E adiante cai;
Levanta-se e sempre chega
À filha, a qual se aconchega,
Órfã de pai.

A Poesia

Quem é que veste de fragrantes flores
O verde campo que o matiz iria?
Quem é que pinta-o sem pincel e cores?
- A poesia!

Quem é que torna d’esmeralda os mares?
Quem é que a noite faz melhor que o dia?
Quem nos consola dos cruéis azares?
- A poesia!

Quem nos cantores que no ar passeiam
Nota primores, divinal magia,
Quando seus hinos matinais gorjeiam?
- A poesia!

Quem cisma e geme, se do frágil ramo
Viu a rolinha que a cismar gemia?
Quem ama os infelizes como eu amo?
- A poesia!

Quem descortina num olhar modesto,
Que o chão afaga quase todo um dia,
A maior prova de um amor honesto?
- A poesia!

Quem d’entre os lábios da consorte amante
Perscruta o sonho que o Senhor lhe envia
Co’o fido esposo – no sorrir tão crente?
- A poesia!

Quem sonda o seio de u’a mãe zelosa
E afetos nota que só ela cria?
Pois quem suspira, se ela está chorosa?
- A poesia!

Quem no sorriso da gentil criança
Descobre augúrios que ninguém sabia?
Quem vê sorrindo, lh’acenar a esp’rança?
- A poesia!

Quem neste peito me afervora o sangue?
Depois quem fá-lo estremecer que esfria?
Quem robustece-o, quem o torna exangue?
- A poesia!

E quem o mundo num balanço brando
Qual ama terna que o infante cria,
Meigo embalança como quê ninando?
- A poesia!

Harpa saudosa, que harmoniza o mundo,
Íris formoso que no céu radia,
Sentir sublime de um pensar profundo,
- És - poesia!

Recife, 1856

Fido= fiel, firme, constante.
Iria= que matiza, reveste com as cores do arco-íris.

A Uma Confessada
(de quinta feira santa)


Não quisera das aves a inocência,
E nem do infante a candidez do riso;
Pecador, eu também me achara indigno
Das purezas que encerra o paraíso.

Quisera que minh’alma hoje estivesse,
Tão amiga de Deus que o céu habita,
Tão sincera, tão pura e escrupulosa
Como está de Maria a alma contrita.


Príncipe Imperial, 23 de março de 1853

A Verdade Homeopática
(oferecida pelo autor, depois de uma
convalescença ao Ilmo. Sr. Dr. Sabino Olegário S. P.)

Quando a verdade, luminosa, esplêndida,
Na terra ingrata – se espandiu – raiou
Embora irrite-se a calúnia esquálida,
Fala a verdade, foi Deus quem falou
Profanas guerras se hão traçado – inglórias, -
Contra a palavra que plantou Jesus,
Porém sucumbem, e o estandarte deífico
Mostra a verdade, que se lê na cruz.

Como se fora assolar, notívago
Ladrão que à estrada p’ra roubar saiu,
Do Padre o Filho no estalar do látego
Sente torturas quais ninguém sentiu!
Sente seus membros divinais – tão cândidos!
Serem quebrados por tormentos crus!
Mas a inocência que em seu rosto expande-se
Mostra a verdade, que se lê na cruz.

Verdade! – nome que eu venero – angélico –
Mago atributo, que revela Deus,
Não temas, zombes da calúnia esquálida,
Como a virtude dos amigos seus
O sol não vede sepultar-se fúlgido?
Porém do ocaso ainda o sol não luz?
São seus reflexos: a verdade é lúcida,
Como o cordeiro que sofreu na cruz.

Quanto mais louca de prazer satânico
A negra inveja, da calúnia audaz
Amiga intrínseca, ou de vãos espíritos
Prole malévola, imbecil, falaz,
Mais presto a queda se lh’ antolha - mísera!
E a louca fica se estorcendo em flux
D’angústia e dores, pois o céu é próvido,
Como o cordeiro que sofreu na cruz.

Oh tu que notas a ciência antíloqua,
Que à morte rouba dos umbrais do horror,
A triste e magra, macilenta vítima,
Que a morte untara já de seu palor;
Curva a cabeça diante a dose ímplica,
Que em simples gole de um licor – cristal,
Livra da peste sem pungente e cáustico,
E que o mal cura, destronando o mal.

Rendo mil preitos ao varão exímio
Que o bom sistema no país plantou;
Devido culto, não é culto idólatra
Esse que ao médico o mortal votou
Não rendo culto ao poder estólido,
Nem ao guerreiro destrutor, cerval;
Mas rendo ao sábio que repele a cólera,
E que o mal cura, destronando o mal.

A todos rendo, cujo peito sôfrego
Ao bem dos homens sacrifica o seu,
Amo os eflúvios da verdade lúcida
Que tem seu trono e resplendor no céu.
Amo o homeopático sistema símplice
Que em simples gole de um licor cristal
Livra da peste sem amargo e cáusticos,
E que o mal cura, destronando o mal.

Viva cem anos a teus encômios
Pelo sistema que o viver me deu,
Que assás amado por dois ..........
Que vida possuo; - que feliz sou eu!
Nunca exprimira do sistema altíloquo
As maravilhas – exprimi-las – qual!
Como se a dose é que supera a cólera
E que o mal cura, destronando o mal.

Olinda, dezembro de 1855

Encômio = aplauso, elogio, gabo
Simplice = ingredientes de plantas, médicas
Cerval = feroz, ferino
Estólido = estúpido, estouvado, parvo
Palor = palidez (poético)
Antíliquo = sublimidade ou elevação da linguagem, dotado de altiloquência
Provido = providente
Deifico = pertencente ou relativo a Deus
Flux = jorro em abundância
Antolho = por-se diante dos olhos, que se oferece a imaginação
Votou= declaração, ordinariamente por escrito,para afirmar que alguém é digno de elogio

A Virgem do Sepulcro

Tu, virgem do sepulcro, triste e pálida,
Vem meus males sanar, vem socorrer-me;
Cinge-me o colo com teus braços gélidos,
Vem num beijo de morte aos céus erguer-me.

Oh! Delícias da campa! Anjo fantástico,
Não queiras espaçar meu terno gozo;
O mundo não receis, que um manto místico
Nos veda aos olhos maus do curioso.

A lousa estremeceu! Espectro longévio
Lá surge colossal, a mim se lança!
Nos braços aguardei-o! instantes mágicos
Nos seus braços frui sem esquivança!

Oh virgem sepulcral! Teu rosto lívido
Resume tal condão! Virgem do mundo,
Detesto os risos vossos, - são intérpretes
De prazeres mentidos, - mal profundo:

Um beijo, quanto sabe! – frio e cândido,
Doce beijo do túmulo! – tal doçura
Não encontra o mortal nos beijos tépidos
De terrena, animada criatura!

Virgem! Dá-me outro beijo, embora extinga-se
Para mim esta vida: que val ela?
Contigo descerei também ao túmulo,
Ó virgem do sepulcro, ó virgem bela!

E tu queres partir... e eu melancólico
A sós co’o meu delírio... ai! Piedade!
Um som, visão querida, um som por último
Que tétrico ressoe nesta soedade!

“Um som... profano! um som... oh! tu, meu cúmplice
Foge, vai-te, que o céu contra ti brada
Adeus, ó desgraçado! Um beijo único
A vítima do amor, à condenada! ...”

Recife, 1856

Longevio = que tem muita idade, macróbio, duradouro
Ressoe = repete o som, ressoa, torna a soar
Soedade = saudade


Ao Luar Sobre a Areia




Junto de uma clara via
Sobre a areia – me assentei,
E pensando em meu futuro
Mal seguro – suspirei!

Era a noite tão saudosa!
Radiosa – do luar,
Convidava o desgraçado
No seu fado a cogitar

Eu formei tantos castelos
E tão belos! – porém vi
Que as bases que os sustentavam
Franqueavam – mesmo ali!

Deixei mentidos tesouros,
E nos louros... pensei eu!
Tive uma sublime idéia...
Divanea... – la morreu!

Pensei no tempo passado
Suspirando – que passei
Com meus pais e com meus manos,
Tempos lhanos – que eu gozei!

Pensei na vida presente,
De repente – solto um ai!
Que, destilando amargores,
Dissabores – lá se vai...

Pensei, afinal, na morte!...
Num transporte – me arroubei!
E só na morte pensando
Vi, chorando, - que pensei!

Recife, 1856

Mentido = falso, fingido, ilusório, vão
Lhano – sincero, flanco, cândido
Fraquear = desfalecer, perder o vigor
La = forma arcaica do pronome possessivo oblíquo da 3ª pessoa
Fado = destino


Caminho do Céu
(pela cólera)

Quereis que eu vos diga quais são os caminhos
Que o homem conduzem direito p’ra o céu?
Pois eles são fáceis, são bens comezinhos:
Purgai-vos das culpas, de todo labéo.

Quereis que eu vos diga que meios mais prontos
Nos podem do cólera-morbo livrar?
Pois eles são fáceis: correi, ide aos pontos
Por onde ele grassa socorros levar.

A mente ocupada na voz do Evangelho,
Os olhos humildes pregados na Cruz,
Vereis os caminhos e o sábio conselho
Que os passos nos movam a ter com Jesus.

Co’a mente abrasada de amor caridoso,
Co’a alma incendida do amor do cristão,
Correi denodado, correi piedoso
À cama do enfermo colérico irmão.

Uni vossos votos aos votos constantes,
Às vozes, às preces dos filhos do Altar;
Cumpri quanto dizem: vereis incessantes
O ousado gangético ao certo voltar.

Oh! quantos que tendo delírios mimosos
Donosos e cheios dos riso do amor,
E agora feridos aos golpes da sorte,
Da morte, murchando dos anos na flor!

E quantos não morrem à falta de meios?
E quantos sucumbem à falta de pão!
Cobarde quem foge, que olha a receios,
Deixando sozinho morrer seu irmão!

Aquele que geme sem meios – prostrado –
É membro do corpo, do ser social:
Soframos com ele, se sofre, coitado!
Recursos lhe demos que sanem-lhe o mal.

A Deus nossas frontes humildes curvemos:
Que vezes há males que vem-nos por bem!
Sondar os mistérios do Eterno podemos?
Oh! não, que é defeso sonda-los alguém.

Irmãos, se vós vísseis num leito de dores
Cercado de angústias, de penas cruéis,
Sem esses consolos, sem esses primores,
Que ao leito nos trazem amigos fieis;

Nos seis gosmentos do peito penado
Teríeis sorrisos? Teríeis prazer?
Oh! não: novas chagas no peito chagado
Veríeis minarem o vosso viver!

À mingua não findem os dias mimosos,
Donosos e cheios dos risos do amor,
Do filho, do esposo, do pai tão requerido
Ferido aos embates, do mal, do furor.

Olinda, em férias, fevereiro de 1856

Gangético = que se refere ao Rio Ganges e às pessoas das regiões que o margeiam
Defeso = proibido, vedado para efeito de entrada
Donosos= donairoso, primoroso
Cobarde = quem não tem coragem, medroso, timorato, traiçoeiro, covarde


Ciúme

Quem nunca viu a desgraça
No mais terno e grato amor,
Não sabe que em fina taça
Se bebe infecto liquor.
Não sabe que a fonte pura
Correndo pela planura,
Refrescando o prado, o val,
Fecunda a planta mimosa,
Como a planta venenosa,
Que encerra o gérmen do mal.

Quanto se adoram! Que vida!
Que sonhos que são os seus!
Quanta ventura fruída!
Quanto amor, dirão, meu Deus!
Sim, amamo-nos, é certo,
Porem vede com incerto
No peito o mal germinou!
Como o tirano ciúme
Me queima o peito co’o lume
Que a mão rival atiçou!

Ai! nosso amor quanto é puro!
Quanta ela é pura, o meu bem!
Ai! quanto adoro-a, seguro
De não competir-me alguém!
Seguro!... quem m’o atesta?
- É esta a dúvida – é esta
Que o peito me traz em dor:
Vede vós, vede a desgraça
Bebida por fina taça
No mais terno e grato amor!

Ai! quanto sou desgraçado!
Quanto o sou por ser feliz!
Mesquinho por ter amado
Por ser amado infeliz!
Infeliz por ter na mente
Um vulcão sempre fervente
Que intenso amor acendeu!
Infeliz por ouvir dela
A meiga jura singela,
Quando amar-me prometeu.

Um dia achei-a sozinha,
Tendo a face sobre a mão:
Ai! Que tens, lhe eu disse asinha,
Meu anjo, minha afeição?
Suspirou! Ficou mais triste!
Mas meu peito, qual antiste,
Seus males adivinhou!
Desde então fui desgraçado
- Por amar, por ser amado
Do anjo que suspirou!

Eram por mim seus suspiros,
Seus ternos ais eram meus;
Seus queixumes, eu inquiro-os,
Por mim elevem-se a Deus?
Ela pedia ao Supremo
A posse de um gozo extremo,
Sem mescla de dissabor;
Porém... o voraz ciúme
Meia queima o peito co’o lume
Que a mão rival atiçou!

Ai! Nosso amor quanto é puro!
Quanto ela é pura, o meu bem!
Ai! Quanto adoro-a, seguro
De não competir-me alguém!
Mentira! Que eu ardo em zelos
Até de ver-lhe os cabelos
Co’o a brisa brincando ao ar!
Não quero que olhem pra ela;
Mas sua feição singela
Vive tudo a avassalar!

Recife 1856

Val = o mesmo que vale
Fruída = desfrutada, gozada, possuída
Antiste = antístite = grande sacerdote


Coragem
(Pela cólera)

O horizonte parece turvado,
A borrasca, talvez, vai surgir;
La negreja o gangético ousado,
Que nos tenta, nos quer engolir:
Não se torça o semblante ao malvado,
Que há de alfim cabisbaixo fugir.

Prevenimos de há muito o ataque,
Eis-nos firmes, leais campeões,
Se vier, não tememos o saque,
Que será repelido a limões;
E o tirano, rolando no baque,
Morrerá em cruéis convulsões.

Não é esse o recurso somente
Que nós temos: a dose aí está;
Que há de amanhã estorvar do impudente,
E fazê-lo partir-se de cá;
Há de o ímpio voltar tão doente
Que aqui nunca jamais voltará.

Mas no caso que venha o tirano
Desejando imolar-nos aos mil,
Resistamos com ar soberano
Essa fera do Ganges tão vil;
Nem saibamos temer ao insano,
Já que somos um povo gentil.

E lutemos enquanto no peito
Restar viva uma só pulsação,
Nem voltemos o rosto ao aspeito
Do colérico enfermo cristão;
E os que em torno velarem do leito,
Que louvores, que prêmios terão!

O cristão que ao doente socorre,
Que vigia-o no leito da dor,
Também tem quem lhe assista, se morre,
E o console nos transes de horror;
Mas àquele que ao leito não corre,
Té na hora lhe falta o Senhor.

É nas crises que o homem se mostra,
Sobranceiro tal qual fê-lo Deus;
É nas crises que o homem assostra
Quer os males alheios, quer seus;
É na luta que o exército prostra
Duras hostes, ganhando troféus.

E se o mal agredir-nos intenso,
Tão intenso qual é seu furor;
Resistamos; pois Deus que é imenso
Padeceu, sendo Deus, maior dor!
Resistamos, que em cima propenso
A salvar-nos lá está o Senhor.

O horizonte parece turvado,
A borrasca, talvez, vai surgir;
La negreja o gangético ousado,
Que nos tenta, nos que engolir:
Não se torça o semblante ao malvado,
Que há de alfim cabisbaixo fugir.

Olinda (em férias) 1856

Estorvar = embaraçar, importunar, dificultar, impedir a liberdade dos movimentos.
Impudente = que não tem pudor, descarado, sem vergonha

Coragem
(Pela Cólera)
(Incompleta)

Lira, não quero esses cantos
Que outr’ora sabias, não;
Nem também sentidos prantos
Que afligem o coração.
Quero um canto sublimado
De um amor acrisolado
De um peito cheio de fé,
Que vá na Página Avulsa,
Por onde a cólera pulsa,
Falando a todos de pé.

Quero um canto que se diga:
“Coragem, povo cristão!”
Que, consolando, prossiga
Em sua nobre missão;
Um canto cheio de esp’rança
Como a voz que não descança
Mandada, vinda do céu;
------------------, heróico povo,
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-------------- do inimigo
que a vida nos vem roubar;
Temos em Deus um abrigo,
Devemo-nos consolar.
Resistamos corajosos
Aos estragos horrorosos
Que surgirem dentre nós;
Resistamos incessantes
Aos ataques fulminantes;
Honramos nossos avós.

Honremos, que um povo bravo
Não curva nunca a cerviz
Como faz o povo escravo
Em uma crise infeliz.
Corramos, ó gente nobre,
Ao leito em que geme o pobre,
Lutando presto a morrer;
Corramos, - à parte a vida,
Que é melhor morrer na lida,
Do que cobarde viver.

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Sem esses louros da lida
Que falam ao coração!
- É bom morrer-se lidando
Aos seus um nome ligando
Que o futuro abrace – além;
- É bom sucumbir à morte,
Morrer porém como um forte
Que a Deus teme e a mais ninguém.

Lira, não quero esses cantos
Que outr’ora sabias, não;
Nem também sentidos prantos
Que afligem o coração.
Quero um canto sublimado
De um amor acrisolado
De um peito cheio de fé,
Que vá na Página Avulsa,
Por onde a cólera pulsa,
Falando a todos de pé.

Olinda (em férias) 31 de janeiro de 1856

Cerviz = a parte posterior da cabeça

Delírio de Poeta

Pousa a pena... e tristonho medita
No futuro que imerge-se além...
Mil idéias na mente suscita,
Que não sabe, não pensa-as ninguém!
Ei-lo – altivo – sorrindo – orgulhoso –
Ei-lo – os olhos cravando no chão!
Quem motiva este estado penoso?
- Um lampejo talvez da razão.

Ele pega da pena – sem tino –
Uma estrofe lá faz no papel;
Não são frases: – seu estro é divino,
Que lhe ferve na mente em tropel!
E seus olhos na estrofe correndo,
Ele sente queimar-lhe um vulcão!
Quem agita-lhe a mente fervendo?
- Uma nuvem talvez de ilusão!

Pobre moço! – talvez se despenha
Nos abismos do incerto porvir!
Muito estreito p’ra que se contenha
Nele a idéia que esteve a nutrir!
Mas seus sonhos desfazem-se logo
Aos ditames da clara razão:
Finda a palha, também finda o fogo,
- Cinzas restam, – nem mais combustão!

Olinda 1856

Despenha = lançar de grande altura, precipitar.

Desalento

Tanta lida, meu Deus, tantos martírios
Por tão curto viver! Fugaz esp’rança,
És como o meteoro-passageiro,
És como o sonho – vem; por ti minh’alma
Em vão suspira e geme!

Há quantos anos vivo neste mundo,
Labirinto infernal, cismando amores,
Ruminando na mente escandecida
Um futuro risonho a despontar-me!

Meus amores, meus sonhos de futuro,
Meus dias minhas tardes, minhas noites
Mal dormidas insones, meus haveres;
Porém amores vãos, só pressentidos –
Eis toda a minha vida!

Esperança por que me abandonaste?
Lá quando em infante a via a amara
Bordando os horizontes no meu peito
Eu sentia o viver pulsar-me em ondas.

Porém hoje que eu sinto frouxa e gasta
A mola do sofrer, o que me resta,
Depois de tanta dor, de tantos males,
Depois das mil provanças deste mundo?
- Somente o desalento.

Embora! Gemerei, nunca humilhado;
Não crerei nesse amor que me sorria
Com risos de ouropel, nem nos encantos
Desse sonho falaz, que eu tanto amara!

Crerei, na mulher não, nem no futuro;
Nem nos homens que trazem sobre os lábios
A torpe hipocrisia, nem no mestre
Que co’as obras desfaz tudo que ensina;
Crerei, porém mais alto!

Crerei: mas na virtude e nos seus prêmios;
Crerei: mas nas misérias deste mundo;
Crerei: porém na morte inexorável;
Crerei: porém em Deus, na eternidade!


Escandecida = posto em brasa, ardente, escaldante, inflamado.
Provança = prova, indício, mostra, sinal, aquilo que serve para estabelecer uma verdade.
Ouropel = aparência enganadora.

Ela Dorme

Ela dorme, mas seus lábios
Parece que estão a rir.
Suas faces
Tão vivaces
Exprimem ledo sentir!
Que formosas, lindas pálpebras!
Ah! se ela as quisesse abrir...

Não é mulher – é um anjo
Que ali dorme a disfarçar...
Assim vê-la...
Sem podê-la
Por um momento acordar!
Ah! se eu soubesse uma coisa...
Mas pode-se ela zangar.

Como parece que sonha!
Que sonho será o seu?
E é bem doce!
Ah! se fosse.
Comigo – quisera-o eu;
Mas ela sonha com outro,
Talvez outro o mereceu.

Com outro sim, que eu não tenho
Da ventura tal condão;
Que este sonho
Assim risonho
Com outro é, comigo não,
A ser comigo dissera-o
De há muito meu coração.

Dissera-o, sim, mas tentemos:
Minha mão no peito seu!
Como bate!
Demos mate
Ao puro desejo meu...
Mas não, que o pudor às faces
Lhe subiu, - enrubesceu!

Deixemos... fique a esperança
Que eu não a quero acordar
Pois que ao ver-me
Pode ter-me
Que dizer, que conversar
Deixemos... que ela parece
Um anjo ali a sonhar.

Príncipe Imperial - no Piauí

Ledo = alegre, contente, jubiloso.
Mate = lance decisivo

Eu Amo-te Muito

Eu amo as loiras tranças de Maria,
Eu amo a flor que adorna seus cabelos,
Eu amo a fita que lh’os prende em laços,
Eu amo solto ou atados vê-los

Eu amo, sua fronte lisa e branca,
Eu lhe amo os meigos olhos tricolores,
Eu amo suas faces rubicundas,
Eu amo seus receios... seus pudores.

Eu amo-lhe a boquinha graciosa,
Eu amo seu sorriso tão amável;
Eu amo de marfim seus claros dentes,
Eu lhe amo o som da voz tão deleitável!

Eu lhe amo o liso colo alabastrino,
Eu lhe amo o virgem, palpitante seio,
Eu amo-lhe a cintura vaporosa,
O porte, as finas mãos, garbo e meneio.

Eu amo as mimosas roupas que ela veste
Eu amo suas plantas pequeninas
Eu amo o mesmo chão, onde eles pousam,
As ervinhas calcadas e as boninas.

Eu amo o doce pranto que ela chora,
Eu lhe amo os ternos ais quando suspira,
Eu amo suas queixas mal - fundadas
Que o ciúme cruel talvez lhe inspira

A meu próprio rival eu perdoara
Fazer-se por amor cativo dela;
Quem pode resistir aos seus encantos?
Quem pode – sem amar- ver minha bela?

Sim, Maria, meu anjo, terno encanto!
Quanto te amo, dizer não sei, não posso!
É amor que não pode ser descrito,
Porém nele o rigor d’ausência adoço.

Teu sorriso é que faz-me venturoso,
Teus olhos é que dão luz a meus olhos,
Eu não fora o que sou sem tua vida,
Sem ti que fora o mundo? Um mar de abrolhos.

Rubicundo = vermelho
Bonina = o mesmo que bela margarida
Alabastrino = muito branco, que tem a alvura ou outras qualidades do alabastro

Eu e a Enfermeira

De dores pungentes, de angústias valado
O meu triste fado constante gemia,
Desperto, pensando naquela que amava,
Com ela sonhava, se entanto dormia.

Ai vida mesquinha, porém que eu amava,
Porque eu a sagrava à bela querida!
Ai vida mesquinha, que se ia findando,
Mas nunca esfriando da chama nutrida.

E assim, moribundo, meu peito sentia
A flama que ardia do bem que eu amava,
Mas cessa a desgraça, me torno ditoso,
Que do anjo formoso bem perto me achava.

Que importa que as dores comprimam meu peito,
Se é vão seu efeito, se amor nos afaga?
Que importam lamentos que a dor nos arranca,
Se finda-os e estanca paixão doce e maga?

Vivendo a seu lado, venturas só via,
Ditoso sentia pungirem-me as dores!
Aos ares freqüentes suspiros alados
Soltava, passados do cremor de amores!

Que bela enfermeira que eu tinha a meu lado!
Que terno cuidado! que moça tão pia!
Sucumbem as dores com sua presença,
Esvai-se a doença, que atroz me pungia!

Os dias são horas, as horas instantes
Passados constantes em ternos brinquedos:
Que bela enfermeira que eu tinha ao meu lado
Que terno cuidado! que tratos tão ledos!

Que falas tão doces por nós só faladas!
Que horas passadas em doces recreios!
Que vida tão doce! que doces ternuras
Que doces canduras! que doces receios!

Num leito de dores prostrado, doente,
Vivera contente com tal enfermeira:
Amável e bela! Que moça tão pia!
Alegre me ria! Que moça fagueira!

O céu era às vezes de estrelas ornado,
Outr’ora nublado, só trevas se via,
Às vezes a lua com pálidos raios
Em meigos desmaios saudosa luzia.

Outr’ora nas frestas o vento zunia,
O teto gemia, brilhavam relampos,
E os raios caindo, trovões estouravam,
E as águas jorravam nos vales e campos!

E eu todo assombrado, dormia ou pensava?
Quem sabe! Sonhava? Talvez, são segredos...
Fruía prazeres aos homens vedados,
Gozava de agrados, os mimos mui ledos!

Mas sabem-no as trevas, a lua, as estrelas
Que tremem de belas, trovões e relampos
E raios e ventos e chuva celeste,
Que os prados reveste de perlas e de campos.

Entanto = contração de entretanto
Valado = cercado pelo inimigo
Cremor = parte mais espessa de um líquido, essência, rico de muita consistência.
Perla = pérola
Relampo = popular de relâmpago

Fases Asmáticas

Outrora quando batia
De prazer meu coração,
Oh! então como eu sentia
Dilatar-se-me o pulmão!
Hoje sucede o contrário!
Neste mundo tudo é vário

Hoje, porém, se ele bate
De prazer, corre por mim
Frio suor que me abate;
Porque me lembra, por fim,
Que em breve lá vem a tosse,
E o prazer foge precoce!

Por exemplo, quando penso
Naquilo que já gozei.
E nessa idéia suspenso,
Ar muito ao pulmão mandei,
Eis que a tosse asfixiante
Me lembra o quarto minguante

Chegou ele: eis-me prostrado,
Oh! meu Deus, quanto sofrer!
Levo as noites acordado.
A me virar e torcer!
Seis dias dura esta prova,
Té que chega a lua nova.

Cuidas que nesta o repouso
Me vê, por fim, consolar?
Nem dar um só passo eu ouso,
Posso apenas suspirar!
Se o pulmão mais ar consente
Lá vem o quarto crescente!

Asma tirana e maldita,
Que me hás roubado o vigor,
Nem mais olho à minha dita
Por um prisma encantador
Nada, nada me sereneia
Pois lá vem a lua cheia.


Sedear = acalmar moderar.
Vário = inconstante, volúvel, mutante, caprichoso.
Sereneia = aplacar, acalmar, aquietar, amainar

Gemidos

Tudo geme neste mundo
Onde tudo é só gemer;
O bardo meditabundo
Geme e sofre até morrer.
Geme, sim, toda a natura,
Geme a rola com ternura,
Geme o bosque em se mover,
Geme a brisa na espessura,
Geme a fontinha a correr.

E quem não geme no mundo?
Quem não geme... não sei eu.
Vede o pombo gemebundo,
Cuja pombinha morreu.
Coitadinho! – quanto pena!
E quem a tanto o condena?
Essa sorte quem lh’a deu?
Ai! Nem mais lhe cata a pena
A esposa que faleceu!

Gemidos que são? – queixumes
Contra amor – são tristes ais;
Lavas de um peito – ciúmes,
Que nos torturam – fatais:
São suspiros exalados,
Por entre uns lábios passados...
São zelos cruéis, mortais;
São juramentos quebrados;
Protestos de nunca mais...

Meus versos, meus tristes versos
Que alívio às vezes me dão,
São os afetos diversos
De minh’alma e coração;
São gemidos de minh’alma
Que às vezes colhem-me a palma
No seio da solidão,
Com que mitigo e se acalma
A frágua de uma impressão.

Gemidos sempre são frases
Arrancadas pela dor?
Não: da vida em certas fases
Exprimem gozos de amor
Exprimem tanta ventura
Quebrados com tal brandura
Nuns lábios de rósea cor,
Que, em lugar de desventura,
Dizem prazer e dulçor.

Mas o canto do poeta
Acaso é canto ou gemer?
Se na desgraça o enceta
Como pode canto ser?
Não é canto: são gemidos,
São ais do peito sentidos
É triste pranto a correr;
São os ecos repetidos
Do seu constante sofrer.

Se canta a meiga donzela
Fá-lo sempre de feliz?
Não: talvez nas vozes dela
Da dor se estampa o verniz
Que vezes o passarinho
Sobre o flexível raminho
Canta, e seu canto o que diz?
Diz saudades do seu ninho,
Canta por ser infeliz.

Tudo geme neste mundo
Onde tudo é só gemer;
O bardo meditabundo
Geme e sofre até morrer.
Geme, sim, toda a natura,
Geme a rola com ternura,
Geme o bosque em se mover,
Geme a brisa na espessura,
Geme a fontinha a correr.

Recife, 27 de junho de 1855.

Meditabundo = que medita, melancólico.
Frágua = forja, ardor, calor intenso, amargura, adversidade.
Gemebundo = gemente, que tem o hábito de gemer ou de se queixar.
Dulçor = doçura
Enceta = começa, principia, dá início


Já Sei a Cor (*)

Vou descrever de Maria
Os olhos que afinal vi,
De cuja cor deslumbrado
Não sei porque me esqueci.

Pondo-me um dia a revê-los
Conheci ser trina a cor,
Que os torna tão preciosos
E tão propícios a amor.

São verdes como as campinas,
Como o mar sem escarcéu,
Têm um toque de castanho,
Tão azuis da cor do céu!

Este composto tão belo
Da-lhe risos de mimos tal,
Eu não sei se por ser trino,
A razão não sei eu qual!

Outra cousa lhe hei notado
Nos seus olhos a brilhar,
Ocultam não sei aonde
Dois anjinhos a brincar.

Quando a Maria dirijo
Um riso ou falas de amor,
Vejo que eles também riem
Ou falam seja o que for.

Quando em rosto ela me lança
Não faltas, suspeitas vãs.
Como em mim, lágrimas correm
Por suas faces louçãos.

Eu não sei que será isto,
Eu não sei, Maria não
Se é magia se é feitiço
Em teus olhos se é condão!

São Raimundo Nonato, 4 de setembro de 1853

Loução = elegante, garboso, gentil, agradável à vista, belo, bem feito. Fem. Louçã. Plural = louçãos.
(*) Obs. do Coordenador:
Desde que minha filha Ivna era criança, minha esposa comentava encantada, que os seus olhos tinham cores que variavam: ora verdes, ora azuis, outras vezes, cor de mel. E em outras, as cores se mesclavam, num efeito encantador. Ao ler esta poesia, percebeu, admirada, serem os olhos da nossa filha, que também é Maria, Ivna Maria Teixeira Mourão.

Minha Lira

De marfim, nem de madeira
Minha lira é fabricada,
Não foi no mato cortada,
D’alem mar não veio, não;
Mas é lira e nela canto
Meus ternos, gratos amores,
Nela mitigo os ardores
De minha extrema paixão.

Tantas cordas contém ela
Quantas letras o alfabeto;
Quando soa o som direto
Nasce do meu coração.
Não de branco marfim liso
Fabricada, ou de madeira,
É contudo verdadeira,
Lira de nova invenção.

Deu-me o plectro com que toco
Uma ave branca, inocente;
Diz a lira docemente
Quanto sente o coração.
Cada nota que eu desfio
De minha lira inventada
Causa nela, que enlevada
Ou azul, negra impressão.

Soando embora d’amores,
Sempre solta um ai profundo!
Ela sabe que este mundo
É só morte – vida não.
E é por isso que sentida
A minha lira inventada
Fica toda repassada
Sempre de negra impressão.

Não de marfim ou madeira
Fabriquei a minha lira,
Em que canto o que me inspira
A minha ardente paixão:
- De papel é fabricada,
São as letras – cordas dela,
O plectro – a pena singela
De uma ave do meu sertão.

E nem convém-me outra lira,
Outras cordas, outro plectro,
Pois com ela canto o metro
Que diz a minha paixão.
E a tinta que o metro grava
Que mostra o meu pensamento
É que dela o sentimento
Gera e produz a impressão.

Príncipe Imperial no Piauí nos 10 de abril de 1853

Plectro = pequena vara de marfim, com que se feriam as cordas da lira, gênio poético.

Minh’Alma Está Lá

Vem, tarde propícia, difunde os primores
Que tens em teu seio, - difunde-os em mim,
Que a dura saudade me aviva os rigores
Da ausência que faz-me viver triste assim.
E dá-me uma brisa que voe na espessura,
E à bela que eu amo mui rápida vá
Dizer-lhe que peno, que em tal amargura
Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá!

Dos plúmeos cantores que tecem-te cantos
À bela que eu amo despede um cantor;
Receba nas asas meus tépidos prantos
Filtrados na frágua da mais crua dor.
E parta e não cesse, constante voando,
E pouse de fronte do lar onde está,
E diga-lhe, triste, que, em ais se finando,
Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá!

Seu peito que asila pureza e candura,
Terá piedade, terá dó de mim;
Nas asas, chorando, dirá uma jura
D’amor dentre os lábios de rosa e carmim.
E traze-m’a logo, veloz passarinho,
Que o peito me anseia... não vês como está?
Adeus! Eu cá fico cismando sozinho...
Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá!

Lá foi-se, partiu-se, chegou... que fazia
A bela? – que jura daria ao cantor?
Mentiu-lhe? - traiu-me? – pensava? – sorria?
Zombava – quem sabe! – do seu trovador?
Sorria – zombava – que o pobre habitante
Do bosque vivente não veio mais cá;
E eu, triste, saudoso, me fino constante!
Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá!

Mas ela não mente, que pura e singela
Mil vezes me disse seu peito ser meu;
E eu creio nos lábios da doce donzela
Que um riso, uma fala d’amor concedeu.
Eu creio que os lábios da virgem não mentem,
Que neles, sinceros, saudades, só há;
Pois dizem, qual digo, na ausência que sentem:
Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá!

Vem, tarde propícia, difunde os primores
Que tens em teu seio, - difunde-os em mim,
Que a aguda saudade me aviva os rigores
Da ausência que faz-me viver triste assim.
E dá-me uma brisa que voe na espessura,
E à bela que eu amo mui rápida vá
Dizer-lhe que eu peno, que em tal amargura
Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá!

Soledade ( Recife) 27 de novembro de 1856

Plúmeo = relativo a plumas. Que tem plumas, emplumado.
Frágua = Ardor, calor intenso. Amargura, adversidade.
Cismando = ficar absorto em pensamentos.
Fino = acabado, me acabo, faleço

Nênia
(No aniversário de morte do
Dr. G. Vilella de Castro Tavares)

A vida – hás de no céu melhor gozá-la,
Pois no mundo a lidar minaste a vida.

Bem louco quem no mundo não descansa
Em busca da verdade, em prol daqueles
Que vivem dominados pela incúria,
Que vivem sotopostos pelo peso
Da matéria que atrai, fascina, ilude!
Bem louco! Mas que importa que o descrente
Sem critério, imoral, assim se exprima,
Esquecendo essas leis que Deus gravara
Em nossos corações? Que o diga embora!
Bem sábio e bem feliz! Por alguns anos
Passados sem descanso e prescrutando
Os segredos infindos da ciência
Levando da razão o facho extremo
Ao seio da ignorância que tropeça
Nos escolhos do erro, o sábio, o justo,
Enquanto neste mundo os loiros colhe
Do seu reto viver, dos seus labores,
No outro mundo constrói melhor asilo,
Onde as palmas encontra da virtude,
Onde a paz e o descanso eternos goza.

A vida – hás de no céu melhor gozá-la,
Pois no mundo a lidar minaste a vida.

Quanto difere o homem da ciência
Do homem da matéria! Aquele chora
O sábio que finou-se pelo estudo;
Este cospe a irrisão sobre seus restos.
Purifica o primeiro a inteligência;
O segundo ao prazer só rende cultos!
Eu não! Eu gemerei também a perda
Daquele que oferecia seus tesouros,
Não de fulvo metal, de idéias puras,
De sãs doutrinas, de verdades sólidas
A tantos que os buscavam. Onde eu posso,
Onde podeis vós outros que o escutastes,
Passados de prazer, de entusiasmo,
Do gelo aprovador que em nós corria,
Igual sábio encontrar que nos ilustre,
Igual mestre tão bom que nos ensine?
A morte, a inexorável crua morte
Arrebatou-nos o querido mestre!
Mas, irmãos, consolemo-nos. Sua alma
Será no céu mais sábia e venturosa.

A vida – hás de no céu melhor gozá-la,
Pois no mundo a lidar minaste a vida.

Pastos Bons, Maranhão, maio de 1869

Nênia = canto fúnebre
Sotoposto = posto por baixo, exprime a idéia de inferioridade.
Irrisão= mofa, zombaria, desprezo, escárnio.
Fulvo = metal amarelado, da cor de ouro


Nênia
(À morte de meu patrício o estudante
J. Pires Ferreira)

Inda bem o triste pranto
Nos olhos não me estancou;
Quando ainda soa o canto
Que a triste lira entoou,
Novas lágrimas sentidas
Correm tépidas, nascidas
Do magoado coração;
De novo a lira enlutada
Geme, carpe, repassada
De dor, de amarga aflição.

Geme, carpe, oh minha lira,
A morte de teu irmão,
Dessa flor que sucumbira
Rojada pelo tufão.
Geme, carpe – que há um fado
Que ao meu Piauí amado
Vive sempre a perseguir!
Terra esquecida do norte,
Que dura, que infeliz sorte
Vai minando o teu porvir?

Quando os carinhos maternos
Mais caros, doces nos são;
Quando os desvelos paternos
Mais provas de amor nos dão,
Inebriados dos sonhos
Que à mocidade risonhos
Os louros mostram além,
Trocamos essas doçuras
Pelas esp’ranças futuras
Que tantas vigílias têm!

Mas, ai! Que vezes na campa
Se findam castelos tais!
Resta a lousa que os estampa...
Aos vivos... sentidos ais!
Lá foram-se as esperanças
Depois de tantas provanças
Depois de tanto velar!
Morreram como essas cores...
Como do sol os fulgores,
Quando mergulha no mar.

Mas não – que o sol noutro dia
Volta, luz, torna a viver;
Assim há de à lousa fria
O espírito sobreviver.
Basta, lira; basta, pranto;
Nem mais lágrimas, nem canto,
Que talvez se ofenda o céu.
- Vida! Morte! Eternidade!
Mistério da divindade,
Quem pode rasgar-te o véu?

Recife 5 de março de 1856

Rojado = arrostado pelo chão

Nênia
(À morte do estudante
Manuel Rodrigues Machado)

Quer Deus ou quer a sorte lacerar-vos
O peito que inda pouco gemeu tanto?
Novas dores vos dão novos suspiros,
E aos olhos, inda roixos, novo pranto!

Eu blasfemo, Senhor, mas me perdoa,
São excessos da dor que me devora:
É minh’alma que, unida às almas tristes
D’amigos que se carpem, também chora.

Respeito os teus encarnos – neles vejo
O selo do mistério que os estampa;
Ou viva o moço no mundo venturoso,
Ou desça prematuro o justo à campa.

Se acaso no verdor dos ledos anos
A flor de uma existência é decepada,
Não valem vãs blasfêmias contra a sorte:
A teia da existência está fiada!

A sentença fatal do livro eterno
Que o termo do mortal escrito encerra,
Não sofre dilação, se o prazo expira,
Há de o homem voltar por força à terra?

Amigos! Serenai o amargo pranto,
Que pelo rosto vosso se desliza;
O homem sem morrer mesquinho fora:
É a morte que ao homem eterniza.

Quem sabe se um porvir funesto aguarda
Aquele que morreu na flor dos anos!
- São decretos de Deus que nos escapam:
Curvados veneremos seus arcanos.

Veneremo-los, sim, que neles vejo
O selo do mistério que os estampa,
Ou viva o moço no mundo venturoso,
Ou baixe prematuro o justo à campa!

O jovem que viveu singelo e casto,
Que um peito para vós sincero tinha,
Que este triste epicédio, em dor coado
Motiva a lacrimosa pena minha.

Também me era assás caro! Mas que importa
O doloroso pranto sem remédio?
Uma lágrima, pois, uma somente
Comigo derramai neste epicédio.

Os arcanos de Deus se não prescrutam,
Que o selo do mistério é que os estampa,
Ou viva o moço no mundo venturoso,
Ou desça prematuro o justo à campa!

Soledade (Recife) 12 de julho de 1855

Encarnos = o mesmo que descarnar
Ledo = alegre, contente, jubiloso.
Epicédio = poema recitado nas exéquias de alguma pessoa notável. Qualquer composição poética fúnebre.


O Canto do Cacique

Sou índio, sou forte; se a lida me chama,
Sou raio, corisco, só temo a Tupá:
No campo juncado de imigos ferozes
Se movo o tacape, mil mortos são já!

Os ares demando co’a frecha empenada,
Que voa infalível à presa onde está;
A onça sedenta, que espuma raivosa,
Se vi-a, mandei-a de mim a Anhangá.

Sou bravo e cordato; se a paz se concerta,
Quem é tão cordato como eu? – quem será?
Na paz sou cordeiro, - sou tigre na guerra,
Sou raio, corisco; só temo a Tupá.

Domino estas matas espessas, sombrias,
Que estão sob a mira do grande Tupá;
Que há poderoso como eu nestas serras,
Que tudo que vejo sujeito me está?

No doce remanso da taba querida
Mil filhas donzelas que adora Tupá.
Dos olhos quebrados me lançam mil setas
Mas uma somente no peito me dá.

Sou índio, sou forte, se a lida me chama,
Sou raio, corisco, só temo a Tupá:
No campo juncado de imigos ferozes,
Se movo o tacape, mil mortos são já!

Borés lá ressoam – e agrupa-se a tribo!
Quem foi ao perigo primeiro ter lá?
Fui eu, ó guerreiro, valente e brioso,
Que sobre mim vejo somente a Tupá.

---------------- como eu não existe:
---------------- seu manacá,
----------------- na taba excitando,
----------------- louvando a Tupá.

Notai essas várzeas floridas, verdosas!
Notai estes serros, que ao céu vão ter lá
Firmantes – soberbos? – São meus – eu domino!
Em forças eu cedo somente a Tupá.

Não vedes mil cândidas aves formosas
Nos céus peneirando-se em honra a Tupá?
Pois todas eu tenho; se quero na ponta
Da frecha certeira que prestes está.

Sou índio, sou forte; se a lida me chama,
Sou raio, corisco, só temo a Tupá:
No campo juncado de imigos ferozes
Se movo o tacape, mil mortos são já!

*
* *

Na taba verdosa, de flores amada,
Que belo guerreiro qual eu haverá?
Meus olhos são pretos – bem pretos – retintos –
Que eu índio Toupino, não sou marabá.

Que vastos domínios! que prem herdades
De cima há cedido-me o grande Tupá.
Se os olhos espraio.... só vejo riquezas
Doadas ao neto de Tupinambá.

Sou bravo guerreiro; sou rei destes campos;
As feras me temem e eu temo a Tupá:
Meus olhos fuzilam,desferem relampos,
Que ferem, deslumbram o vil marabá

A fronte guerreira me cinge o kem.....
Que lindo não fico se sobre.......
Sou índio, não nego.............
Feitura orgulhosa do grande Tupá ............

Sou índio, sou forte, se a lida me chama,
Sou raio, corisco, só temo a Tupá:
No campo juncado de imigos ferozes
Se movo o tacape, mil mortos são já!

*
* *
Não turvam-me os olhos a vil mussurama
E o vil iv’rapeme que importa-se o há?
Co’a massa e o tacape, co’o arco guerreiro
Mil tribos eu mando de mim a Anhangá.

Co’o arco empunhado, co’a frecha no rosto,
Não vejo, não temo senão a Tupá.
Ao sonho terrível destroço fileiras,
Que tombam, mordendo da terra o tobá.

Ornando-me a cinta gentil encluape,
Quem é que a vitória como eu louvará?
Eis soam janubias e muimures soam,
Quem tão prazenteiro como eu bailará?

Nas tabas protegem-me
Nas igaras guarda-me o grande Tupá:
De dia reluz-me o sol corincante,
E a lua serena de noite me está.

Sou índio, sou forte, se a lida me chama,
Sou raio, corisco, só temo a Tupá:
No campo juncado de imigos ferozes
Se movo o tacape, mil mortos são já!

Nas águas correntes não há pirabebe
Que voe tão ligeiro qual eu nade lá;
Na estreita piroga desliza garboso,
Nem há igaruana mais de .......

As armas provado na leve tipóia
Enquanto o Piaga, no teu maracá
Tocando, celebra os teus sacrifícios,
Aos pátrios Manitos, ou grande Tupá.

Por que sou tão forte? Por que mil imigos
Nas rígidas lutas eu mando a Anhanjá?
Porque sou dos índios o chefe, o cacique,
Porque só me curvo no céu a Tupá.

Desperta, ó Piaga, desperta os Manitos
Aos sons piedosos do teu maracá;
Corramos alegres ao largo Tisseiro,
Cantando, dançando, louvando a Tupá.


Sou índio, sou forte, se a lida me chama,
Sou raio, corisco, só temo a Tupá:
No campo juncado de imigos ferozes
Se movo o tacape, mil mortos são já!


Soledade (no Recife) abril de 1855

Boré = trombeta de bambu, usada pelos índios
Tobá = atobá, pássaro mergulhão
Pirabebe = peixe voador
Piaga = pajé
Maracá = cabaça seca e interiormente limpa, em que os indígenas metem pedras ou frutos e agitam nas festas, na feitiçaria e nas guerras.
Manito = manita = fermento especial
Igaruana = canoeiro navegador

O Canto do Soldado

Na vida encaneci que me legaram
Meus parentes, meu pai, que vi morrer,
Quando as tropas rebeldes nos cercaram
E foram rechaçados sem vencer.
Nunca me hei de esquecer daquele aspeito,
Com que disse meu pai a se finar:
“O soldado que à bala expõe o peito
Não deve a vil chibata suportar.”

Seguindo de meu pai o nobre exemplo,
Não encontro descanso a combater,
E da pátria, malgrado, o mal contemplo,
Sofrendo o frio, a fome sem gemer!
A metralha feroz da canonhada
Não me faz abater, nem recuar;
Mas – quem missão exerce tão sagrada
Não deve a vil chibata suportar.

Gritando: quem vem lá? – eu passo as noites;
Que vezes tenho opresso o coração,
Vendo o meu camarada aos vis açoites
Gemer da vil chibata e sem razão!
Eu sinto, então, meu sangue enregelado,
Sinto o pranto dos olhos a brotar:
O guerreiro valente e denodado
Não deve a vil chibata suportar.

Sem mim, pobre da pátria! – desvalida,
Quem zelara seus foros, seu brasão?
Seria vacilante em sua vida,
Não tivera respeito de nação.
Sou eu, oh sim! – sou eu que com bravura
Mil triunfos lhe faço conquistar,
E quem coloca a pátria em tal altura
Não deve a vil chibata suportar.

Mas eu vivo estafado... e minha etapa
Não me dá para o pão! Sorte cruel!
E esta fome do inferno, me solapa
Esta vida nutrida só de fel!
E se acaso eu morrer de fome ou frio,
Ai da pátria também, que há de acabar!
Quem morre pela pátria e por seu brio
Não deve a vil chibata suportar.

Governo do Brasil, atende ao brado
Do valoroso exército fiel,
Que de fome e nudez jaz alquebrado,
Entregue ao despotismo mais cruel.
Minora nossos males, nossas dores,
Dá-nos pão pra podermos trabalhar
Pois pátria, que por ti morre d’amores,
Não deve a vil chibata suportar.


Recife (1856)


Etapa = o que o soldado consome diariamente
Aspeito = semblante
Encaneci = grisalho, envelhecido.
Opresso = oprimido

O Enfermeiro
(Pela cólera)

Ei-lo ali, caridoso velando
Sobre o enfermo, que jaz a morrer;
Pelas faces lhe vejo rolando
Uma lágrima triste a correr.
Não descansa nem noite, nem dia,
Junto ao leito do enfermo a velar;
Partilhando de sua agonia,
Só deseja o irmão consolar.

Não descansa, não curva-se à lida
Que lhe rouba o repouso, o dormir;
Ele julga precária esta vida,
Melhor vida quer ele fruir.
E, embalado de idéia tão santa,
Não trepida, constante a velar:
Geme o enfermo que o mal aquebranta;
Só deseja o irmão consolar.

É um anjo por Deus enviado,
É um anjo! Que um anjo só é
Quem ao leito do enfermo encostado
Passa as noites velando com fé.
Nem receia diante da morte,
Pois que o leito pudera deixar;
Mas, do enfermo pensando na sorte,
Só deseja o irmão consolar.

Não lhe faltam palavras contritas
Não lhe faltam palavras de amor.
Pelo céu inspiradas, prescritas,
Consolando o enfermo na dor.
Quantas vezes não geram no triste
Uma idéia sublime, um cismar!
É qual anjo, qual célico antiste,
Só deseja o irmão consolar.

No seu peito só pulsam virtudes,
No seu peito só há compaixão!
Ele carpe as cruéis vici’tudes
Que espedaçam o peito do irmão.
Bem quisera poupar-lhe a metade...
Bem quisera seu mal minorar:
Só um anjo tem tal caridade;
Só deseja o irmão consolar.

A um dia sucede outro dia,
Tudo passa, mas nunca esse amor
Que, seu peito banhando radia
Como o orvalho que cai sobre a flor.
Não descansa o cristão caridoso:
Ei-lo sempre no leito a velar!
Que lhe importam fadiga e repouso?
Só deseja o irmão consolar.

Mas a hora final se aproxima!
Ei-lo enfermo na cama a morrer;
Deus vigia sobre ele de cima,
Pois que soube no mundo viver.
Que desvelo, que assíduo cuidado!
Todos chegam e o vem prantear,
Todos querem ficar ao seu lado!
Todos querem ali consolar!

Esta vida tão doce, tão bela,
É a vida que importa ao cristão;
Tem mil prêmios, mil vidas por ela
Prodigadas de Deus pela mão.
Trabalhemos, irmãos, trabalhemos
Pela vida que se há de gozar...
Nossos olhos no enfermo fitemos:
Eia! – vamos o irmão consolar.

Olinda (em férias) 7 de fevereiro de 1856


Antiste = antístite = grande sacerdote, pontífice.
Célico = celestial, celeste.

O Estudante

Triste vida a do pobre estudante,
Que jamais gazeou à lição,
Que as pestanas queimando incessante,
Não se abala ao clamor da função.

Eu, por mim, gazeando por ela,
Mudo a sorte de triste pra bela.

Galhofando é que a vida se passa,
Galhofando é que sente-se amor,
Galhofando, meu Deus, quem se maça?
Galhofando é que vive o doutor.

Minha vida será galhofeira;
Oh! que vida, gentil, prazenteira!

Não me curvam vigílias do estudo,
Não me curva a maçante lição,
Sabatinas – que importam – se tudo
Eu desprezo e prefiro a função?

À função, à função, ao pagode
Só não vai, só não vai, quem não pode.

É melhor repimpar-me às varandas
E a moiçola fazer ademans,
Do que estar a mexer com demandas
Nessas horas de graças louçãs.

Hei de ser bacharel, hei de sê-lo,
Mas o tempo... hei de breve fazê-lo

Só desejo ganhar minha carta
Para rr não dou atenção;
Andarei co’a barriga bem farta,
Que imposturas, meu Deus, que mais não!

Com meus oc’los, com minha luneta,
Oh! que vida, que vida de treta!
Não me abatem falácias do mundo,
Não me abatem dictérios, baldões;
Tenha eu um viver bem jocundo,
N’algibeira meus bons patacões.

Meu viver há de ser galhofeiro,
Que me importam baldões do treteiro?

Isto, sim, é que pé vida gostosa,
Esta a vida que eu peço a meu Deus;
Que me importa essa vida afanosa,
Que se passa co’os livros judeus.

Tão judeus – que nos roubam tiranos
Nosso belo folgar tantos anos!

Vou, portanto, abrandar minhas dores,
A minh’alma vou dar expansão,
Vou gozar uns sorrisos... traidores?
Que me importa que o sejam ou não.

Um charuto acendamos pachola
Vamos ver a faceta moiçola.

Olinda – fevereiro de 1856

Repimpar-me = abarrotar, fartar, locupletar.
Treta = ardil, sutileza, astúcia, estratagema
Dictério = ditério = dito satírico, motejo.
Baldões = afrontas, doestos, impropérios.
Treteiro = dado a tretas


O Fazendeiro

Não invejo aos reis da terra
Esses poderes que têm;
Dou também leis nestes campos,
Como não nas dá ninguém;
Todos aqui humilhados
As frontes curvar-me vêm
Nem meus poderes trocava
Por aqueles que os reis têm.

Pisando, altivo, o terreiro,
Um grito altivo soou!
Cem vassalos obedecem
Ao grito que além troou!
Tenho riquezas nos campos
Como o rei nunca logrou!
Sou rico, digam-no os vales
Por onde o grito soou.

São vastas minhas riquezas!
Lidando – ganhei-as eu,
Não me custaram batalhas,
Nem sangue em jorros correu...
Custaram-me o meu trabalho,
Custaram-me o suor meu.
São vastas, todas são minhas,
Não devo-as, ganhei-as eu.

Que formoso panorama
Está-me a vista encantar!
O capim co’o vento ondeia
Como as ondas lá do mar!
O gado vejo pastando,
Correndo, alegre a berrar!
- Pois é meu tudo que os olhos
Em roda está-me a encantar!

Eu tenho em minhas fazendas
Aquilo que os reis não têm:
Um povo de quem sou id’lo,
Um povo que me quer bem.
Seus filhos não lh’os recruto,
Não lhe roubo um só vintém.
Eis porque possuo aquilo
Que os reis dos tronos não têm.

Dou o pão ao desvalido
Que pede-o, rojando-o ao pó;
Socorro a mísera viúva,
Que geme no leito só;
Respeito as casas alheias...
Das virgens eu velo em pro.
Protejo a todos que vejo
Gemendo, rojando ao pó.

À tarde eu aboio as vacas
Recostado nos moirões,
Vendo os currais atulhados
De prata e d’oiro em montões;
Meu orgulho é somente este,
São estes os meus brasões.
Os cetros o povo os quebra
E vai sentar-se aos moirões.

Os reis no trono de luxo
Quase de seu nada têm;
Imperam no fausto e grandeza,
Sem se lembrarem porém,
Que os suprem nossas riquezas,
Que impostos deles só vêm
- Riquezas só são as nossas,
Que os reis, coitados! – não têm.

Tiranos, sorriem-se aos ecos
Das bombardas, dos canhões!
Eu, porém, me rio aos berros
Dos gados cá dos sertões:
São hinos, são harmonias
Que falam aos corações
- De todos que não se aprazem
Ao retumbar dos canhões.

Olhai – não vede quem passa
Tirar-me, humilde, o chapéu?
Pois eu como irmãos os trato,
Que assim nos ordena o céu.
Não tenho, nem quero títulos
Roubados – negro troféu.
- Homenagem – dá-m’a o povo,
Tirando-me o seu chapéu.

Isto, sim, é que é grandeza,
Isto, sim, é que é poder:
Tudo mais não vale nada,
É como eu sei descorrer.
Os reis que vivem nos paços
Inertes a adormecer.
- Poder o meu na fazenda,
Este, sim, é que é poder.

Não quero superfluidades,
Nem luxos que é tudo vão;
Das vacas eu tenho o leite,
A coalhada, o requeijão;
Tenho a manteiga, e mais tudo
Que pode haver no sertão.
- Nem quero luxos, nem pompas
Supérfluos – que é tudo vão.

Como a carne saborosa
Como não a come o rei;
Sirvo à pobreza, aos amigos,
Aqueles que eu bem o sei;
Desprezo os aduladores,
Resisto à tirana lei
- Que vem me roubar as terras
Por mando e fome do rei.
Olinda, 2 de fevereiro de 1856

Superfluidade = qualidade de supérfluo, demasia, excesso, coisa supérflua ou escusada.

O Mal já Declina
(Pela cólera)

Já o mal pouco a pouco declina!
Faze, ó Deus, que de todo se vá;
Que não volte com sua malsina
A fazer-nos mais vítimas cá.
Embainha, cruel, teus alfanjes,
Vai sumir-te outra vez no teu Ganges.

Resfolgando da luta renhida,
Este povo às janelas já sai
Já no peito renasce-lhe a vida,
A esperança afagando-o já vai.
Ó do monstro sangrentas falanges
Outra vez mergulhai-vos no Ganges.

Tantas vidas no albor da existência
Teu cutelo fatal decepou,
Desejosos da luz da ciência,
Não vingaram, que a tumba as guardou
Mas sua tuba da morte já tanges
Retirada, cruel, pra teu Ganges.

Quantos pais, quantos filhos e esposos
Não se carpem envoltos no dó?
Quantas taças boiantes em gozos
Não transbordam de fel sobre o pó!
Ímpio chefe de pravas falanges,
Parte; vai-te outra vez para o Ganges.

Já o mal pouco a pouco declina!
Faze, ó Deus, que de todo se vá;
Que não volte com sua malsina
A fazer-nos mais vítimas cá.
Embainha, cruel, teus alfanges,
Vai sumir-te outra vez no teu Ganges.

Qual o homem que o raio fulmina,
Que no chão quase exangue o deixou,
E depois do delíquo combinio
As idéias, que alfim despentou:
Tal o povo suspira às falanges
Que uma a uma lá vão-se pra o Ganges.

Minha mãe, eu também ainda vivo!
O teu filho, meu pai, não morreu!
Meus irmãos, não chorais: estou vivo!
Não morri, não morri, anjo meu!
Mal feriram-me os demos alfanjes
Do cruento flagelo do Ganges.

Pobre povo! Gemente, abatido,
De valente e do bravo que é,
Foi do mal de tal sorte ferido,
Que bem pouco ficou-lhe de fé!
E tudo isto devido às falanges,
Que assomaram das águas do Ganges!

Mas já hoje, de faces coradas,
Se escapando do leito de dor,
Lança a vista através das sacadas
E na mente bem diz o Senhor,
O Senhor que o livrou dos alfanjes
Das sangrentas coortes do Ganges.

Já o mal pouco a pouco declina!
Faze, ó Deus, que de todo se vá;
Que não volte com sua malsina
A fazer-nos mais vítimas cá.
Embainha, cruéis, teus alfanjes,
Vai sumir-te outra vez no teu Ganges.

O Preso e a Viúva

Sonoro pintassilgo, por que vives
Carpindo teus pesares na gaiola?
Por que vives no pé do tamarinho
Gemendo, suspirosa triste rola?

- São reveses da sorte: aquele chora
A doce liberdade que há perdido;
E a penosa avesinha geme à falta
Do esposo que da seta foi ferido.

Eu também, passarinhos, vivo presa
Aos sagrados deveres que os humanos
Cultivam neste mundo enquanto dura
O curto espaço dos penados anos.

Também meu coração, viúvo, geme
À falta dos irmãos que a dura morte
Ceifou, despiedoso, tinturando
Com salpicos de dor a minha sorte.

Sonoro pintassilgo, triste rola,
Deixai estes carpidos tristurosos;
Calai-vos: vossas dores lembram dores
Que me arrancam do peito ais lamentosos.

Olinda, 14 de janeiro de 1856

O Que Eu Chamo Poesia
(num álbum)

No levante brilha a aurora
Rouxeando os horizontes,
Realça prados e montes
Com sua luz matinal.
Mas clara luz já cintila
Dentre o mar o sol desponta
Trepa no céu, no zênite monta
Mais luzente que o cristal,
Transparece a lisa fonte,
Treme o ar tudo fulgura,
Trinam aves na espessura,
Languesce a flor no rosal.

Descai o sol, menos flama,
No ocaso lá vai sumir-se,
Eis a bonina a sorrir-se
No seu suspiro final!
É qual ao nascer da aurora,
Rouxeam-se os horizontes,
Outra vez prados e montes
Vestem a cor matinal!doce –
As correntes murmuram!
Tinge o mar purpúreo manto,
Saltam as aves um canto
Mais terno – sentimental!

Como as nuvens são tão belas
Ornadas com franjas d’oiro!
E as aves cantando em coro
Um hino ao seu criador!
E as brisas meigo-soprando
No cimo dos arvoredos!
E o mar nos rijos penedos
A quebrar-se com fragor!
E eles, mudos atalais
A amostrar suas procelas,
Enquanto da fúria delas
Também zomba o pescador.
E quem não sente arroubar-se
Su’alma aos risos da aurora
A idéia arrebatadoura
Que vêem ao surgir do sol!
Ao trinar alegre ou triste
Dos alados amadores?
A essas mimosas cores
Do crepúsc’lo, do arrebol!
Aos prazeres da frescura
Que nos traz suave brisa
À fonte que se desliza
O prado banhando a prol?

Oh! que nisto há poesia,
Que penetra os seis d’alma,
E poesia que acalma
Um penado coração;
A poesia que eu sinto,
Que me arrouba ao contempla-la,
A poesia que fala
Mais alto do que a razão
Mais alto – que além remonta
Desses astros, onde os anjos
Entoam com os arcanjos
A Deus celeste canção.

Há sim! E uns olhos volvidos
Amedo – e um sim que é dado
A um poeta enamorado
Que sente ardente paixão,
E uns lábios rubros que tremem
Quando a sentença proferem,
E em vez do sim só desferem
Traído, equívoco não;
E essas mágoas que se emergem
Nascidas da voz fingida
Num peito cuja ferida
Penetrou té o coração:

Há sim! E é isto que eu chamo,
Que eu chamarei poesia,
Que eu sinto que me extasia
Sem que possa definir!
É isto. E umas faces murchas
No verdor já desbotadas
Pelo cismar, maceradas
Pelo velar e carpir:
E as falas entrecortadas
Por um pranto que se chora
E um semblante que descora,
Que depois torna a fulgir!

E as obras miraculosas
Que a natureza circudam,
E as águas que um terço inundam
Do solo – aí também está
Mui sublime a poesia
Que os seios d’alma me banha,
Onde reside e se entranha
A idéia de Jeová!
Idéia imensa, infinita,
Toda amor, toda harmonia,
Fonte de toda a poesia
A maior de quantas há!

Sim nisto uma flor singela
Que sorrindo desabrocha
Às vezes na dura rocha,
Às vezes no mole chão;
E no riso inocentinho
Que mostra à mãe desvelada
A criancinha afagada
Que ainda não tem razão;
E na amizade sincera
De duas almas unidas,
Que formam não fementidas
De dois um só coração.

Há também tanta poesia
E tanta que a alma me prende!
E, vate ou não, quem não rende
Mil graças a Jeová!
Quem ao ver a natureza
De mil prodígios cercada,
Não sente a mente abrasada,
E um hino não cantará?
Cantemos, ó lira! Hosana!
Cantemos que a poesia
É, em Deus que mais radia
É em Deus onde ela está!

Soledade (Recife) outubro de 1855

Volvido= passado de volver = mover para um e outro lado = que volveu ou se volveu; decorrido, passado.
Brisa = na época do poeta escrevia-se com z.
Zênite = o ponto mais elevado que se pode atingir.
Espessura = floresta
Languesce = torna-se voluptuoso
Prol = prole
Fementido = perjuro, que falta à palavra dada, pérfido, ardiloso.

O Suicídio

Deste mundo, que me emb’raça,
Vou despir os ouropéis,
Vou esquecer para sempre
Meus dissabores cruéis.
Vou à terra da justiça
Saciar esta cobiça
Que me inunda o coração,
De fruir um gozo eterno,
Não esses gozos do inferno
Do mundo – que amargos são.

Por vezes tenho esgotado
A funda taça de fel,
Como o ditoso esgotara
O cálice de doce mel.
Tenho zombado da sorte,
Encarando sempre a morte
Tal como deve o mortal,
Tenho em luta co’os revezes
Triunfado muitas vezes,
Tendo a fé por meu fanal.

Tenho lutado... meu peito
Já por fim enfraqueceu!
Não posso curvar-me ao fardo
Que a sorte iníqua me deu!
Vou da vida desligar-me,
Para sempre separar-me
Deste mundo enganador;
Vou fugir às amarguras,
Trocá-las pelas doçuras
Que nos céus tem o Senhor

Temerários, vossos juízos
De uma só vez suspendei
Não profanais os segredos
Que no meu peito asilei.
Lede a história que não falha,
Vereis peitos que a metralha
Não temem, rojar no pó,
No suicídio buscando
Lenitivo certo e brando
Ao mal que os oprimem – só.

Mas... triste! Quem me assegura
Que o peito de um bravo herói
Não pode um dia quebrar-se
Ao mal intenso que o roi?
Quem ousa dizer que um peito
À guerra, no sofrer afeito
Não quebra um dia por fim?
Catão, esse herói romano,
Foi bravo, mas era humano,
Deixou-se quebrar assim.

Imitemos a bravura
Que vemos no herói luzir,
Mas resistamos aos males,
Que ele não quis resistir.
Quem sofreu mais dissabores,
Quem sofreu maiores dores
Que o santo, que o herói de Hus?
Quem padeceu mais torturas
Por amor das criaturas
Que o Nazareno Jesus?

Não quero morrer, que a vida
Não ‘a fiz com as minhas mãos,
Hei de dá-la a quem prestou-m’a
Que é isto dos bons cristãos
Sim, hei de: foi um delírio,
Que venha maior martírio,
Minha vida Deus a tem,
Não me cumpre a mim cortá-la,
Que venha o Senhor tirá-la
Quando julgá-la por bem.

Olinda , fevereiro de 1856

Fanal = facho, farol, sinal luminoso, guia

O Voluntário

Nas bandeiras flutuantes,
Feitas de rosas fragrantes
E mais flores do jardim;
Meninas! Nessas bandeiras
Em vossa, gentis fileiras
Venho alistar-me por fim.

Recebei os meus serviços,
Pagai-m’os co’um dos feitiços
Desse olhar que tendes vós;
Além de um dócil escravo,
Meninas! tereis um bravo,
Que há de honrar a seus avós.

Ver-me-eis, além do soldado,
Um poeta namorado,
Um valente campeão!
Meninas! farei proeza,
Cantando vossas belezas
Como Dirceu ou Durão.

Inspirai-me: um mago riso
Meninas! se eu o diviso...
Oh! vereis meu coração
Desfazer-se em harmonias
Como os céus em melodias,
Crepitar como um vulcão!

Entanto, nos flóreos paços,
Onde as flores aos abraços
Vos rendem cultos de odor,
Em vossas gentis bandeiras
Minhas juras verdadeiras
Recebei de adorador.

Olinda, 20 de janeiro de 1856

Flóreo = ornado de flores

Os Compadres Cidadão e Sertanejo

Pan, pan, pan! “Batem lá fora!”
Pan, pan, pan! “Quem bate aí?”
É de paz! “Empurre a porta”
Compadre! “Você aqui!”

Vim fazer-lhe uma visita,
Espairecer no sertão.
“Como deixou a comadre?
Os pequenos como vão?”

“Como deixou a cidade?
O que há de novo por lá?”
Deixei com saúde a todos
Quando parti para cá.

A cidade é sempre a mesma,
Sempre bailes e função.
“Quanto a isto meu amigo,
gosto mais cá do sertão.”

*
* *

Na cidade desfruta-se a vida,
Que nem pensam vocês do sertão!
Esta vida, que aqui é vivida,
Não é vida que valha um tostão!
Na cidade é que a vida se passa,
Na cidade é que tem-se prazer;
Esta vida do centro é escassa:
Eu não quero no centro viver.

“Vida boa só é esta nossa,
a da praça não vale um vintém!
Eu não troco esta vida da roça
Pela vida que lá vocês têm.
Não, não quero viver lá na praça;
No sertão é que tem-se prazer;
Na cidade é que a vida é escassa:
Na cidade eu não quero viver.”

Na cidade se gozam delícias,
Que nos enchem o peito de amor!
As donzelas nos fazem carícias,
Que nos matam de morte sem dor!
Oh ditoso quem vive na praça!
O viver do sertão é morrer!
Esta vida do campo é escassa:
Eu não quero no campo viver.

“Também temos donzelas formosas
E mais lindas, talvez, que as de lá,
Tão santinha, meu Deus, tão mimosas,
Como estas, que nas praças não há!
Eu não creio na vida da praça,
Disse, digo, hei sempre de dizer;
No sertão é que a vida se passa:
Na cidade eu não quero viver.”

Temos bailes, teatros, partidas,
Temos tudo que pode agradar;
Vão as horas voando entretidas
Nessa vida donosa a bailar.
Nossa vida desliza com graça,
Como a fonte perene a correr!
Esta vida do mato é escassa:
Eu não quero no mato viver.

“Também temos aqui nossas festas,
Nossos sambas, batuques, funções;
São, talvez, que as de lá mais honestas
Estas danças aqui dos sertões.
Nossa vida é que mana e que passa
Como aquele riacho a correr!
Eu não quero essa vida da praça:
Na cidade eu não quero viver.”

Na cidade tomamos sorvetes
E jantamos nos gordos hotéis,
Onde em vez de feijões, de vinhetes,
Encontramos champanha e pasteis.
Tudo aqui é miséria, é desgraça,
Na cidade é que tem-se prazer;
Esta vida da roça é escassa:
Eu não quero na roça viver.

“No sertão nós comemos coalhada
E o bom leite, co’o loiro cuscuz.
Boa carne sal-presa que assada
Tenta mais que o inimigo da cruz.
O jir’mu se co’o leite se amassa,
É tão bom que eu nem posso dizer!
Isto, sim, que não comem na praça:
Na cidade eu não quero viver.”

“Sim, não quero, que é vida mesquinha
Essa vida que passam por lá:
Quero leite comer com farinha
E co’a carne sal-presa de cá.
E quem troca o sertão pela praça?!
De verdade, isto estava pra ver!
Na cidade só vejo desgraça:
Na cidade eu não quero viver.”

Na cidade nós temos vestidos
Que nos cortes só tem-n’os os réis,
São dos mais delicados tecidos,
E nos levam bons contos de reis!
Temos tudo que é bom lá na praça,
Lindas coisas que podem-se ver;
Não é como aqui nesta desgraça!
No sertão eu não quero viver.

“E nós temos gibões e perneiras
Dos veados do nosso sertão;
Temos roupas também domingueiras,
Não só essas que são de algodão
Não invejo essa vida que passa!
Pois é morte essa vida da praça:
Na cidade eu não quero viver.”

Na cidade nós temos orquestra,
Tem-nas boas qualquer batalhão;
Minha filha ao piano é já mestra,
Discorrendo o teclado co’a mão!
Só assim é que a vida se passa,
É só isto o que eu chamo prazer!
Esta vida do centro é escassa:
No sertão eu não quero viver.

“Nossa orquestra do mato é mais bela:
Veja as aves que estão a cantar!
Minha filha, mimosa donzela,
Assim canta também a bordar!
Isto, sim, tem delícias, tem graça!
Isto, sim, é que eu chamo prazer!
Essa vida de lá não me engraça:
Na cidade eu não quero viver.”

Namoramos no baile, às janelas,
E colhemos mil frutos de amor!
Quantas vezes das pálpebras belas
Brilha um pranto chorado sem dor!
Dessa vida meu peito se engraça,
Nessa vida é que eu sinto prazer!
Porém esta do centro é escassa:
No sertão eu não quero viver.

“Também temos de trás do umbuzeiro
Nossas falas ocultas de amor,
Nosso belo tijolo roceiro,
Que respiram candura e pudor!
Se de nós a mocinha se engraça,
Ai que zelos! Que amor! Que prazer!
Isto sim, que não tem lá na praça:
Na cidade eu não quero viver.”

Na cidade prestamos contritos
Culto externo pomposo ao bom Deus,
Que há de um dia fazer-nos benditos,
Separados dos ímpios e ateus.
Mas no centro que gente tão crassa...
Que não sabe sequer se benzer!
Esta vida, meu Deus, não tem graça:
No sertão eu não quero viver.

“Esse culto é que torna precito...
Que corrompe mais de um coração,
Que ante Deus não se prostra contrito,
Que vai nele buscar distração.
Consagramos a Deus culto e graça
Fervorosos quais devem de ser;
Mas não esse fingido, que é farsa:
Na cidade eu não quero viver.”

“Vão à igreja ouvir missa? Duvido!
Vão fazer oração? – Qual orar!
Deus a tudo tem prestos ouvidos,
Sua fé não se pode enganar.
Nas cidades o culto não passa
De irrisão – bem o posso dizer –
E esse culto – é torpeza é negaça!
Na cidade eu não quero viver.”

Pois eu gosto e só quero a cidade.
“Pois eu gosto e só quero o sertão.”
O que aqui mais se vê? – bestidade.
“E por lá? – só mentira e traição.”
Pois eu vou desfrutar minha praça.
“E eu aqui viverei ‘té morrer.”
Na cidade é que a vida se passa.
“No sertão é que serve o viver.”

Olinda, 1856

Pois me aparece agastado?...
“Se o vejo tão cabeçudo!...”
Pois outro abraço apertado...
“Na verdade acaba tudo.”

Vinhete = vinho fraco
Negaça = engano, logro, mostra ilusória.
Precito = condenado, maldito, réprobo.
Irrisão = ato de zombar, mofa, zombar com desprezo
Jirimu = jerimum
Tijolo = namoro (gíria)

Palinódia

Disse que não te cria: - foi mentira;
Que eram vãos meus amores: - foi loucura:
Perdoa a mente enferma que delira,
Que a delonga cruel punge e tortura.

Quando me lembra que a ficção de Tântalo
Eu hei realizado em minha vida;
Que cada dia mais formosa e cândida
Eu te contemplo, em vão, minha querida!

Quando me lembro desse amor tão sôfrego...
Firmado sobre as bases da ninoscência,
Que eu tanto quero do meu peito no íntimo
Com tanto ardor, com tanta veemência...

Quando me lembro das penosas fráguas
Que o septênio cruel me tem causado,
Das rugas que na fronte há produzido-me
Esse espaço sem fim, por mim marcado!...

Oh! que então contra mim bravejo em cólera,
Maldizendo esse passo irrefletido;
Gemo e derramo copiosas lágrimas,
Julgo tudo no mundo haver perdido.

Eis porque de meu peito lacerado,
Onde o mais santo amor tenho acatado,
Saíram vãos queixumes;
Porém vê neles, nos meus ais e pranto
Incensos que te envolvem, meu encanto,
E suaves perfumes.

Em que me hás ofendido, tu que és pura
Como o aroma da flor que o sol depura,
Que ao céu conduz a brisa?
Que és bela e meiga como tu somente,
Como teu riso cândido, ninocente,
Que tanto me eletriza?
Descrer do teu amor, tu crês que eu possa?
Não é ele que o meu viver adoça
No meu longo martírio?
Perdoa esse momento de loucura,
Filho da ausência mais amarga e dura,
Perdoa o meu delírio.

Perdoa-me. Bem vês que arrazoado
Não pode ser um peito lacerado,
Aos recontros da sorte.
Perdoa-me. Serás a minha estrela,
Meu anjo e meu amor, – sim, minha bela,
Na vida e mais na morte

Disse que não te cria: - foi mentira;
Que eram vãos meus amores: - foi loucura:
Perdoa mente enferma que delira,
Que a delonga cruel punge e tortura.

Recife 1858

Palinódia = retratação de um poema daquilo que se disse noutro
Recontros = embate
Setênio = septênio = período de sete anos
Bravejo = esbravejo.

Por Que Será

Tão bela! – assentada na branda esteirinha
Constante a coser;
Dos olhos lhe mana diáfano pranto
Em fio – a descer:
Que sente – que sofre – que vive chorando
Sem nada dizer?

Às vezes conversa, diverte-se e ri-se
A só se entreter;
Não cisma, não chora; porém depois muda
E o pranto a correr!
Que sente – que sofre – que ri-se – que chora Sem nada dizer!

Seus braços lançados no colo do triste
Que vive a gemer,
Não diz o que sente – não diz o que sofre
E o pranto a correr!
E o colo me cresta co’o pranto divino,
E eu todo a tremer!

Acaso dirige-se a mim a ventura
Do teu padecer?
Oh! não: a mim nunca, não sou tão ditoso,
Pois vivo a gemer!
Teu peito de neve – tão casto – por outrem
Só sabe bater!

Se o colo me abraças, aos laços de sangue
Sei isto dever;
Mas dize, declara... teu pranto divino
Eu posso conter:
Por mim... venturoso! por outrem, teu pranto
Eu posso suster.

Que vezes, Maria, me sinto por dentro
Em chamas arder
Que vezes desejo fitar os teus olhos
E o peito a gemer!
Mas tudo não passa de francos desejos...
Cismar... escrever...

Maranhão 1852

Mana = brota, corre

Recordações Teatrais

Às vezes, refletindo, em minha rede,
Eu gemo, eu choro, eu rio, ai que é assim
As loucuras dos outros, gemo e choro,
Das loucuras que eu faço, rio, enfim.

Misantropo não sou, nem um coitado
Que o mundo olha, porém não no vê:
Daqui de minha rede, em que me embalo,
Meu solto pensamento indaga e lê.

Ao teatro se vou, perco a saúde,
E nele penso noites sem dormir,
Porque lá vi um anjo pelo espaço
A voar como a rola, a se expandir.

Dois dias, pelo menos, meus ouvidos
Ferem as palmas que a platéia deu,
Palmas tão justas que, esposando bravos,
Para o gênio foram só, que as mereceu.

Mas quantas palmas na platéia soam
E quantos bravos prolongados vão
Em vaso impuro queimar vil incenso
À lascívia, à fatal devassidão!

Noto as virgens pudicas ocultarem
O lindo rosto no seu lenço ou véu,
Se o anjo que no palco dança e pula
Suas formas mostrou, mas sem labéu!

E eu que sei que os mil bravos se desprendam
Por um idéia deleitosa e ruim
E eu que sei que as donzelas se velaram
Não por pejo ou pudor, - por luxo sim:

Voltando penso em tudo... e me deleito!
Gemo e choro, afinal, rio de mim!

Recife 1856

Solto = livre
Labéu = desdouro, desonra, mancha inflamante.

Saudade Filial

Quando me lembro dos passados tempos
Desse viver d’outrora que provei...
Viver tão puro! – qual frui ao lado
Dos pais queridos, que inda em bem verei;

Minh’alma triste se desfaz em notas
De dor pungente, de febril sofrer!
Pois nada me inquieta neste mundo
Como distante de meus pais viver.

Chamai embora desgraçado aquele
Que viu seus anos no verdor crestar;
Ou que no peito da mulher querida
De amor as rosas viu por fim murchar;

Chamai embora sem ventura aquela
Que passa os dias a arrastar grilhões
Ou que proscrito por falsários crimes
Suporta a pena de cruéis mandões;

Chamai embora malfadado aquele
Que a vida leva praticando ações,
Que um prêmio devem merecer, e alcançam,
Em vez de prêmio, de louvor, baldões:

Eu, porém, malfadado chamo ao filho
Que as mãos nunca beijam dos caros pais;
Que no leito de dores nunca teve
Da terna e doce mãe, sentidos ais.

Ah! nomes doces, que no peito calam
Sentir profundo que eu não sei dizer!
Deus não permita que dos pais que adoro
Distante morra sem ainda os ver!

Desprezo as pompas que ligeiras passam
São transitórias como os gozos são,
Os gozos, digo, que corrompem a alma,
E nesses gozos eu não creio, não.

O mundo mente no falar de engano,
Mente a donzela no sorrir de amor;
No trato amigo, muita vez o amigo
Esconde um peito desleal, traidor.

Sim, tudo mente, - só não mente o extremo
Do amor materno, desse amor de pai;
Qual a virtude, dentre o crime horrendo,
Sem mancha, ileso da mentira sai.

E quando eu penso nos passados tempos,
Nessas breves delícias que provei...
No viver doce que fruí ao lado
Dos pais queridos, que inda em bem verei;

Minh’alma triste se desfaz em notas
De dor pungente, de febril sofrer!
Deus não permita que dos pais que adoro
Distante morra sem ainda os ver.

Soledade (Recife) 20 de agosto de 1855

Arrostrar = arrostar
Baldo = carecido, falto, baldado, inútil.


Sem Verbo

Eis, por conseguinte, debaixo desses diversos pontos de vista, só pela propagação deste novo gênero de estilo nas escolas, senão progresso para as ciências, e talvez mesmo a desaparição desses epítetos aviltantes de louco, de visionário, de original e de uma crítica acerba contra o autor; e da mesma forma a cessação desses sarcasmos e desse afetuoso cinismo.
(Herautl – professor em Montaigne)

Pobre do bardo
Minha querida,
Sem tua vida,
Sem teu amor:
Contigo – amante
Feliz - ditoso
Sem ti – cuidoso -
Sem ti – que dor!

Antes a morte
Sobre meu peito,
Que o triste efeito
De idéia tal;
Junto a teu lado,
Prenda mimosa.
Que vida hermosa.
Celestial!

Que luz, que brilho,
Nos teus formosos
Olhos graciosos
D’alma fulgor!
Triste do bardo
Sem os teus belos
Olhos singelos.
De tanto amor!

Nos curtos lábios
Da cor da rosa,
Que dulçurosa
Vida de amor!
Na meiga face
Da cor da neve.
Que toque leve
D’alma rubor!

Pobre do bardo,
Minha querida,
Sem tua vida,
Sem teu amor:
Contigo – amante
Feliz – ditoso -
Sem ti – cuidoso -
Sem ti – que dor!

Tristonho, amante,
Sem ti, meu pranto,
Ai! quanto e quanto
Dos olhos meus!
Ai minha amada
Doce, sensível,
Vida frenével -
Longe dos teus.

Ah! meus suspiros
Dentro em teu seio!
Que terno enleio
Junto co’os teus!
Mas ai do bardo,
De triste amante,
Tão só – distante
Dos mimos seus!

Adeus, ó bela,
Anjo perfeito,
Neste meu peito,
Que aguda dor!
Adeus amável,
Doce menina,
Virgem bonina,
Meu grato amor!

Pobre do bardo,
Minha querida,
Sem tua vida,
Sem teu amor:
Contigo – amante -
Feliz – ditoso -
Sem ti – cuidoso-
Sem ti – que dor!


3 de janeiro de 1855

Bardo = trovador, poeta
Frenevil = que tem frenesi, impaciente, agitado, convulso, delirante

Psiu!

Psiu! dê-me um beijo
Linda mocinha!
Linda mocinha
Diga se dá?

Não conte o beijo,
Não diga nada,
Não diga nada
Pra seu papá.

É coisa simples
Ceder um beijo!
Ceder um beijo
Pode você.

Nada mais simples!
Um beijo tome!
Não ria! – tome,
E outro me dê.

Ora não fique!
Tão pudibunda!
Tão pudibunda
Como um rubim!

Ora não fique
Não core tanto!
Não core tanto
Por pouco assim!

Eu lhe protesto...
São graças minhas,
São graças minhas,
São... e bem são...

Sim, lhe protesto...
Mais outro beijo!
Mais outro beijo
Não faz mal, não.


Olinda, 9 de janeiro de 1856

Pudibunda = que tem ou revela pudor, corada, rubicunda

Um Mexerico

Olhe que eu digo...
Zomba comigo?
Meu pai!
“Cabeça oca,
Cala essa boca!”
Ai! ai!

- Senhor, que cousa!
- Ninguém repousa!
- Que foi?
Era... “caluda!”
Que unhada aguda!
E dói!

“São cousas dela,
Mãesinha bela,
São sim;”
“Quem acredita
Numa gasguita
Assim?”

- Ah! se eu tivesse
- Quem me dissesse
- Se alguém
- Que ali estava
- Me atraiçoava..
- Mas quem? –

“Quem acredita
Nesta gasguita?”
Não eu!”
Era... não digo;
Buliu comigo,
Me deu.

“Oh! deus te ajude!”
Fiz quanto pude,
Fiz bem?
“Oh! muito bela,
Tu, depois dela,
Meu bem.”

“Foi somente isto,
Juro-o ... por Cristo!”
Que é?
Quem assim jura
Também, perjura
À fé!

Uma terceira
Moça fagueira
Assim,
A vez chegando,
Esteve falando
Pra mim.


Olinda 1856

Vou Cantar

Oito horas
Noutro horizonte raiava
O claro sol;
Doce a lua refletia
Os raios que ela fundia
No seu irisol.

Era a noite beleza e tanto
Que logo inspirou-me um canto
Pra alívio meu;
Pois que o poeta sem lira
Certamente sucumbira
Ao fado seu.

Sucumbira, - que há momentos
Que geram padecimentos,
Tamanha dor,
Que somente se cantando
Vão-se os males mitigando
Do trovador.

Porém Deus que assim formou-nos,
Que tão sensíveis criou-nos,
Também nos deu
O condão da poesia
Que ao vate tanto alivia
No penar seu.

Qual o cantor que emudece
Quando à noite lhe aparece
Certo cismar?...
Qual o poeta que olvida
Esse momento na vida
Do belo olhar?

É doce tirar da lira
Uma nota que suspira,
Que lembra amor,
É doce entoar um canrto
Passado de terno pranto
Que abrande a dor.

Sim – que a lembrança de uns olhos
Que atiram setas a molhos
Lá onde estão;
Constante arrocha-me o peito!
Ah! são das setas o efeito
No coração!

Saudoso efeito que gera
Um sentir que eu não o dera
Por outro, não;
Um sentir que dentro n’alma
Se expande tanto que acalma
Meu coração!

Hei de cantar que meu peito
Só se consola de feito
Com o cantar;
Hei de cantar que minh’alma
Só está tranqüila e se acalma
Com o trovear.

Sim, hei de, que é bom da lira
Ouvir-se um som que suspira
Que lembra amor;
Um som que revele um canto
Passado de terno pranto
Que abranda a dor.

Irisol = irisado, matizado com as cores do arco

2 comentários:

Júnior Bonfim disse...

Meu caro blogueiro:

Sou conterrâneo de José Coriolano de Sousa Lima.
Tenho o Touro Fusco.

Há muito desejava conhecer mais sobre a obra e a vida do maior poeta da minha terra.
Meu e-mail: juniorbonfim@msn.com
Meu blog: http://juniorbonfim.blogspot.com/

Caso possa, desejo manter contato.

Grato,

José Bonfim de Almeida Júnior (Júnior Bonfim)

Larissa disse...

Somos da Academia Piauiense de Letras e temos o interesse de publicar a obra de José Coriolano Impressões e Gemidos na Coleção Centenário. comemorativa ao centenário de fundação da APL. Gostaríamos de saber se o senhor dispõe de cópias da 1ª edição da obra, para nos ceder. Por outro lado, gostaríamos de convidá-lo para escrever o prefácio da edição que vamos publicar. Entrar em contato com acadpi@ig.com.br. Agradecemos desde já a sua atenção!